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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Uma carta de 1578

 

Embora Benedito Calixto seja mais conhecido como um dos grandes pintores do final do século XIX e início do século XX, retratando inúmeras paisagens da Baixada Santista, entre outras centenas de obras pictóricas, ele também foi importante historiador em sua época, usando as pesquisas para embasar com rigor os seus quadros. Ele também publicou alguns dos documentos que colecionou, entre eles esta carta seiscentista, por ele reproduzida no jornal santista A Tribuna, página 2 da edição de 24 de março de 1926 (ortografia atualizada nesta transcrição).

Note-se que o signatário da carta, John Whithal, tem seu nome grafado em outras publicações como John Whitehall e também foi conhecido pelo apelido João Leitão:

Imagem: reprodução parcial da matéria publicada em A Tribuna de 24/3/1926, página 2

 

Coletânea de documentos antigos relativos a S. Vicente, Santos, Itanhaém etc.

II – Uma carta

Escrita no porto de Santos em 26 de junho de 1578, por João Withal a Ricardo Staper, residente em Londres

(Tradução do inglês)

"Digníssimo senhor e amigo mr. Steper (N.E: notada a discrepância Staper/Steper);

Estas poucas palavras são para lhe cientificar que, conquanto lhe tenha eu escrito não há muito tempo por via de Lisboa, e de como pretendia achar-me brevemente em sua companhia, aconteceu que neste país ofereceu-se-me oportunidade de me casar, com escolha de três ou quatro; e assim há três dias tratei, com um cavalheiro italiano, de casar-me com sua filha dentro destes quatro dias. Este meu amigo e sogro, signor Ioffo Dore, nasceu na cidade de Gênova, na Itália; seus parentes são bem conhecidos em Londres; também não tem outros filhos, e julga sua filha mais feliz casada comigo do que com qualquer português do país todo, e junto com ela dá-me parte em um engenho que tem, o qual fabrica todos os anos mil arrobas de açúcar.

Este meu casamento me valerá dois mil ducados, mais ou menos. Igualmente signor Ioffo Dore, meu sogro, pretende confiar-me o engenho todo, com sessenta ou setenta escravos, e daí fazer-me administrador de nós ambos. Dou ao meu Deus vivos agradecimentos por me colocar em tamanha honra e abundância de todas as coisas.

Há poucos dias também falava eu com o provedor e o capitão, e eles asseguravam-me que descobriram certas minas de prata e ouro, e que andam todo o dia a procurar práticos que vão abrir as ditas minas, as quais quando forem abertas enriquecerão muitíssimo este país. Este lugar chama-se S. Vicente, e fica distante daí, donde o senhor mora, duas mil léguas, e fica no vigésimo quarto grau Sul, e quase debaixo do trópico de Capricórnio. É um país muito sadio e sem doenças.

Além disso, tenho conversado com o dito capitão e provedor (Braz Cubas) e com meu sogro, os quais governam todo este país, no sentido de arranjarmos quem venha para cá, de Londres, em um navio com mercadorias, para o qual prometeram conceder-me licença, dizendo que agora sou (cidadão) habitante livre deste país. Fazer vir cá um navio com artigos e comodidades tais que tivessem saída neste país seria caminho de grandes lucros, Deus mandado em segurança os lucros e ganhos. Em tais fazendas e artigos que embarcassem para cá, de Londres, o lucro seria de três por um, e então o produto pode ser empregado em açúcar branco a quatro contos de réis a arroba.

Pretendo também ter em Londres um amigo que me consigne um navio de sessenta ou setenta toneladas, mais ou menos, carregado com artigos que indicarei. Esta viagem é tão proveitosa como qualquer viagem ao Peru. Se o senhor e o sr. Osborne quiserem tratar, negociarei com o senhor de preferência a qualquer outro, por causa de nossa velha amizade dos tempos passados. Caso tenha vontade, em nome de Deus, procure um bonito barco de setenta ou oitenta toneladas e despache para cá, com piloto português, a este porto de S. Vicente (Santos), no Brasil, nas vizinhanças do Peru.

Indico-lhe também de que forma e maneira o senhor deverá sortir o barco nesta viagem (tanto) quanto a mercadoria e a outros efeitos.

Deverá primeiro embarcar, no dito navio, um certo número de panos de lã de Hampshire e Devonshire, por causa dos quais deverá deixá-lo partir de Londres em outubro, e tocar nas Canárias, onde serão vendidos os ditos panos de lã e, com a importância, devem-se comprar e meter a bordo quinze pipas de vinho bom, em perfeito estado, e seis dúzias de peles de Córdova, destas cores: laranja, amarelo-escuro, amarelo-vermelho e preta, muito finas.

Creio que ali (nas Canárias) não serão achadas estas cores, portanto deve providenciar que os que fizerem a viagem levem açafrão para tingir as ditas peles com tais cores. Também creio que achará ali azeites, e três quintos de azeite-doce serão de muita necessidade para esta viagem, ou cinqüenta jarros. Também o senhor poderá embarcar, em Londres, estes embrulhos de mercadorias, conforme segue:

"Em primeiro lugar, quatro peças de Holanda, qualidade do meio, e uma peça de Holanda, fina.

Quatrocentos ells (um ell, 45 polegadas) de pano tecido, para calções, muito finos.

Quatro dúzias de tesouras, de todos os tamanhos.

Dezesseis quintais de piche das Canárias.

Vinte dúzias de facões, de preço baixo.

Quatro dúzias de facas comuns.

Seis peças de baeta, de qualidade ordinária.

Uma peça de baeta, muito fina.

Quatrocentos ells (um ell = 45 polegadas) de pano de algodão de Manchester, na maior parte preto e verde, o resto amarelo.

Oito a dez dúzias de chapéus, metade guarnecida de tafetá e outra metade simples, com fitas de crepe.

Seis dúzias de camisas grosseiras.

Três dúzias de jalecos de lona.

Três dúzias de paletós – de lona costurada.

Uma peça de fustão de Milão – guarnecido.

Seis dúzias de fechaduras para portas e baús.

Seis mil anzóis, de todos os tamanhos.

Quatro dúzias de resmas de papel.

Duas dúzias de copos, de diversos tamanhos.

Duas dúzias de vidros de Veneza, metade de tamanho grande e outra média.

Duas dúzias de mantilhas de lã, do mais baixo preço possível.

Três dúzias de saiotes de lã.

Quatrocentas libras de folha-de-Flandres, em pratos pequenos e grandes, de estilo de Portugal.

Quatro libras de seda, de todas as cores.

Vinte libras de especiarias – cravo, canela, pimenta, açafrão etc.

Dois quintais de sabão branco.

Três libras de fio de linha branco, preto e azul.

Três libras de fio de linha branco, fino.

Meia dúzia de panos de lã do Norte, de várias cores.

Quatro panos sortidos – azul, amarelo, vermelho e verde.

Seis dúzias de pano, lã do Norte, cores diversas.

Um fino pano azul – de oito libras.

Um fino pano de etaminha de dez ou doze libras.

Um fino pano tinto, de doze libras.

Um fino pano tinto, de doze libras.

Um dito, de lã e seis jardas de veludo preto.

Três barris de pregos, para caixões.

Dois barris de pregos para navios e barcos.

Seis quintais de "room" (oche?)

Duas dúzias de cintas de veludo (cinturões de veludo, sem pendentes para espadas).

Quatro jardas de tafetá encarnado, preto e azul.

Duas dúzias de cinturões de couro.

Seis dúzias de machados, machadinhos e foices, para cortar paus.

Quatro maços de cordas, para violino e guitarras.

Quatrocentos ou quinhentos ells de pano de linho, preço baixo, para camisas e lençóis.

Quatro toneladas de ferro.

São estas as mercadorias que eu desejava me mandasse.

Decidindo-se mesmo a tratar comigo, ou mandar cá algum navio, tenha certeza que pelo auxílio de Deus, porei as contas em boa ordem para seu contentamento e proveito, pois que meu sogro junto com o capitão e o provedor (Braz Cubas) é que governam este país.

Meu sogro e eu pretendemos, Deus querendo, fabricar uma boa quantidade de açúcar, todos os anos, o qual queremos despachar para Londres, caso encontremos um comissário e bons amigos como o senhor, para entrar em trato conosco. Peço-lhe, assim que tiver recebido esta, mandar-me resposta. Mande sua carta ao sr. M. Rolder, em Lisboa, o qual m'a fará chegar às mãos.

Além dos artigos já indicados, mande seis jardas de pano encarnado e uma quantidade de rendas de diversas cores.

"Seis jardas de veludo carmesim.

Seis jardas de cetim carmesim.

Doze jardas de fino puke preto".

Aqui, neste país, em vez de John Withal, chamam-me John Leitão; e, visto que há muito tempo que assim acontece, não há remédio senão que assim continue. Quando me escrever, enderece a John Leitão.

Assim eu recomendo a todo os vossos à guarda do Espírito Santo, para sempre.

Se mandar o navio, é preciso dar ordens que ele não toque em porto nenhum da costa da Guiné, nem em outra costa nenhuma, mas que venha diretamente cá, para o porto de S. Vicente, e que das Canárias venha consignado a mim, em meu nome, John Leitão.

Também uma dúzia de camisas para meu próprio uso, caso mande o navio, Também, seis ou oito peças de fazenda para mantilhas, para mulheres, que é a coisa mais necessária que se pode mandar.

Seu amigo firme

John Withal.

Porto de Santos, 26 de junho de 1578."

The Principal Navegation Voyages Traffiques e Discoveries of the English Nation – By Ricahrd Hakluyt. Glasgow – MCMIV.

Anotações

Eram estas, como se vê, as mercadorias que John Whital ou "João Leitão" pretendia importar da Inglaterra em 1578.

Em São Vicente, antes mesmo dessa época, isto é, nos primeiros anos do povoamento, já havia intercâmbio comercial com a Bélgica e a Holanda, conforme se verifica de documentos já publicados, que tratam do célebre "Engenho de São Jorge dos Erasmos". Havia em Amsterdam uma importante indústria de refinação de açúcar, mantida por matéria-prima produzida nos engenhos de cana de São Vicente. A firma industrial, que é bem conhecida, mantinha relações comerciais entre o porto de Santos e os de Flandres.

As informações e notícias contidas nesta "epístola" de John Whithal foram publicadas no livro de Richard Haklyt, que apareceu em Glasgow, mais ou menos nessa época.

As expedições das famosas frotas de flibusteiros, que no fim do século dezesseis e início do século dezessete vêm piratear nas costas meridionais do Brasil, como se verá em outros documentos que serão publicados nesta série, já estavam bem orientados dos recursos de que dispunham as duas primitivas vilas – são Vicente e Santos. Os Adornos, os Leitões e o próprio Braz Cubas, bem como este aventureiro John Withal, estavam ainda residindo em Santos e São Vicente, quando os piratas puseram cerco e devastaram as duas povoações, pelo saque e pelo incêndio. Frutos da época… que ainda hoje se reproduzem sob outros nomes e aspectos.

Quem seria pois esse Ioffo Dore, natural de Gênova, cuja filha casou, ou pretendia casar, com o signatário desta curiosa carta, John Withal? Os italianos (genoveses) residentes em Santos, nesta época, eram: José Adorno, Francisco Adorno, Paulo Dias Adorno e seus discentes, pessoas todas de posições definidas e de grande destaque, não só nas capitanias de S. Vicente e Santo Amaro, como nas demais do Brasil.

José Adorno, o mais notável desta família – o nobre genovês - , tantas vezes citado nas cartas de Nóbrega e de Anchieta, casou e teve filhos – em S. Vicente -, falecendo com mais de cem anos de idade, conforme afirmam os genealogistas.

O "Signor Iofo Dore", pai da vicentina rica, cujo nome se ignora – que estava noiva do inglês John Withal, em 1578, não será o próprio José Adorno?

A facilidade que havia então de truncar, de estropiar os nomes próprios, conforme ele mesmo confessa, que "aqui neste país em vez de John Withal chamam-me João Leitão (*), bem poderia ter trocado e confundido José Adorno por Joffo Dore, que não parece ser nome italiano.

Refere ainda o missivista inglês que o seu futuro sogro – Joffo Dore – e o provedor (Braz Cubas) eram os que governavam este país, e andavam interessados nas descobertas de minas de ouro e prata, o que coincide bem com os fatos ocorridos nessa época, conforme consta das próprias cartas de Braz Cubas, dirigidas ao rei de Portugal, relatando a sua entrada no sertão, em busca de metais preciosos e as mesmas referências feitas, nas Cartas de José de Anchieta, cujos documentos fazem parte desta coletânea.

B. Calixto.

(*) A família Leitão era igualmente conhecida em S. Vicente nesta época e não se atina a razão que tinha o povo em crismar o dito missivista com o apelido de Leitão.

Jeronymo Leitão, o futuro governador da capitania de São Vicente, irmão do conhecido fidalgo Domingos Leitão, já era morador da vila de Santos, antes que John Withal aqui aparecesse.

Na escritura de venda do Engenho da Madre de Deus, lavrada na vila do porto de Santos, em 1588, consta que d. Cecília de Góes, cunhada de Jeronymo Leitão, era viúva de Domingos Leitão e tinha um único filho – João Gomes Leitão.

Jeronymo Leitão casou em Santos e teve muitos filhos. O seu nome andou envolvido em um longo inquérito, que se abriu, na vila de Santos, a propósito do primeiro "pirata inglês" que bloqueou o porto de Santos, a 20 de janeiro de 1583, como adiante se verá.

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