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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Um fidalgo genovês

Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade, o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):

Imagens publicadas com a matéria

JOSÉ ADORNO
Um grande vulto da fundação de Santos

E que participou também da fundação do Rio de Janeiro

Francisco Martins dos Santos
(do Instituto Histórico e Geográfico de Santos)

Entre as coisas incompreensíveis da história, encontra-se, sem dúvida, o estranho esquecimento que autoridades e historiadores fizeram pesar sempre sobre as figuras beneméritas e venerandas dos irmãos Adornos, vindos na Armada de Martim Afonso, para colonização do Brasil. Seria preconcebido tal silêncio? Seria pelo "crime" de não serem portugueses?

A verdade, todavia, é que os Adornos, de todas as figuras colonizadoras do Brasil inicial, são atualmente das mais pesquisadas e bem esclarecidas.

Sabe-se que eram nobres, da notável família dos Duques de Gênova, apeada do poder pelos Doria, em 1528, emigrando muitos dos seus membros para várias partes da Europa, diante da nova situação de sua pátria. Sabe-se que alguns se passaram para a Madeira, onde entraram para o negócio do açúcar, muito explorado então naquela ilha, e desses, em fins de 1530, vários passaram para o Brasil, na Armada do 1º Donatário de S. Vicente.

José, Francisco, Raphael e Paulo, foram os Adornos vindos naquela Armada e chegados em janeiro de 1532 à região de S. Vicente, estabelecendo-se pouco depois no lugar em que surgiria mais tarde a cidade de Santos, aí fundando o segundo Engenho da Capitania - o Engenho de S. João - que, em 1533, já estava funcionando.

Raphael, não se sabe se tornou à Europa com o Donatário. Paulo Adorno sabe-se que cometeu um crime na região de Santos, julgando-se que tenha sido contra a pessoa de Henrique Montes (que uma escritura de 25 de setembro de 1536 diz ter sido assassinado antes), e, segundo uns, em canoa, segundo outros, na própria Armada de Martim Afonso, passou-se para a Bahia, onde se casou com uma filha de Diogo Alvares, o famoso Caramuru, de nome Catharina, dando origem à primeira nobreza baiana, tornando-se bisavô de Antonio Dias Adorno, o sertanista notável, que Diogo de Vasconcellos inclui entre os principais fundadores de Minas Gerais.

Francisco Adorno parece haver ingressado na Companhia de Jesus, anos mais tarde, porque Anchieta, em carta de 1565, refere-se a um "nuestro hermano Francisco Adorno", dando-o, entretanto, como sobrinho de José Adorno. A não ser que se trate de algum sobrinho vindo mais tarde da Europa, fica-nos a impressão de ser o mesmo Francisco, vindo com Martim Afonso, sempre tido como irmão de José, erroneamente.

José Adorno foi a grande figura de que vamos tratar.

Carvalho Franco, o paciente pesquisador de S. Paulo, diz que o Engenho deste colonizador foi fundado no lugar de Santos, em 1535, mas, há dados positivos de sua fundação em 1533, e a própria lógica dos fatos reforça esses dados, sendo aí, com Braz Cubas, Paschoal Fernandes, Domingos Pires, Luís de Góes e Mestre Bartholomeu (o ferreiro), um dos principais fundadores do povoado que depois foi Santos.

José Adorno casou-se em Santos, com Catharina Monteiro, filha de Christovão Monteiro (nobre português) e Marquesa Ferreira, sua mulher.

Foi um dos fundadores e sustentadores da Misericórdia de Santos, e em 1560 era seu provedor, depondo nesse ano no processo do famoso Jean de Bolés, calvinista de Villegaignon, fugido para Santos e aí preso por ordem do Santo Ofício.

Em 1562 fundava a Igreja de Nossa Senhora da Graça, que, em 1589, doaria aos padres do Carmo, para seu primeiro estabelecimento, secundado por Braz Cubas, que lhes doou o terreno vizinho à capela, para construção de sua morada.

Em 1563, ao levantar-se para a colonização o fantasma ameaçador da Confederação dos Tamoios, conseqüência da irritação das tribos contra os raptores das suas mulheres, foi José Adorno, espírito religioso e homem de guerra, amigo devotado dos padres da Companhia de Jesus, quem pôs à disposição de Anchieta e Nóbrega as embarcações de alto mar que deviam levá-los e à necessária escolta comandada por ele próprio.

Anchieta, que tantas referências faz ao grande fundador de Santos, descreve-o então "vestido com o saiote negro dos cavaleiros cruzados, a espada descansando sobre os joelhos, sereno e altivo em meio do gentio feroz".

Graças ao seu destemor e ao espírito de sacrifício, pôde Santos, como puderam S. Vicente, S. Paulo de Piratininga e toda a obra da colonização portuguesa, escapar à sanha dos 10.000 arcos tamoios, que, sob o comando feroz de Aimbiré, Pindobussú, Jagoanháro e Coaquira, estavam prestes a se despenhar sobre ela, realizando com aqueles dois apóstolos da catequese o famoso armistício de Yperoig.

Em 1567, já muito rico e talvez cansado da atividade direta em sua indústria açucareira, Adorno tinha em seu Engenho três interessados (partidistas), com 70 escravos.

O Engenho de S. João, talvez por isso, atravessava uma fase de decadência, pois que apresentava uma produção de 1.000 arrobas somente, e bem se nota o aborrecimento do fidalgo genovês, visto que, logo depois, casando uma filha com o inglês John Whithal, tornou-o sócio único da propriedade, coadjuvado por Heleodoro Eoban Pereira, o alemão que desde o princípio fora seu administrador.

Em fins de 1566, quando Estácio de Sá se desesperava por não poder expulsar do Rio de Janeiro os franceses de Villegaignon e os tamoios seus aliados, foi em Santos que ele veio encontrar o apoio e o reforço de que carecia para a última tentativa de expulsão. Foi José Adorno, então, quem reuniu um grande corpo de combatentes, portugueses, brasileiros e índios, armando-os à sua custa, preparando embarcações, colocando seu administrador Heleodoro Eoban como tenente da tropa e investindo-se no posto de comandante. Voltou então à Guanabara o nobre Estácio de Sá. Levava o Condestável Adorno e sua gente armada e municiada, Manoel da Nóbrega, José de Anchieta e Pedro Martins Namorado, que fora o primeiro juiz de Santos.

A 20 de janeiro de 1567, eram desbaratados os tamoios e franceses, mercê do reforço organizado por José Adorno. Pouco depois, fundava-se a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, tomando o nome do santo do dia, e Pedro Martins Namorado foi o seu primeiro juiz, com a instalação da sua primeira justiça, como o fora de Santos. José Adorno participava, pois, e solenemente, melhor que ninguém, da fundação da cidade que seria um dia a capital do Brasil. Por que o esqueceram? Por que resumiram a fundação do Rio de Janeiro na pessoa de Estácio de Sá, quando ele não pudera fundá-la e por isso fora buscar Adorno e sua gente?

Fundador de Santos com o Engenho de S. João, e fundador do Rio de Janeiro com a derrota dos franceses e tamoios a 20 de janeiro de 1567, por que não teria sido sempre comemorado o grande Adorno, como parte integrante da história das duas cidades? Não parece preconcebido? Esse é o incompreensível a que nos referimos.

José Adorno assistiu por vários anos ao desenvolvimento do Rio de Janeiro, como a garantir a sua existência, e seus serviços aí prestados foram palidamente recompensados, com a doação que lhe fizeram de três grandes sesmarias, das primeiras concedidas naquela terra, uma na Carioca, centro da atual cidade, outra em Niterói e a terceira no sertão, provas exuberantes de sua grande participação moral e material nos fatos de 1566 a 1567 e anos subseqüentes, até 1575, quando, acompanhando o capitão-mor Jerônimo Leitão, juntos derrotaram em Cabo Frio estrangeiros e índios conjugados, que infestavam e dominavam o lugar.

Disse Frei Gaspar que Adorno fundou na ilha de Guaibê a Igreja de Santo Amaro, que doou ao povo. Diz agora Carvalho Franco que ele fundou a Igreja de Santo Antonio de Guaibê, na mesma ilha. Existem há centenas de anos as duas igrejas. Teria ele fundado as duas?

Em nossas pesquisas, notamos que a grande Capela de Santo Antonio, fronteira à Bertioga, com notáveis vestígios de convento ao lado, numa frente de cerca de oitenta metros para o rio, é a mesma a que se refere Carvalho Franco e parece que sem conhecê-la, o que lhe aumenta a realidade da pesquisa, e, numa escavação que fizemos dentro dela, descobrimos um secular ornato interno, em ferro fundido, da época de sua construção, que prova a sua origem adorniana, pois é uma peça inteiriça, muito pesada, em cujo centro se vê a flor-de-lis, que é exatamente o símbolo dos Adornos, parte primacial do seu escudo, aqui reproduzido.

Afirma Azevedo Marques que José Adorno teve as maiores datas de terras de que há notícia. De fato, além das terras que possuía em Santos, foram-lhe feitas outras muitas doações, na ilha de Santo Amaro, na Enseada da Bertioga, e Ilha de Toque-Toque, em 1586, e uma grande sesmaria na costa, próximo a São Sebastião, da qual mandou tomar posse, em 1598, por um de seus genros, Jerônimo Ortega, por estar muito velho e doente.

Já por sua mulher, d. Catharina Monteiro, houvera de herança terras na Bertioga e nos arredores da Vila de Santos, caminho de S. Vicente, cerca de 1590, e assim, ao fim de sua vida, era um potentado, o Creso da terra que fundara com outros companheiros.

A carta de Anchieta ao Geral da Ordem, Diogo Layne, de 8 de janeiro de 1565, publicada às páginas 241/42 das Cartas Jesuíticas, edição da Academia Brasileira de Letras, documenta suficientemente a participação de José Adorno no Armistício de Yperoig.

O grande colonizador genovês morreu com mais de cem anos, pela altura de 1605, visto que, em 1603 ainda confirmou a doação da Capela da Graça aos religiosos do Carmo, cuja primeira escritura fora queimada ou atirada ao mar pela gente de Cawendish, em 1591, tendo sido o último dos fundadores de Santos a desaparecer.

Diz Simão de Vasconcellos, contemporâneo de Adorno, que ele morreu com sinais evidentes de predestinação, e Frei Gaspar repete as suas palavras contando que, por ocasião da morte do venerando fidalgo, "pedindo-se emprestada a certa Confraria a cera necessária para o seu funeral, com obrigação de se pagar a que se gastasse; pondo-a na balança depois de concluído o enterro e exéquias, acharam-na com o mesmo peso que antes tinha, não obstante haver estado acesa muito tempo".

José Adorno, homem de atividade e alma simples, jamais aceitou cargos e honrarias, devendo a isso, principalmente, a pouca preocupação dos historiadores em torno de seu nome.

A Biblioteca Nacional possui uma cópia da carta de André Hygino ou Equino, capitão da Armada do Almirante Valdez, em que ele narra a ação de José Adorno e seus companheiros, por ocasião da invasão do porto de Santos por Edward Fenton, o comandante inglês, a 19 de janeiro de 1583.

Esse documento é digno de ser compulsado por aqueles que de fato se interessem pela história de Santos e de suas grandes figuras, pois não só frisa ele o papel de José Adorno naqueles fatos, como ilumina uma série de nomes ignorados da época, personalidades inglesas, holandesas e italianas residentes em Santos e na Capitania de S. Vicente, além da citação que faz, de gregos, espanhóis e franceses, que vinham na Armada do almirante espanhol, em vigilância ao Estreito de Magalhães e à costa do Brasil, então colônia castelhana.

É nessa carta de André Hygino ou Equino, de 16 de fevereiro de 1583, que se lê o pedido feito por Jerônimo Leitão, capitão-mor, ao almirante Diogo Flores de Valdez, para que não se retirasse de Santos, sem construir um forte, para defesa da Barra, aproveitando a presença do engenheiro João Baptista Antonelli (italiano). Forte esse, aliás, que foi de fato construído, ativamente e em pouco tempo, sendo-lhe entregue já a 14 de abril do mesmo ano, com cinqüenta soldados e várias peças de artilharia e munições aproveitadas dos ingleses e deixadas pela Esquadra castelhana, e que é o mesmo que lá está, abandonado, fronteiro à Ponta da Praia - a Fortaleza da Barra Grande, outrora Santo Amaro.

Lucas Ward, vice-almirante da esquadra inglesa de Fenton, também historiou a passagem naval de Santos, fazendo uma negra descrição da mortandade havida, referindo-se à salvação de um marselhês e de um grego, natural de Zante, içados para bordo bastante feridos. Contou ele que, chegando ao porto como amigos, os ingleses entraram a parlamentar com os grandes da terra, convidando-os para uma reunião a bordo, aparecendo no dia seguinte José Adorno, Estevão Raposo, Paulo de Véras, todos senhores de engenhos locais, e mais alguns importantes, que foram banqueteados pelo almirante. Em sua retirada de bordo, foram-lhes prestadas continências militares, com salvas de artilharia e, no dia seguinte, o mesmo almirante lhes remetia ricos presentes de sedas e veludos, como ao capitão-mor Jerônimo Leitão, presentes que lhes foram devolvidos intactos, pois que a gente de Santos recusava-se a recebê-los.

Passados três dias, reza a descrição de Ward, foi a bordo John Whithal, genro de José Adorno, informando os ingleses de que na vila estavam em preparativos para um combate com eles. Apareceram, então, novamente, José Adorno, Paulo de Véras e Estevão Raposo, declarando-lhes que se fossem, porque o capitão-mor negava-se a permitir seu desembarque em terra.

É nessa ocasião, então, a 24 de janeiro de 1583, que surgem no porto de Santo as três naves de guerra de André Hygino ou Equino, parte da esquadra do almirante Valdez, e se verificam os acontecimentos descritos, o combate entre ingleses e espanhóis, auxiliados estes pelas forças de terra.

É uma boa página da Santos heróica, ligada aos últimos fatos da vida de José Adorno, um de seus melhores e mais legítimos fundadores, por irrisão desconhecido e desprezado pela cidade de hoje, que tanto lhe deveu em seus primeiros setenta anos.

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