Nossa mata alófila
Um cinturão de saúde - Um ignorado valor econômico e sanitário de Santos e do
litoral paulista
Francisco Martins dos Santos (*)
Um ângulo da nossa mata alófila (halófila), com as três espécies comuns - a Apareiba,
a Siriúba e a Sereibuna - Mangue branco, Mangue amarelo e Mangue vermelho ou Verdadeiro, que constituem uma das nossas
maiores riquezas naturais
Foto publicada com essa legenda, com a matéria original
Quanta riqueza existe às vezes nas coisas pequeninas e
quanta grandeza resumida às vezes na simplicidade!
Poucos são aqueles que, apesar das lições constantes da vida, se preocupam com o que
não tem aparência, com o objeto, o elemento ou a coisa que não salta aos olhos pelas cores, pela beleza exterior ou pela utilidade imediata e
conhecida, tal como fazem com o homem que não tem físico, não tem dinheiro, não tem posição ou que se veste com modéstia.
Há dias, viajando entre os mangues da Baixada Santista, ocorreu-nos esse pensamento, a
idéia desse defeito comum, de caráter e de critério da criatura humana, defeito que não atinge somente aos brasileiros, por isso mesmo, e que a leva
a esquecer, incorrigivelmente, a eloqüência dos fatos antigos e modernos, em torno do ouro, do diamante, do rádio, do tório, do urânio, do cristal
ou do átomo, coisas pequenas dentro do todo, coisas que se escondem na terra ou no mar, disfarçadas entre a vulgaridade, fealdade e até inutilidade
dos elementos, onde deve ir buscá-las a pesquisa perseverante e custosa dos faiscadores ou cientistas, para que apareçam afinal e em grande estilo,
como grandes coisas, a serviço do bem ou do mal, nas mãos dos indivíduos e das sociedades.
Pois é o caso do próprio MANGUE na vida litorânea, e, particularmente, da vida
santista. Ninguém se importa com ele, modesto e humilde como é, sem porte, sem majestade, sem beleza, sem flores, sem préstimo aparente, a ponto de
importunar e irritar, pela continuidade de vegetação dominante, o olhar ignorante de quem passa, de quem apenas o vê mas o desconhece, sugerindo a
tantos, talvez, um desejo íntimo de que o arrasassem e transformassem em lenha, retirando-o da paisagem.
Voluntário anônimo de uma batalha histórica mas desconhecida, vai ele, entretanto,
beneficiando a terra e o meio, hoje como ontem, alheio à displicência das criaturas e à gratidão dos homens, semelhando uma legião de despreocupados
cientistas num laboratório imenso, que vivesse jogando para o chão, para o ar, para os homens, para a vida, há séculos e a todos os momentos, os
frutos e resultados da sua existência benemérita.
Mas é preciso e é tempo que o público em geral e as professoras primárias, em
particular, saibam o que é e o que para nós representa o MANGUE, esse mangue humilde que aí está, em torno da cidade, para que o respeitem, para que
o prezem, para que o venerem até, e para que o incluam, patrioticamente, no culto das crianças, para acendramento do seu amor à terra, como tributo,
embora tardio, de admiração e gratidão que até hoje não lhe prestaram.
Sentimo-nos à vontade para isso, porque o mangue, parte importante da nossa Flora, se
inclui na Fitogeografia brasileira, uma das nossas especializações pessoais e também, porque não dizê-lo? - um dos nossos enlevos culturais
costumeiros.
O mangue, que forma realmente um cinturão vegetal em torno de Santos e da
marinha paulista, é composto, em regra, de três tipos de árvores: a Apareíba, conhecida como Mangue branco e também por Cana Paúba,
Canapomba e Mangue rasteiro; a Sereíba ou Ciriúba (de Ciri-ibá), conhecida por Mangue amarelo, siriba
e árvore de caranguejo, e a Sereibuna ou Sereibuno (de Ciri-Irauna), também conhecida por Mangue vermelho ou
verdadeiro, mangue preto e mangue sapateiro (ou de sapateiro).
Rhyzophora Mangle,
Laguncularia Racemosa e Avicennia Tomentosa são, respectivamente, as classificações científicas atribuídas a cada uma daquelas
espécies. Três árvores, três espécies, três famílias distintas: Verbenáceas, Combretáceas e Rizopharáceas, uma só tribo imensa, a se estender, num
feliz absolutismo, por toda a fímbria litorânea, sem diferenciações tipológicas, desta para aquela região.
A primeira espécie, a mais baixa das três, é, no entanto, a que mais se distingue no
mangue salgado, por seu aspecto original, cheia de raízes grossas (adventícias), retas ou curvilíneas, que se elevam alguns palmos do lodo, como um
estranho polvo ou um pagurus colossal, que estivesse a levantar ou a carregar a própria árvore nas costas. Daí a sua classificação
científica: Rhizophora, "a que conduz raízes".
A segunda espécie predomina nas margens dos rios salobros, como os nossos Piassagüera,
Cubatão, Quilombos, Jurubatuba, Trindade, Cabassu, Itapanhaú e outros mais, até certa altura do curso, porque,
e não haja confusão, os nossos rios, da chamada vertente santista, são, em geral, de águas doces em seu curso alto ou inicial (predomínio das
nascentes ou cachoeiras), salobras em seu curso médio (influência mista, das nascentes e do mar), e salgadas em seu curso final, ou seja, na
proximidade das embocaduras.
Esta espécie vive muito em comum, aliás, com a guanxuma, uma têxtil arbórea, de
grandes flores amarelas, papilonáceas, que ali aparece, então, uma das variedades do próprio mangue, misturada com ele, apenas com mais beleza.
A terceira espécie, batizada cientificamente por Avicennia em homenagem ao
grande médico, cirurgião e químico árabe da Idade Média - Avicena (Ibn Sina) - cuja ciência dominou o mundo conhecido, durante cinco séculos, e que
foi quem a descobriu e aproveitou, na farmácia, na medicina, na indústria e na economia doméstica - é a mais alta e a mais preciosa das três, em
certos sentidos, chegando a atingir 15 metros de altura e a produzir 36% de tanino em sua casca, além de porcentagem menor nos frutos (16%) e nas
folhas.
Esta última espécie está intimamente ligada à história brasileira, e, mais em
particular, à história de Santos e São Vicente, porque foi ela que forneceu a matéria-prima (o tanino) a todos os curtumes fundados no Sul, durante
mais de três séculos.
A indústria dos curtumes (alcaçárias, tanarias ou pelanes, no
português antigo e no velho Portugal), foi, aliás, a segunda indústria instalada e explorada no Brasil, logo em seguida à do açúcar, e em Santos foi
Braz Cubas o primeiro a montá-la, onde hoje se encontra a Rua de São Bento com a de São Leopoldo, próximo às terras de
Mestre Bartolomeu Ferreira (Gonçalves), à margem do rio que tomaria o nome histórico de Rio dos Pelames e que, nascendo no morro do Desterro (São
Bento atual), ia desaguar em terras de José Adorno, nos lamarões do Valongo.
Depois daquele primeiro Curtume de Braz Cubas (1560?), outros se fundaram por aqui,
alimentados pelo mangal santista, até o último, que seria o Curtume Porchat, no século passado (N.E.: século XIX),
junto ao Rio dos Soldados (atual Mercado Municipal), de propriedade do primeiro Porchat que
veio para Santos.
Somente neste século (N.E.: século XX),
com o advento do Barbatimão, da Acácia negra e do Quebracho, se atenuou o predomínio do Mangue Vermelho na indústria dos curtumes do Brasil, mas até
a geografia local guardaria, em sua nomenclatura, a lembrança da sua importância industrial de quase quatro séculos, na denominação do mais
conhecido e mais importante rio da região (que em verdade é um braço de mar) - o Rio do Casqueiro -
equivalendo a "rio da exploração da casca de mangue", que ali fazia as vezes do "pau brasil" da Guanabara, de Cabo Frio e de outros lugares, por
isso mesmo celebrizados em nossa primeira História. (N.E.: o mesmo autor, em outra obra,
reconhece outro significado para esse topônimo: "O termo também indica
sambaqui, ou seja, antiqüíssimos depósitos de conchas, restos de cozinha e urnas funerárias datados da
pré-história").
Embora essa grande indústria colonial não tenha figurado, por lapso, na obra dos
nossos historiadores, sociólogos e economistas, constituiu, só ela, razão suficiente para um culto especial, de nossa parte, a essa árvore
benemérita que hoje continua a nos favorecer, nessa e em outras funções, uma das quais é fornecer matéria corante parda, que com sais de ferro
produz excelente tinta preta, indelével.
Também, por incisão, se obtém da casca do Mangue Vermelho um suco avermelhado que,
seco ao ar, tem as mesmas propriedades do "Kino" estrangeiro, tingindo de marrom escuro e servindo para a preservação das redes de pescaria -
para o encascamento, como dizem os pescadores. A casca dessa espécie é ainda antifebril e antisséptica, muito usada no litoral em mezinhas
contra as sezões (maleita) e contra os efeitos das ferroadas de mosquitos e insetos em geral ou dentadas de peixes.
"É curioso observar como essa árvore operária, de
inteligência evolutiva, trabalha nesse grande laboratório de física e química que é o mangal", diz-nos Magalhães
Corrêa. Encarregada da transformação do solo num período de transição, a ela se deve a existência de vastas superfícies de terra, do tipo das
restingas, das quais a humanidade e a nossa gente, em particular, tiram enormes proveitos.
É mesmo notável o modo pelo qual essas árvores esquecidas, num grande e persistente
trabalho anônimo e heróico (porque custa a sua própria vida), se apoderam do lodo e o soerguem, até transformá-lo em terra sólida e saudável,
enriquecida pelo acúmulo de argilas, areias, húmus, calcáreos provenientes das conchas dos moluscos e carapaças de crustáceos, ossos de animais, de
aves etc. (que ali vivem aos milhares e aos milhões), soterrados pela vaza trazida nas marés e recuperada pelo mangue, principalmente pela
Rhyzophora, em seu processo de elevação radicular, ao qual devemos a existência de muitas ilhas e zonas continentais, transformadas em sítios e
lavouras, principalmente em bananais.
As cascas desprendidas, as folhas e os frutos caídos, levam constantemente à lama
quantidade imensa de tanino, antídoto da putrefação, purificando-a, saneando-a, impedindo a proliferação de germes e miasmas, e contendo-a também,
em sua tendência de esparzimento, por sua adstringência consolidadora.
À sobra do mangue se abriga enorme fauna marinha, ribeirinha e praieira, que adquire,
por isso mesmo, notáveis qualidades de sabor e saudabilidade. Só vive ali, sob o mangue, sobre o mangue ou junto dele, o que é bom e benéfico, desde
as aves aos peixes, moluscos e crustáceos.
Ele é o único tipo vegetal que não aceita e até repele os parasitas, não se
encontrando nele, como qualquer pessoa pode ver, um exemplar sequer de epífita nefasta, um exemplar sequer de caraguatá ou planta reservadora de
água e proliferadora de mosquitos perniciosos, como os anófeles propagadores do impaludismo (malária, maleita) e os estegomias, transmissores da
febre amarela e outras moléstias perigosas para o homem, de caráter endêmico.
Os únicos mosquitos que conseguem viver no mangue são também os mais inofensivos - os
carapanans ou mosquitos pólvora - que apenas molestam a quem deles se avizinha e à noite, sem que transmitam moléstia alguma.
Por isso mesmo, o Departamento Nacional de Saúde Pública, em suas grandes campanhas
sanitárias do litoral, ordena a destruição de bambus ou taquaras, dos caraguatás e gravatás em geral, e até das matas litorâneas que os comportam,
mas não se incomoda com o Mangue, que a tantos, e por engano, parece responsável por todos os males conhecidos na costa.
"O trabalho químico dessa árvore extraordinária é
verdadeiramente anônimo, misterioso, entre o solo, a água e a atmosfera, tornando-se indescritível", diz-nos ainda
Magalhães Corrêa. Raramente se pode observar uma das suas fases, aquela da evaporação processada por suas folhas.
Há, entretanto, um momento propício para essa observação - é do meio dia às 13 horas,
mais ou menos, com céu límpido, sol forte, radiante, e aragem branda. Vêem-se então, sobre a copa do mangue, como que sombras fugidiças e vibráteis,
em forma de exalações vaporosas, violenta e vertiginosamente saídas da folhagem, tal como as que se observam nas caldeiras potentes, que deixam
escapar pelas válvulas o vapor acumulado em excesso, ou ainda como as que notamos sobre um ferro de passar roupa, a carvão vegetal, bem aceso e sem
a tampa, em horas do dia e com contraste adequado.
Ao mesmo tempo que fixa o carbono, o Mangue enriquece o ar de oxigênio, melhorando
assim as condições de vida ambiente e influindo poderosamente na saturação higroscópica da atmosfera.
Eis o que se pode dizer, ligeiramente, num artigo de jornal, sobre o nosso Mangue,
esse autêntico cinturão de saúde, ignorado e atento vigia sanitário da nossa terra e da nossa gente, esse grande valor histórico da nossa economia,
que, por ignorância, incompreensão e fatalismo utilitário, vai sendo derrubado aqui e ali, só porque sua madeira é de fácil colheita e de muitos
préstimos para as populações ribeirinhas e litorâneas, empregada em traves, caibros, vigotes, moirões, como lenha ou transformada em carvão,
permitindo assim o aparecimento de focos de insalubridade em lugares outrora ou anteriormente salubres.
Possa a nova geração tributar a essa esplêndida trindade vegetal - Rhyzophora
Mangle, a Laguncularia Racemosa e a Avicennia Tomentosa - as homenagens e o carinho respeitoso que a velha não lhe tributou.
(*) Fundador do Instituto
Histórico e Geográfico de Santos. |