Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0222d.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 05/08/04 17:36:23
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - QUILOMBOS (4)
As primeiras mulheres abolicionistas

Outro aspecto pouco estudado: o papel das mulheres abolicionistas santistas
Leva para a página anterior
Muito ainda precisa ser pesquisado sobre a história da escravatura negra no Brasil e particularmente em Santos. A comunidade santista se destacou inclusive pelo papel desempenhado pelas mulheres, que abrigaram escravos fugidos nos quintais de suas residências, impedindo sua recaptura, num trabalho abolicionista pioneiro no Brasil.

Esse fato também foi destacado por Francisco Martins dos Santos, em sua História de Santos, publicada em 1937 (segunda edição em 1986 pela Editora Caudex Ltda., de São Vicente, junto com a Poliantéia Santista do pesquisador Fernando Martins Lichti). Esse estudo continua sendo apresentado a seguir:

A campanha da Abolição

[...]

A reação popular, o movimento abolicionista propriamente dito, só teria início em Santos e São Paulo, após o término da Guerra com o Paraguai, em 1870.

Desde que se fundara em São Paulo, em 1868, o Partido Liberal-Radical, onde se enfileiravam inicialmente Rangel Pestana, Limpo de Abreu, Xavier da Silveira, os dois Ottoni, Felício dos Santos e outros abolicionistas-republicanos - precedendo a Campos Sales, Prudente de Morais, Bernardino de Campos, Francisco Glicério e tantos mais que a ele se filiariam depois, e cuja voz transmitia-se ao público pela Opinião Liberal, cumprindo o seu programa de ação, onde constava, debaixo da máscara pacífica, a campanha por todos os meios em prol da substituição do braço escravo pelo braço livre -, apareceram os primeiros sintomas de reação popular, de vontade abolicionista da massa, prognosticando luta e triunfo.

Em Santos apareciam os precursores da Abolição popular. Dona Francisca Amália de Assis Faria iniciara o custodeamento dos primeiros negros fugidos, transformando o quintal da sua casa num verdadeiro pequeno quilombo, e dela partiram os primeiros convites a outras damas santistas para fazerem o mesmo.

Dentro em pouco, em conseqüência da atividade abolicionista feminina, orçavam por centenas as reclamações feitas às autoridades pelos donos de escravos, contra o acoutamento dos fujões, realizado pelas melhores famílias da cidade, tipo de abolicionismo que dificultava as providências, já de si lentas e mais de aparência das mesmas autoridades. Assim se subtraíram os primeiros escravos às ignomínias do cativeiro, dentro da cidade de Santos, salvando-se das torturas do retorno aos senhores e dos capitães-de-mato [31].

O coração da mulher santista, é preciso que se diga, foi o primeiro a gritar, não apenas em Santos mas no Brasil, a declaração de guerra ao escravismo e o início da fase de ação, proclamando, com o seu exemplo, a necessidade da luta pela extinção do bárbaro e retrógrado regime social.

Naquele mesmo ano de 1870, outra santista fundava em São Paulo a primeira sociedade libertadora, uma sociedade feminina, destinada a promover alforrias de cativos; era D. Ana Benvinda Bueno de Andrada, esposa do Conselheiro Martim Francisco Ribeiro de Andrada, o santista que por acaso nascera em Mussidan, na França; filha de Antonio Manoel da Silva Bueno, homem ilustre, natural de Santos que tivera assento nas Cortes Constituintes de Lisboa, em 1821, e que se refugiara na Inglaterra com os demais deputados brasileiros, cuja assinatura fora negada à ignominiosa Constituição dos portugueses.

Dona Ana Benvinda Bueno de Andrada foi a fundadora e primeira presidenta da A Emancipadora, sociedade especializada em "libertação de escravas moças", e um dos cobradores das mensalidades sociais foi seu filho, o então menino e depois eminente político republicano, Dr. Bueno de Andrada.

No início dessa segunda fase, apenas alguns vultos de Santos apareciam como forças ativas e organizadoras da corrente idealista, solidificando o grande ideal de solidariedade humana: Xavier da Silveira, Francisco Martins dos Santos, Dr. Alexandre Martins Rodrigues, Joaquim Xavier Pinheiro e João Octávio dos Santos.

Xavier da Silveira pontificava na capital, como precursor de Gama e Antonio Bento, onde zurzia os escravocratas com a candência do seu verbo poderoso e a elegância da sua proteção ao cativo. Foi ele quem primeiro aconselhou, precedendo a todos os apóstolos da idéia, a fuga em massa dos sítios, das fazendas e das propriedades urbanas, levando seu entusiasmo ao ponto de aconselhar aos cativos a reação física violenta contra os senhores e os capitães-de-mato, defendendo-os depois perante o júri, dessas violências cometidas, à luz do Direito. Contaram-se por centenas os casos entregues ao seu cuidado e as liberdades conseguidas por ele através de cenas muitas vezes dramáticas.

O próprio Luiz Gama sintetizou a ação de Xavier da Silveira, anos depois, nestas palavras: "Enquanto Xavier da Silveira viveu, a luz vinha de Santos, porque ele era o porta-bandeira da Abolição na Província de S. Paulo e nós todos esperávamos sempre a palavra de ordem que vinha dele". (SIC).

Como em sua terra o sentimento popular apresentava melhor e mais generalizada tendência abolicionista, Silveira encaminhava os fujões aos seus amigos e parentes daqui, pedindo-lhes que os conservassem em custódia por algum tempo, até que obtivessem as respectivas alforrias; e foi tal a dedicação do grande tribuno e poeta pela raça oprimida, que, ao primeiro fracasso sofrido no júri paulistano em defesa dos seus constituintes gratuitos, ele abandonou-o para nunca mais voltar às suas barras, e o seu arrebatamento desse instante ficou na história com as palavras ditas ao negro condenado e aos jurados que o condenaram:

"Sê infeliz! Cumpre o teu destino angustioso e funesto, pária deserdado de toda proteção social! Sê infeliz! A tua defesa foi feita - se houve nela sombras, foram devidas à imensa noite de minha própria nihilidade intelectual; se houve luzes, foram devidas às chamas da caridade em que me abraso! Senhores jurados! (disse num imenso grito, voltando-se para os julgadores). Eu nunca mais voltarei ao júri de São Paulo!..."

De fato, Xavier da Silveira nunca mais tornou ao tribunal popular da capital; voltou definitivamente para Santos, sua terra, onde fundou o matutino A Imprensa, naquele ano de 1871, com capital de José Ignácio da Glória, e aí, durante três anos, os últimos que lhe restavam de vida, foi o paladino do abolicionismo ativo, pugnando ainda mais violentamente pela liberdade do negro que, na guerra do Paraguai, se nivelara ao branco, vivendo as mesmas horas trágicas, dignificando-se dentro dos mesmos heroísmos, conquistando a um tal preço os direitos sagrados das criaturas [32].

Xavier da Silveira e A Imprensa formaram um só bloco, tornando-se, ambos, a base angular da grande campanha paulista que devia vencer em 88. Sua grande voz clamou sempre pela igualdade dos homens, como chamara pela liberdade de consciência na famosa questão Canganelli, surgida contemporaneamente, secundando Rui e Saldanha Marinho no lançamento da semente que deveria germinar pelo tempo adiante, dando origem à renovação mental, cultural e social de sua Pátria.

Companheiro do Silveirinha na luta que se iniciava era Francisco Martins dos Santos, cabeça da intelectualidade santista de então; cidadão prestante, escritor vigoroso, possuidor de vasta cultura, ligado pelo casamento à família Andrada, ponto de partida de todas as iniciativas locais, membro de várias organizações religiosas e um dos veneráveis da Maçonaria em sua terra. Foi ele um grande secundador de Xavier da Silveira, aconselhando o abolicionismo como fórmula evolucionista, como necessidade social mais do que um simples dever de humanidade e altruísmo, como condição primeira do republicanismo, acoutando desde então, em sua chácara e nas casas e sítios dos seus inúmeros amigos e parentes, uma legião de escravos, procurando sempre generalizar aquela prática e o movimento popular em favor da raça oprimida.

Por seu intermédio, toda a corrente católica santista se encaminhou para o campo da Abolição, fazendo causa comum com a corrente maçônica, tornando possível a unanimidade verificada pouco mais tarde entre todas as classes e camadas sociais santistas, e, assim, a própria vitória que coroou o movimento em Santos, antes mesmo que a Abolição oficial se fizesse em todo o Império. Sua qualidade de administrador das Rendas da Província dava-lhe um realce de autoridade capaz de influir no ânimo dos mais timoratos (num tempo em que isso era muito importante), induzindo-os a trabalhar secreta ou declaradamente pela libertação dos escravos de toda a Província.

O dr. Alexandre Martins Rodrigues, outro grande abolicionista da primeira hora, fora juiz municipal durante muitos anos em Santos, ao tempo da guerra com o Paraguai, e era chefe também de numerosa e ilustre família, a cuja sombra se desenvolveram os primeiros passos redentores dos cativos. Presidente da Câmara Municipal, de 1877 a 1880, intelectual extremamente culto e de alta mentalidade, jurista, liberal por princípio, foi um dos bons organizadores do movimento deflagrado com a sua respeitabilidade e o seu conceito, que atingiam dois setores importantes: o policial e o judiciário.

Seu apoio trouxera a adesão de outro santista não menos respeitável, o dr. Luiz Ernesto Xavier, que ocupara o juizado municipal em sua substituição, e que se tornou como ele um fervoroso adepto da liberdade total dos cativos. Quando veio para Santos o dr. Garcia Redondo, mandado pelo Governo Imperial para fiscalizar e superintender os serviços de reformas e reconstrução da Alfândega, em 1876, Alexandre Rodrigues a ele se juntou, tornando-se ambos, no Diário de Santos e no Comércio de Santos, verdadeiros gaganélis da campanha iniciada por Xavier da Silveira.

Foi nessa época que os seus esforços encontraram a grande cooperação de Augusto Fomm e do grupo idealista formado por Hipólito da Silva, padre Francisco Gonçalves Barroso, Sacramento Macuco e Antonio Manoel Fernandes, grupo este que, em 1877, fundou O Raio, impetuoso órgão de combate que tanto influiu na preparação do espírito popular, naqueles primeiros anos de após-guerra.

O dr. Alexandre Martins Rodrigues, que já fora uma vez despojado do cargo de juiz, por força de suas idéias liberais e republicanas, chegou depois a ter também sua posse no cargo de vereador municipal impedida pelo Governo Provincial, que, contrariando o desejo do eleitorado livre, ordenara à situação conservadora santista a utilização de um processo político anterior, de forma a evitar que ele fizesse parte da Câmara - o que não o impediu, entretanto, de que, por seu grande conceito e seu grande valor, fosse eleito e fosse feito Presidente da mesma Câmara, de 1877 a 1880.

Outro grande entre os primeiros foi Joaquim Xavier Pinheiro, opulento proprietário da caieira (fábrica de cal de sambaqui) do Paquetá, no extremo da rua dos Quartéis (hoje Xavier da Silveira), chefe liberal de largo acatamento, camarista a contar da legislatura de 1877. Além do acoutamento proporcionado inicialmente aos negros em seus sítios do Quilombo, tornou-se depois, na quadra final de campanha, um dos maiores cooperadores, financiando, com outros companheiros, diversos empreendimentos e o reduto livre do Jabaquara.

Afirmaram na época, com desdouro para Xavier Pinheiro, que ele se aproveitara dos escravos recolhidos em seus sítios, nos últimos anos da campanha, empregando-os nos rudes trabalhos da lavoura e da coleta do material calcário, nada lhes pagando em troca, violando assim as próprias combinações estabelecidas entre os chefes abolicionistas. Se o fez, o que não ficou provado, ele decerto o teria feito para ressarcir-se dos prejuízos verificados com a sua colaboração nas despesas da campanha, como viagens, alimentação dos refugiados de Jabaquara, compra de alforrias, custeio de ações judiciais e outras de aparecimento constante, e isso, embora mal feito, não lhe tira, porém, o mérito de haver sido um notável abolicionista ativo, nem impede que a História o aponte como um dos responsáveis pela Abolição popular na Província de São Paulo.

João Octávio dos Santos, também um dos grandes iniciadores do movimento, era santista como Xavier da Silveira e Alexandre Martins Rodrigues e um dos mais abastados negociantes da cidade, político considerado e chefe liberal, camarista desde 1866 que devia ser presidente da Câmara em 1883, benfeitor social, futuro criador do Instituto Escolástica Rosa, ao qual legaria quase toda a sua fortuna. Foi um dos financiadores das grandes despesas abolicionistas e um dos broquéis da própria Abolição em sua terra, pela notoriedade e respeitabilidade da sua figura social.

Esses foram os precursores. A mocidade violenta da última quadra ainda estava em embrião, crescendo, para levar ao triunfo definitivo o estandarte da grande causa popular.

Em 1874 desaparecia tragicamente sacrificado pela peste o campeão Xavier da Silveira. Morria com apenas 34 anos de idade, em sua casa dos Quartéis, o bairro que se tornara famoso nas lutas sanguinolentas contra o Valongo. Com o seu desaparecimento tão prematuro e inesperado, parecia periclitar a grande causa do povo, parecia ficar na orfandade toda uma raça sofredora.

Surgiu então, em plena evidência, o vulto generoso de Luiz Gama, que, vendido como escravo na Bahia, pelo próprio pai, chegara um dia a Santos, seguindo para São Paulo, onde, ao fim de algum tempo, pôde sentar praça, passando depois a escrivão de polícia, a tipógrafo, a estudante de Direito e finalmente a advogado eminente, companheiro de banca do jurisconsulto santista Dr. Antonio Carlos Ribeiro de Andrada (o II), tornando-se afamado tribuno, poeta, jornalista e novo campeão da causa em favor da sua gente, substituindo a Xavier da Silveira.

Luiz Gama fez ainda com mais violência, talvez, o que fizera o Silveirinha, mantendo a chama viva do entusiasmo entre as hostes cada vez mais numerosas do abolicionismo militante, mas não teve também o prazer de assistir ao triunfo da causa, e de ver que, ainda depois de 1882, até final da campanha, "a palavra de ordem", a que se referira falando do tribuno santista desaparecido antes dele, continuara a partir de Santos, porque Santos era o alicerce de todo o novo edifício social e moral em construção, e porque nela é que ficaria o Jabaquara, expressão máxima de abolicionismo no Brasil, retrato vivo da própria Liberdade sonhada pela raça sofredora.

Contam-se coisas formidáveis, já bastante divulgadas, a respeito do advogado negro, mas um dos fatos marcantes da sua vida foi aquele ocorrido em Santos, por ocasião do barulhento inventário do ricaço português, o comendador Ferreira Neto, vereador à Câmara Municipal, que construíra o grande edifício do Largo Monte Alegre, fronteiro à Estação da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, em dois lances, exageradamente grande para a época, na esperança de ver nele instalado o governo da Província [33].

No inventário daquele homem de estranho progressismo constavam mais de cem escravos negros, deixados como herança aos seus descendentes. Tomando a defesa dos infelizes tornados objetos ou simples coisas, Luiz Gama, contendendo na tribuna do júri com o renomado orador que era José Bonifácio "o Moço" [34], à força de argumentos jurídicos conseguiu vencê-lo, tornando livres a todos os seus gratuitos constituintes, apesar de ser o eminente paulista um dos maiores tribunos parlamentares e juristas do Império e de haver contra os seus protegidos a sombra da ordem vigente e o peso de interesses facilmente compreensíveis [35].

Veio de casos assim e de outros de idêntica solução a sua grande fama de apóstolo, fundando-se o seu renome de profissional em sua real capacidade de jurista e orador.

Fazendo de Santos o seu ponto de apoio, Luiz Gama foi em São Paulo o grande alento da causa, já entrando em sua fase decisiva, sob um entusiasmo cada vez maior do povo, como verdadeira revolução social organizada.

O movimento abolicionista continuou naquela marcha durante alguns anos, assistindo-se, aqui e ali, ao repontar de uma força nova, mais um jornal, mais uma adesão de firma ou nome, mais um fato alvissareiro, mais uma vitória, mais fugas em massa, e a continuação do trabalho desprendido, entusiástico, crescente, do povo paulista.

[...]

Notas:

[31] Para vergonha do Império, esses capitães-de-mato eram criaturas do Estado, tomavam posse oficial dos cargos, para desempenho de sua função especializada, um misto de polícia e cão de caça: pegar negro fugido e restituí-lo ao senhor, usando para isso dos processos que entendesse em relação à vítima.

[32] Durante a guerra contra o Paraguai, o negro, como propriedade normal e indiscutível do branco, era mandado a eito para os campos de batalha, e quando o senhor comum queria livrar um filho dos riscos daquela guerra, que durou cinco anos, oferecia um ou dois negros em seu lugar, o que era sempre aceito.

[33] Era o que contavam, talvez pilheriando, tal o vulto da construção, afirmando que alguns deputados provinciais e o próprio Presidente haviam prometido a transferência do governo para Santos, caso ele se dispusesse a construir um edifício capaz de comportar todas as Secretarias. Santistas idosos ainda contavam isso em 1930.

[34] Evaristo de Moraes - "A Campanha Abolicionista", pág. 259.

[35] Na época talvez houvesse uma explicação para a defesa do ilustre Andrada; hoje, diante da vida e da fama do aureolado descendente do Patriarca, aquela intervenção de José Bonifácio "O Moço" contra os 100 infelizes, é verdadeiramente incompreensível, estranha, inaceitável. O curioso é que Luiz Gama representava, de algum modo, a banca de outro Andrada, o mestre Antônio Carlos.

Leva para a página seguinte da série