Ilustração do cartunista Seri, publicada com a matéria
4º Centenário da Inquisição
A presença do Santo Ofício em Santos
1991 marca o 4º Centenário da Visitação do Santo Ofício ao Brasil. Aos 29 de julho de
1591 ocorria a primeira confissão de uma das vítimas da Inquisição, na Bahia, perante o Visitador Heitor Furtado de Mendonça. Em Santos,
funcionários do Santo Ofício processaram diversas pessoas, no Século XVIII. Esse fato foi abordado pela professora Clotilde Paul, na Universidade de
Sâo Paulo (USP), em 1979
Valdete Silva
A morte pela fogueira, a prisão perpétua ou temporária, o
confisco de bens eram as penas impostas pelo Tribunal do Santo Ofício da inquisição às pessoas que cometessem "crimes" contra a Santa Fé Católica.
Perseguir as heresias, o judaísmo, protestantismo e feitiçarias era a principal atribuição da Inquisição, que também castigou a leitura de livros
proibidos e a bigamia.
No Direito antigo, Inquisição era o Tribunal permanente, distinto do ordinário, dirigido por
um bispo, nomeado pelo papa. O concílio de Vienne, no século XIV, estabeleceu uma regra de colaboração entre os Inquisidores e os Juízes Ordinários.
Na Espanha, a Inquisição teve suas primeiras atividades em Sevilha, em setembro de 1480.
Entre 1481 e 1488 foram queimados mais de 700 conversos e reconciliados cerca de 5 mil. Em Portugal, o Tribunal do Santo Ofício foi fundado em 1536,
realizando-se os primeiros autos-de-fé em Lisboa, em 1540.
No Brasil não houve o estabelecimento do Tribunal, mas a presença de Comissários e
Familiares do Santo Ofício que tinham a tarefa de denunciar, prender, confiscar bens e embarcar para o Reino os suspeitos de crimes do conhecimento
da Santa Inquisição.
Primeira confissão - A primeira visitação ocorreu em 1591 com o desembarque do
Visitador Heitor Furtado de Mendonça, na Bahia. Aos 29 de julho daquele ano - exatamente há 400 anos - houve a primeira confissão. Perante o
Visitador compareceu o religioso Frutuoso Álvares, que confessou práticas homossexuais.
Na Bahia houve 121 confissões e mais de 200 denúncias; em Pernambuco, 212. Predominavam
entre os "crimes" as blasfêmias, a apostasia, a sodomia, o judaísmo, entre outros.
Consta que cerca de 1.200 réus da Inquisição portuguesa chegaram a ser queimados nos
autos-de-fé, a maioria pelo crime de judaísmo. E dos residentes no Brasil, 20 foram mortos em Lisboa. Desses, seis viveram na Bahia e foram acusados
pelo crime de judaísmo. Entre eles estava o soldado e sapateiro Gaspar Gomes, de Salvador, morto em 1644.
O ano de 1591 marca o início da atuação regular da Inquisição na América Portuguesa, sendo
extinta definitivamente em 1821. Nos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, encontram-se cerca de 36 mil processos arquivados.
O que foi para a senhora estudar a Inquisição em Santos e o que a levou a escolher
esse tema?
A Inquisição aparecia-nos como que recoberta por um véu de mistério. Uma vez estudada,
encontraria a realidade histórica e acabaria com o encanto do mistério e, de certo modo, do proibido. Em todo o encontro com a realidade, em toda
dissipação de mitos, há sempre um pouco de decepção, quase uma derrota da nossa imaginação. A origem da escolha está no gosto pelo desafio do tema
interdito. Interdito, menos pela natureza do assunto, do que pela consciência do risco de cair na teia de quase tudo o que de mal e bem se tem
escrito sobre o Tribunal do Santo Ofício. A compreensão da Inquisição tinha que surgir não apenas da análise da Instituição em seus múltiplos
aspectos, mas da afinidade entre a Instituição e o sentido da vida que existia então. Destacar Santos no contexto paulista e brasileiro, no momento
da Inquisição, era o grande desafio.
Na sua avaliação, a Inquisição foi de fato um instrumento de tirania?
Não. A pior das tiranias é a que silencia os espíritos. Pessoalmente acho que a moral deve
nortear o agir humano e cada época tem a sua moral, portanto não se pode julgar um momento histórico pelos valores e conceitos do momento em que se
vive. A Inquisição foi fruto de um tempo e dos valores vigentes à época. A legenda-negra da Inquisição, que a crítica procurava enfatizar,
prolongou-se na historiografia inspirada em posições radicais do anticlericalismo que, equivocadamente, identificava o Santo Ofício com a Igreja,
quando ele era um tribunal também, e principalmente, do Estado Absolutista.
A senhora considera que os desvios da fé representavam ameaças às instituições?
Mais graves que os pecados individuais, os desvios da fé eram crimes que punham em risco a
existência social e a sobrevivência das instituições, sobretudo as políticas.
Em que embasou suas pesquisas e como teve acesso à documentação?
No estudo de registros históricos, processos-crime, processos de habilitação a cargos do
Santo Ofício, inventários de bens e movimento do porto, em tudo que abrisse caminho para a compreensão da vida e do tempo. A andança foi grande em
busca de arquivos em Santos, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Portugal e Espanha. Foi no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, que
localizei processos-crime do século XVIII. Deles, pudemos trabalhar três - o de Luzia Barbosa, o de Jacinto da Silva e o de João Lopes Nunes.
Como a Inquisição atuou em Santos?
Embora não tivesse se estabelecido sob a forma de Tribunal, no Brasil Colônia, o Santo
Ofício atuou através de funcionários que aqui aportavam em visitações. A Inquisição associava elementos da hierarquia eclesiástica e civil e os
distribuía com encargos específicos pelas terras do Império Português. Imediatamente abaixo dos Inquisidores provinciais situavam-se os Comissários.
No Brasil Colônia habilitaram-se 136 Comissários. Em Santos encontramos três: João Caetano Leite César de Oliveira, doutor, vigário da Vara de
Santos, filho de Gaspar Leite César, familiar do Santo Ofício; João Ferreira Leite, padre, bacharel em Cânones por Coimbra, cônego da Sé de São
Paulo, filho do sargento-mor João Ferreira de Oliveira (N.E.: notada a citação de apenas dois Comissários, no texto
original). Também em Santos houve Familiares do Santo Ofício. Na Inquisição, o cargo de Familiar era fundamental. Eram
leigos que, sem abandonarem as suas profissões, auxiliavam o Tribunal fazendo prisões, participando de inquéritos, vigiando atentamente as
consciências.
E quem foram os Familiares?
Em Santos tivemos oito habilitações de Familiares: Gaspar Leite Cezere, comerciante; Manoel
Pacheco Lyma, comerciante; José Godoy Moreira e Bento Borges Chaves, que viviam de suas fazendas; Francisco Carvalho da Silva e Pedro Machado de
Carvalho, homens de negócios; e João Roiz Portela, com grande loja de fazendas (N.E.: notada a citação de apenas sete
Familiares no texto original). Os habilitados estavam todos ligados ao comérico ou aos negócios, o que vem confirmar
que as elites da Vila, naquela época, eram formadas por comerciantes. Essas habilitações realizaram-se quando a vila era ainda o porto de escoamento
dos metais, quando aqui viviam pessoas ligadas ao abastecimento dos viajantes que iam para as Minas Gerais ou para as minas de Goiás e Mato Grosso.
E quanto aos Qualificadores? Eles atuaram em Santos?
Santos também teve no Século XVIII a habilitação de um Qualificador, um dos mais altos
cargos da hierarquia inquisitorial. Foi a do padre frei Manuel do Leviamento, mestre da Sagrada Teologia, religioso de São Francisco da Província da
Imaculada Conceição do RIo de Janeiro, natural de Santos. Eram os Qualificadores que tinham a função de qualificar as proposições e os atos das
pessoas para determinar a sua gravidade e assim desencadear o mecanismo repressivo do Santo Ofício. Nos portos, os Qualificadores exerciam o ofício
de Visitadores das Naus, que examinavam os livros vindos para a colônia a fim de retirarem aqueles que tivessem escapado à vigilância do Reino e
aqui chegassem misturados às mercadorias.
Quais os crimes praticados pelos réus que estudou?
O de Luzia Barbosa foi adultério. Ela foi acusada de ter sido casada legalmente na Matriz da
Vila de Santos e posteriormente, com o nome de Rosa Maria, casar-se nas Minas Gerais, embora fosse vivo o seu marido Antônio de Faria. Já o de João
Lopes Nunes foi judaísmo. Ele foi preso a primeira vez em 1704, quando morava na travessa de Nossa Senhora do Parto. João confessou ter
desrespeitado a cruz, nela pregando um galo. Trinta e dois anos depois, foi novamente preso por ter jejuado conforme o rito judaico. Quanto a
Jacinto da Silva, soldado infante da Praça do Rio de Janeiro, foi acusado de bigamia. Casado legitimamente em Santos com Izabel do Espírito Santo,
casou-se com Maria Pereira, na Vila de Paraty, sendo ainda viva sua mulher.
Desses três réus, algum foi para a fogueira? Qual o processo mais significativo?
O processo mais significativo foi a acusação de judaísmo de João Lopes Nunes, porque houve a
ocorrência de rituais proibidos e observância da lei mosaica. Foi o único remetido a Lisboa, os outros réus não chegaram a ser presos. No caso de
João Lopes Nunes havia ainda o agravante da reincidência que, segundo o direito vigente, obrigava o confisco de bens e podia terminar com a pena de
morte, que só não aconteceu porque o réu morreu de morte natural, angina. Foi também o mais significativo porque o confisco de bens implicava em
arrolamentos, dando-nos a oportunidade de conhecer os valores da época. Entre os bens confiscados havia trigo, ovelhas, escravos, um púcaro de prata
(pequeno vaso), uma salva de prata (espécie de bandeja), cordões de ouro e títulos de empréstimo.
Qual a conclusão da sua tese?
Por tudo o que foi pesquisado e analisado concluí que Santos, por sua vocação comercial -
entrada e saída de mercadorias pelo mar e pela terra, escoadouro de riquezas, ponto de partida da conquista do planalto e abastecimento de suas
populações - certamente não poderia escapar à ação do Santo Ofício. A sociedade santista era baseada no comércio, o que deixava presumir a presença
de sangue judeu. Abrigando uma população onde era sensível o elemento jovem, a vila distanciava-se dos padrões metropolitanos. Logo, a Inquisição
não podia ignorar a Vila de Santos. A atuação do Tribunal da Fé, aqui, não fugiu ao ritmo com que agiu no contexto brasileiro - continuou sendo a
prova de que colonização equivalia ao povoamento e cristianização.
Professora Clotilde Paul, da Faculdade de Filosofia
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
Um século de estagnação
Pesquisa A Tribuna
Durante o século XVIII, Santos era decadente. A Vila
comprimia-se entre o Valongo e o Outeiro de Santa Catarina e entre os morros e a praia lodacenta, onde depois foi
construído o cais. A população morria atacada pelas inúmeras epidemias de doenças, causadas pelas más condições sanitárias disseminadas pela água de
má qualidade. Também abandonavam as moradias em busca de melhor local ou para procurar ouro em Minas Gerais.
No princípio do século, a vila tinha aspecto de lugarejo prestes a se transformar em ruínas,
pois a população era pobre e não reformavam as casas. Santos transformou-se em presídio militar e fortaleza para proteger as mercadorias estocadas
em armazéns, vindas do Interior para exportação pelo porto, ou vindas da Metrópole para distribuição no Planalto.
Um desses gêneros era o sal, na época monopólio de Portugal e
proibido de ser produzido no Brasil. Havia depósitos especiais, que ficavam onde hoje é a Rua José Ricardo, para
armazenar o sal vendido aos paulistas por preços exorbitantes, muito além do estipulado pela Coroa. Os responsáveis eram os comandantes da Praça e
oficiais menores, também comerciantes.
Santos exercia, então, o seu papel de entreposto paulista, que vigorou até muito tempo
depois do século XVIII. As plantações de cana e engenhos de açúcar não produziam o bastante para enriquecer os proprietários. Estes contavam com os
escravos, que, junto aos índios, suplantavam a população santista. O primeiro recenseamento de Santos, no final do século XVIII, apontou 2 mil
habitantes.
Os comerciantes se concentravam perto do porto, no Valongo,
enquanto as bases militares ficavam para os lados do Outeiro de Santa Catarina. Os armazéns
com escravos à venda também ficavam aí. As notícias chegavam atrasadas pela dificuldade de acesso à vila, que teve sua situação um pouco melhorada
de 1750 a 1765, quando foi sede da capitania e usufruiu de algumas vantagens como novas construções e ruas.
Mas as condições sanitárias permaneceram precárias até o final do século XVIII e, depois,
durante o seguinte. Grande parte da população vivia de esmolas ou de socorros, em contraste com os padres das ordens religiosas que moravam em
confortáveis igrejas e mosteiros. Só o nível cultural elevou-se, no final, com os filhos de famílias tradicionais que estudaram com os frades das
Ordens do Carmo, São Francisco e São Bento.
Primeira doutora em História, em Santos, Clotilde
recebeu muitas honrarias
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
Clotilde, mestra em História
Clotilde Paul, 64 anos, santista, é a primeira mestra e
doutora em História Social em Santos. Atualmente leciona na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica (UniSantos), onde foi diretora no
período de 1952 a 55. Possui vários troféus e medalhas pelos serviços dedicados à educação e cultura, entre eles a medalha Paz, concedida pela
Unesco, pelo trabalho pedagógico junto à construção civil; a outorgada pela Câmara Municipal de Santos; o diploma de Mulher Destaque Internacional,
do Clube de Soroptimistas de Santos. Possui também a comenda Infante D. Henrique, outorgada pelo governo português.
Clotilde é autora de obras históricas publicadas: O Roteiro Poético de Santos,
Instituições Portuguesas da Baixada Santista e Andanças pelas Terras de Braz Cubas. Prepara, atualmente, a edição de um livro de poemas.
É autora da peça teatral Qualquer semelhança é mera coincidência, vencedora do concurso Patrícia Galvão.
A professora criou o grupo teatral Rotunda, da Faculdade de Filosofia, formado por alunos de
História. Sua filosofia de vida é "servir ao próximo". A tese A Presença da Inquisição em Santos, no Século XVIII, tem 350 páginas e foi
aprovada com o conceito Plenamente Honra. Este ano (N.E: 1991), Clotilde Paul completou 35
anos de magistério. |