Santos em 1822, em tela do pintor
Benedito Calixto
Moléstias desconhecidas, como o escorbuto, as verminoses, as boubas, a febre amarela e até as
sarnas, surgiram no litoral, provocando a decadência maior, agora física e moral dos antigos pontos de florescimento, e o desaparecimento de quanto
havia feito outrora a prosperidade e a fartura da vila santista e de toda a marinha, anulando a fibra e a capacidade de reação dos litorâneos,
tornando o século XVIII, até seus finais, o período mais vivo da decadência do indivíduo santista. (...)
Em 1748, um fato importantíssimo veio dar algum alento a Santos. Com a anexação do
território da Capitania de S. Paulo e Minas ao território do Rio de Janeiro, o governo de São Paulo passou a ser exercido em Santos, pelo capitão
Luís Antônio de Sá e Queiroga, governador da Praça, sujeito ao governador do Rio de Janeiro - situação essa que durou dezessete anos, indo até 1765,
quando foi restaurada a antiga Capitania, passando o governo para São Paulo. Poucos benefícios, porém, auferiu Santos com essa circunstância
civil-administrativa, porque o seu mal era intrínseco e só uma campanha ou providências de outra espécie poderiam curá-lo, para o que se tornava
muito necessário o fator tempo.
É desta época a primeira referência à cultura do cafeeiro em São Paulo, de que se tem
conhecimento. Por documentos de 1762 a 1770, sabe-se que o café figurava, nestes anos, como um dos produtos da agricultura e do comércio santista e
litorâneo, começando porém sua exportação somente em princípio do século XIX.
Ao findar o século XVIII, as disenterias - decorrentes do uso das águas de má qualidade
talvez -, as hepatites ou abcessos do fígado, as febres típicas ou malignas, as hidropsias, ao lado das bexigas, do "mal de 7 dias", das "boubas" e
do "gálico", eram as doenças mais comuns na vila. O alcoolismo ainda não era muito disseminado, principalmente entre os escravizados, sujeitos à
rigorosa disciplina das fazendas de cana da ilha de Santo Amaro, mas os casos relativamente freqüentes de "barriga d'água" na população livre,
principalmente entre a mestiça, preferida já então pela tísica, nos levam a pensar na cirrose dos alcoolistas.
A opilação também não era desconhecida na zona onde mais tarde se desenvolveria, causando
grandes estragos. e Frei Gaspar já apontava, naquela época, a decadência de antigos pontos do litoral, queixando-se de que os habitantes não
gostavam do trabalho, tendo abandonado a lavoura que os havia outrora beneficiado e tornado próspero.
De fato, os gêneros alimentícios, antes produzidos nas vizinhanças da Vila, começavam a vir
de S. Paulo, onde prosperava a lavoura, estando então as fazendas da Ilha de Santo Amaro reduzidas apenas à exploração da cana-de-açúcar.
O desastroso, mas bem intencionado, ouvidor Marcelino Pereira Cleto, constatando em fins do
século, na sua Dissertação, a grande decadência de toda a capitania paulista e sobretudo da marinha, reclamava, para remediar os males, a
transferência da Capital de São Paulo para Santos, o fomento da navegação direta entre este porto e o Reino, pois até então eram menos de meia
dúzia, se tanto, os navios que anualmente ali iam ter, das escassas dezenas de embarcações que constituiu todo o movimento marítimo.
"Exaurira-se S. Paulo a sacrificar no altar do bezerro de ouro das minas. Estancara-lhe,
quase, a auri sacra fames as fontes da vida".
Dizia o ouvidor Pereira Cleto, naquele final de século: "Sirvam de exemplo a vila de Santos
e seu termo, em que, em 1693, havia mais de 400 homens lavradores hábeis para servirem na Câmara, e desta qualidade não há hoje meia dúzia. E ainda
se conhece que todo o termo era povoado e cultivado; agora quase tudo são nele ruínas e deserção; o ouro da minas veio a diminuir, o negócio também
diminuiu", e, impressionando-se com as próprias palavras, bradava o magistrado (diz Affonso Taunay), sem o conselheirismo da adjetivação destinada a
efeito, interpretando somente a verdade, que "em São Paulo" ficaram todos sem minas, sem negócio e sem agricultura, "lembrando, então, que
General e ministros castigassem exemplarmente os vadios, distinguindo, no que fosse honroso e útil primeiro, a todos aqueles que mais se
adiantassem na agricultura, mineração e comércio.
O mal santista e litorâneo era conseqüência de uma natural preferência popular por outras
regiões mais ricas, sob todos os aspectos, principalmente sob os aspectos agrícola e mineral, os únicos que ultimamente interessavam à população de
toda a Capitania, e assim, somente com a organização agrícola do interior e a reorganização das exportações, poderia Santos receber uma aura de
renovação. Santos precisava de um remédio e não de um paliativo, e isso mesmo se viu com a experiência dos dezessete anos em que ela foi cabeça da
Capitania, nada lhe resultando dessa experiência, contrariamente à opinião do ouvidor Pereira Cleto.
Em 1765, sob o governo do benemérito capitão-general d. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão
e por sua ordem, iniciando a nova fase da Capitania de São Paulo, após sua desanexação à do Rio De Janeiro, foi feito o primeiro recenseamento
santista, acusando a Vila de Santos, ao fim do mesmo, uma população de 2.081 habitantes apenas, sendo 942 hormens e 1.139 mulheres, dos quais menos
da metade somente eram brancos, sendo os demais mestiços e negros. (...)
Ao final do século (N.E.: século XVIII) parecia haver melhorado alguma coisa o aspecto geral
da vila santista. Sua sociedade, talvez por instinto de conservação, pára o abastardamento em que de livre vontade se consumia, procurando fazer-se
distinguir em sua feição outrora aristocrática e procurando elevar o seu nível mental, tão descido nos últimos cem anos. Rebentava, nesse final de
século, a progênie ilustre que deveria iluminar todo o princípio do século XIX, assistida por alguns varões de sabedoria e virtudes, como Frei
Gaspar da Madre de Deus, o solitário da Capela do Monte Serrate, Bonifácio José de Andrada, o marechal Galvão de Moura Lacerda e outros. |