Defendendo a implantação do regime de oito horas de trabalho, os carregadores de café iniciaram
uma greve que paralisou toda a cidade
Foto: Fundação
Arquivo e Memória de Santos, publicada com a matéria original
MEMÓRIA
Os 100 anos de uma greve histórica
Paralisação iniciada pelos carregadores de café em 1908 é considerada a mais
violenta já registrada no porto de Santos
Joaquim Ordonez
Editor de Sindical
Eles foram chegando sem grande alarde
e atracaram como se fossem cargueiros comuns, trazendo, porém, o prenúncio de dias agitados no porto e na Cidade. Primeiro foi o cruzador Gustavo
Sampaio. Depois, da mesma forma, aportaram os couraçados Deodoro, Floriano e Riachuelo, todos trazendo centenas de
fuzileiros navais e praças de cavalaria, fortemente armados, prontos para entrar em ação. Tudo isso para controlar a rebeldia da classe operária
naquela que é considerada até hoje a greve mais violenta da história do Porto de Santos. Foi há 100 anos, mais precisamente entre os dias 9 de
setembro e 6 de outubro de 1908, período em que não apenas o complexo portuário, mas toda a Cidade ficou ameaçada.
Conforme os relatos da época, perenizados por historiadores em livros e outros documentos, o
cenário no porto assemelhava-se ao de uma praça de guerra, de um estado de sítio ou qualquer outra situação nebulosa como as vividas no período da
ditadura militar. Foram 27 dias de pura tensão que culminaram com pelo menos oito mortos e centenas de feridos nas várias
batalhas de rua e com inúmeras prisões de trabalhadores que ousaram enfrentar a repressão.
Não foi a primeira greve no cais santista - houve duas antes, uma em 1897 e outra em 1904 - mas
foi a mais violenta de todas. Foi também a primeira vez que o porto teve seu movimento comercial completamente paralisado, a ponto de ficar mais de
10 dias sem efetivar a venda de uma única saca de café.
A turbulência da greve afetou também A Tribuna, que teve sua impressão suspensa por um
período de sete dias. Em sua edição do dia 15 de setembro de 1908, no noticiário a respeito do assunto, o jornal publicava um panorama da situação
na cidade e defendia a reivindicação dos operários pela jornada de 8 horas diárias.
O texto dizia: "O dia esteve frio. Em
diversas horas do dia houve correrias pela cidade provocadas pela polícia. Os operários continuam firmes, não cedendo diante da abominada atitude da
Docas que lhes não quer conceder, como deveria, as oito horas de trabalho".
O movimento iniciado pelos carregadores contou com a solidariedade de várias categorias de
trabalhadores, como carroceiros, estivadores, trabalhadores na construção civil, têxteis, funcionários do
Moinho Santista e da limpeza pública, condutores e cobradores de bonde, empregados do
matadouro e padeiros, entre outros. Segundo historiadores, as manifestações de rua reuniram mais de 7 mil pessoas.
Número |
7 mil
trabalhadores participaram das manifestações de
rua |
|
Oito horas - O principal motivo da greve foi a introdução do regime de oito horas de
trabalho, já adotado em vários outros portos do exterior, mas não respeitado aqui. Os operários chegavam a trabalhar até 15 horas por dia e, por
isso, a redução da jornada ficou sendo a bandeira de luta dos anarco-sindicalistas que atuavam no cais santista, onde, na época,
predominava a exportação de café.
A Associação Comercial de Santos ainda tentou mediar, pedindo o
restabelecimento dos serviços na estiva, mas já era tarde demais. A desordem já predominava na cidade. De acordo com os registros da entidade,
paredistas atacaram armazéns, vaiaram a polícia, atravessaram cercas de arame nas ruas e atiraram duas bombas entre os armazéns 1 e 2 deixando
pessoas feridas e provocando danos materiais.
Derrota - Muito se falou, durante esse período, em subversão da economia nacional,
associando-se a questão das 8 horas de trabalho ao programa socialista que se pretendia instalar no País. A
Companhia Docas de Santos (antecessora da Codesp na administração do porto), por sua vez, foi acusada de oprimir os trabalhadores e de
atemorizar o povo com o enorme aparato policial militar montado para reprimir os manifestantes.
O fato é que, após 27 dias de incertezas, sacrifícios e tensão permanente, a greve foi encerrada
com a fragorosa derrota dos trabalhadores, já totalmente fragilizados, que continuaram recebendo os mesmos 60 réis por saca de café carregada,
durante 10 e até 15 horas diárias de serviço.
Apesar da união e do esforço incomum dos trabalhadores que ousaram enfrentar a poderosa Companhia
Docas, as 8 horas não foram conseguidas com a greve daquele ano. Mas, a partir daí, a implantação do regime no País iria ser apenas uma questão de
tempo.
Os carroceiros também participaram da batalha contra a Cia. Docas
Imagem: reprodução, publicada com a matéria
original
Repressão espalha pânico na Cidade
Dois fatos são apontados como responsáveis diretos pelo acirramento dos ânimos durante o período da
greve. Um deles, conforme relatam alguns historiadores, foi a intransigência da Companhia Docas de Santos, que chegou ao ponto de não reconhecer a
existência do movimento, apesar do clima de tensão que havia se espalhado por toda a Cidade. O outro motivo, da mesma forma consistente, foi a
chegada de um número expressivo de fura-greves, homens recrutados nas fazendas da Docas e do Rio de Janeiro, os quais, sob a proteção da força
militar enviada pelo Governo Federal, assumiram o trabalho que era realizado pelos grevistas.
A revolta com essas atitudes da empresa foi geral e paralisou praticamente toda a Cidade, que ficou
declaradamente a favor da greve.
A respeito do comportamento da Companhia Docas no episódio, a pesquisadora Maria Lúcia Caira Gitahy
transcreve uma citação nada elogiável, em trecho de seu livro Ventos do Mar, que faz uma abordagem dos movimentos sociais e trabalhistas
ocorridos na Cidade no início do século passado.
"A Cia. Docas gozava de grande antipatia em
Santos. Seu apelido era O Polvo. Uma empresa que era a vida da Cidade, mas que tinha sua sede no Rio de Janeiro, junto aos corredores do
palácio, não poderia ser bem vista. Pelo contrato de concessão, estava isenta de impostos".
A Tribuna, em seu noticiário do dia 11 de setembro de 1908, dizia: "Nesta
questão da greve, a culpada é a Companhia Docas. Esta absolutamente não quer ceder. E, audaciosamente, diz que não admite pessoal estranho ao
trabalho e que, garantindo-se com forças, normalizaria o serviço".
O noticiário, que também citava agressões a policiais com tiros e pedras na
Rua Xavier da Silveira, com o conseqüente revide e a prisão dos agressores, era completado com a informação da chegada de reforço policial para
conter as manifestações de rua.
O fato foi assim descrito: "Pelo primeiro trem
da manhã chegou de São Paulo mais um reforço de 50 praças, devidamente municiados, sendo 30 de infantaria e 20 de cavalaria. Esses praças entraram
logo em serviço, indo os de cavalaria patrulhar as ruas ao longo do cais e os da infantaria, guardar os armazéns das Docas, onde foram postados nas
portas, de armas embaladas e de baioneta calada".
Polícia - A prepotência, a truculência e os excessos dos militares que vieram a Santos, para
teoricamente garantir a ordem pública, também foram denunciados nas páginas de A Tribuna da época.
Sem meias palavras, o jornal relatou que a greve passaria por uma quase normalidade se o povo não
vivesse a todo instante "corrido por uma soldadesca desbragada que espadeira e agita".
E citou que a situação chegou a tal ponto que a polícia teve "o
desgosto de se ver ruidosamente vaiada na pessoa de um de seus oficiais que, na Rua XV, ordenava correrias".
A respeito das prisões, segundo o jornal, o abuso era ainda maior. "Prende-se
a todo pretexto e até mesmo sem pretexto algum. Prende-se ara dar ao público a impressão de que a situação é grave e perigosa. A cadeia está
abarrotada. Os presos vivem lá como se fossem galinhas em capoeiras, como sardinhas em lata". |