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A dança de uma cultura
Preservação, adaptação: nas asas do tempo, ranchos folclóricos contam a história de como
vive um povo, lá e cá
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
As imagens dos santos disputam o espaço exíguo na estante da
sala. Tem São Francisco, São Judas, São José e duas de Nossa Senhora - de Fátima e Aparecida. E mais uma meia dúzia de imagens, grandes e pequenas.
Mas é a figura do galo de Barcelos, em papelão mesmo, espremida entre a imponência dos santos de gesso, que dirime qualquer dúvida: trata-se de uma
casa portuguesa, com certeza.
Maria das Dores Rodrigues de Almeida, de 59 anos, é a dona dessa casa e faz questão de que seja
assim. Senão, por que as rabanadas e o pão-de-ló com calda de limão, na mesa posta para receber os jornalistas?
Ela nasceu em Viseu, distrito do centro-norte português,
em uma família de agricultores. Tinha oito irmãos. Ironia do destino, insensata lógica da vida. Chame-se como quiser, uma coisa era certa: nos anos
60 e início dos 70, alguém de sua origem passaria muita dificuldade em Portugal. O país emergia da ditadura
de quatro décadas de António de Oliveira Salazar, que deixara o país estagnado. A zona rural, em particular, sofrera demais: nessa época, era como
se o tempo estivesse parado há um ou dois séculos.
No sofá da sala, sob o olhar vigilante dos santos na estante, está Antonio Fernandes de Almeida,
de 67 anos, o marido de dona Maria, e outro de uma corrente de desterros.
Como a mulher, a família de seu Antonio também era agrária - e da mesma região. Além de sofrer o
aperto da fome, um homem jovem como ele era poderia acabar seus dias nas então províncias de Moçambique,
Angola ou Guiné-Bissau. Eram os tempos das guerras coloniais
portuguesas, ou de independência, para esses países africanos. Os jovens portugueses eram então enviados ao front para abafar a insurgência.
Se e como voltariam era outra história.
Seu Antonio e dona Maria são dois exemplos típicos dos imigrantes portugueses da onda mais
recente, ocorrida entre 40 e 50 anos atrás. Chegaram jovens e com disposição ao trabalho. A qualquer trabalho. Dessa leva, faz parte também o
empresário e atual cônsul português em Santos, Armênio Mendes. "Tinha 18 anos. A minha razão (para imigrar) foi a mesma de todos: o Exército e para
ter uma condição melhor".
Mas os portugueses existem aqui desde sempre: são um dos pilares da identidade brasileira. Em
Santos, sua marca é antiga e profunda. De Martim Afonso e Braz Cubas aos abastados comerciantes do final do século 19 - cujo melhor extrato talvez
seja o comendador Manuel Joaquim Ferreira Netto, idealizador dos badalados casarões do Valongo,
futuro Museu Pelé -, sua presença na Cidade é visível e, invariavelmente, leva o nome da colônia.
Assim, não é obra do acaso que a Beneficência seja portuguesa, por exemplo. Ou que a segunda
agremiação futebolística de Santos também. E que as cores de ambas representem as da bandeira de Portugal.
Mas, se permanecem os símbolos, esvaem-se os significados. É uma regra do tempo que se aplica a
tudo - inclusive aos imigrantes. Mudam as tradições, os costumes. Vive-se em uma corda bamba entre preservação e adaptação.
"É doloroso, no início. Depois, você se apaixona. Passa a gostar do Santos F.
C., o time da terra, por exemplo. Esquece um pouco dos gostos portugueses", diz Armênio, que na terra natal é torcedor do Sporting.
Em relação a isso, seu Antonio e dona Maria passam por situação singular: de seus três filhos, uma
jamais se interessou em mergulhar a fundo na cultura de seus pais. "Mas os outros dois estão desde pequeninos participando dos ranchos", diz dona
Maria, em um indefectível sotaque lusitano.
As danças da vida - Na região, segundo o consulado geral de Santos, são sete ranchos, ou
grupos, folclóricos - seis em Santos, um em Praia Grande. Os filhos de seu Antonio e dona Maria estão mergulhados em dois deles: o da
Associação Atlética Portuguesa, em Santos, e o da Casa de Portugal, em Praia Grande.
Os ranchos reproduzem a vida na dança, para melhor entendê-la. Muito além da diversão, as roupas e
os passos já tão familiares aos brasileiros - afinal, quem não conhece o Vira? - reúnem fragmentos do cotidiano rural português de há muitos
séculos.
"Na época da vindima ou de uma colheita de milho, as pessoas convidavam os vizinhos para ajudar",
explica o filho Antonio Carlos Rodrigues de Almeida, que toca concertina - espécie de acordeão - no rancho da Casa de Portugal e integra o grupo de
música portuguesa Filhos da Tradição.
"Chegavam de manhã, tomavam café e iam para o trabalho no campo. No fim do dia, se reuniam para
confraternizar, com comida, música e dança".
O costume era reproduzir o que se tocava e cantava na corte. Mas os passos e a temática
incorporavam o próprio trabalho na roça. O desfolhar do milho, por exemplo. Depois de colhida, separava-se a espiga das ramas que a envolvem. Vez ou
outra, do meio das espigas amarelinhas, surgia uma vermelha - o milho-rei. Rezava o costume que quem o encontrasse podia beijar quem quisesse.
As desfolhadas praticamente não existem mais em Portugal. Mas a tradição persiste na dança. A hora
do Xi-Coração (em que os participantes se abraçam), no Vira da Desfolhada, relembra justamente o beijo permitido.
Os trajes tão característicos também reproduzem o cotidiano rural. Há o de trabalho - "feio,
folgado e ferrado", como diz Antonio -, cujo avental, pesando quase um quilo, nasce no tear; também há o traje de domingo, fino, com detalhes
bordados. E não se pode esquecer dos socos. Sim, os tamancos portugueses existem e são em couro, madeira e tachas.
"Quando estão vestidas a caráter, as mulheres não podem fumar nem beber, pois no passado não era
permitido que elas fizessem essas coisas", explica a filha Ana Luiza Rodrigues de Almeida, coreógrafa do rancho da Portuguesa.
A família Almeida: Maria das Dores e Antônio Carlos (em cima); Ana Luiza e Antônio (embaixo)
Foto: Vanessa Rodrigues, publicada com a matéria
Nova imigração
Há em curso uma nova onda imigratória de Portugal para o Brasil. E ela tem a cara da imigração
brasileira para Portugal, nos anos 90: gente com qualificação, que não consegue inserção satisfatória no mercado em seu país. Embora nascida no
Brasil e de pais portugueses, a arquiteta e engenheira Rosemeire Fernandes Nunes Ali, de 46 anos, morou 14 anos em
Leiria, antes de retornar, há um ano e meio.
"Trabalhava com obras públicas, que começaram a rarear, com a crise. Meu marido, arquiteto, tinha
aceitado uma proposta e já estava aqui. Então, voltei". Não é um caso isolado e nem se restringe à construção civil: uma filha de Rosemeire se casou
recentemente em Portugal, mas o genro, da área de informática, não consegue trabalho. "Ele está desesperado, pensando em migrar".
Desde que chegou, Rose está em São Paulo e trabalhando na sua área - ao contrário dos brasileiros
imigrantes de então, que deixavam de lado a qualificação e abraçavam o que viesse, pela sobrevivência.
Foto:
Vanessa Rodrigues, publicada com a matéria
Galo de Barcelos - O famoso galinho português foi popularizado nas casas brasileiras, nos
anos 80, como galo do tempo - aquele que mudava de cor conforme as variações da umidade do ar. Mas a lenda do galo original é fantástica e bela.
Aconteceu há muito tempo na cidade de Barcelos, no distrito de Braga, de um homem acusado de homicídio ser
condenado à forca, apesar de jurar inocência. Antes da execução, pediu para ser levado à presença do juiz que decretara a sentença. Chegou na hora
em que o magistrado se banqueteava com alguns amigos.
O condenado, então, proclamou ser tão certa a sua inocência quanto o galo do banquete levantar e
dançar, durante o enforcamento. O juiz ignorou o apelo. Mas, instantes depois, no momento em que o homem era enforcado, o galo se levantou e dançou.
O juiz percebeu o erro, correu até a forca e constatou que o condenado foi salvo graças a um nó mal feito na corda.
Fado
A palavra diz tudo: do latim fatum, destino. Seria como o destino da nação portuguesa, onde
quer que ela esteja. Destino que se desenrola a partir da melancolia das notas musicais da guitarra portuguesa - por excelência, um dos dois
instrumentos do fado. O outro é o lamento da voz humana.
A origem do fado é incerta no tempo e no espaço. Acredita-se que o fado lisboeta derive
diretamente dos cânticos muçulmanos: outras teorias sugerem até que seja brasileiro, com raízes no lundum, música dos escravos. Os temas recorrentes
do fado são o amor, a tragédia, as dificuldades da vida e a saudade.
Dois nomes se destacam no imaginário fadista português: o de Maria Severa (1820-1846) e o da
mundialmente conhecida Amália Rodrigues (1920-1999).
Foto: Vanessa Rodrigues, publicada com a matéria
Na cozinha - Dizer que a culinária
brasileira tem uma base portuguesa é chover no molhado. Mas daí a afirmar que "tudo é igual" vai um abismo. Na simbiose das duas cozinhas, as
grandes diferenças estão nos detalhes.
"O bacalhau, assado no forno, lá é com azeite e temperos, apenas. No Brasil, já se coloca batata,
cebola, pimentão", compara José Paiva, oriundo do Porto, no Brasil desde 1985 e proprietário do restaurante Quinta da XV. E ele vai além dos
exemplos: o caldo verde brasileiro recebeu um pedaço de linguiça ou de costela. O português se contenta com uma rodela de salpicão.
E, quem diria, a dobradinha típica teria nascido das Tripas à Moda do
Porto, um prato com duas origens históricas presumíveis, ambas envolvendo escassez e guerra - daí o uso das
tripas de porco. Já o bolinho de bacalhau, em Portugal, é como a vingança: um prato servido frio. "Quando está quente, as papilas gustativas não
conseguem discernir os temperos", explica Paiva.
Do bacalhau à feijoada: a versão mais difundida dá conta de que teria nascido na senzala, a partir
dos restos da carne da casa grande. Ledo engano. A feijoada - mistura de feijões e carne de porco - é um prato típico não só português, mas presente
em vários países da Europa. A diferença, no Brasil, é prepará-lo com o feijão preto, oriundo das Américas.
Portugal (República Portuguesa)
Capital: Lisboa
População: 10.516.614 (2011)
Língua oficial: português
PIB: US$ 229,3 bilhões (2010)
Renda per Capita: US$ 21.558 (2010)
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): 0,809 (2011), muito elevado.
Datas nacionais: 25 de abril (celebração da Revolução dos Cravos), 10 de junho (Dia de Camões, de
Portugal e das Comunidades Portuguesas), 8 de dezembro (Dia da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal).
Colônia na região: cerca de 38 mil pessoas registradas, na Baixada Santista e no Vale do Ribeira, com
estimativa de 90 mil, caso os descendentes obtenham dupla cidadania. Proporcionalmente à população geral, é a maior colônia portuguesa do
Brasil. A predominância é de imigrantes oriundos da Ilha da Madeira e do
Concelho de Arouca. As principais entidades surgidas a partir da presença portuguesa incluem o
Centro Cultural Português, a Beneficência Portuguesa e a Associação Atlética Portuguesa. |
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