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Nova vida na Barcelona brasileira
Aos espanhóis, esse era o apelido de Santos, por causa do Porto. Aqui, eles fincaram raízes
e criaram histórias
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Já se vão 50 anos do dia em que Manoel Enriquez Casal, o
Manolo, sentiu de fato a morriña. Foi no Carnaval de 1962, na Praça Independência, em meio a um batuque e a uma alegria
que não eram seus.
Naquele dia, as lembranças afluíram, o coração apertou. E o espanhol que chegara a Santos em dezembro do ano anterior, com 18 anos, sucumbiu à
saudade das coisas e das gentes da sua Galícia natal.
Hoje com 68 anos, três filhos e bem –sucedido no comércio, Manolo até ri da tristeza de outrora –
"o Brasil é um país maravilhoso, de gente acolhedora", diz. Mas,não fosse o aperto da tristeza, o Clube da Juventude Espanhola jamais teria sido
fundado, no prédio do atual Centro dos Estudantes, na Avenida Ana Costa, alguns meses depois daquele Carnaval.
A agremiação congregava os jovens em situação similar à de Manolo: recém-imigrados de uma Espanha
ainda claudicante, após emendar uma guerra civil (1936-1939) e outra mundial, a Segunda (1939-1945). Uma de suas principais atividades eram os
bailes periódicos, realizados quase sempre no antigo Clube das Misses (Avenida Senador Feijó, esquina com Rua Júlio de Mesquita, na Vila Mathias).
Nos acordes da orquestra – quando havia uma – ou na vitrola, a trilha sonora evocava a terra
distante em pasos doble – o ritmo das plazas de touros -, rumbas, boleros. E bastava a voz do cantor cubano Bienvenido Granda – e um
ou dois copos de sangría, quando o orçamento do baile era generoso – para levar muitos às lágrimas da morriña.
Viu um negro pela primeira vez – Os bailes à espanhola ficaram para trás. O que permanece é
a Virgem do Cristal, que Manolo leva consigo em uma correntinha. A história da santa galega exalta a castidade: para resgatar uma menina que fora
injustamente difamada sem ua virtude, Nossa Senhora faz sua imagem aparecer no feudo onde vivia a moça, Vilanova, dentro de um cristal – símbolo de
pureza.
Mas nenhum milagre conseguiu afastar dos espanhóis os anos difíceis que se seguiram após as
guerras. A pobreza beirava a miséria, e a miséria sempre flerta com a fome. "Nós até tínhamos um moinho em casa, nossa situação não era ruim. Mas
cheguei a ir à escola com crianças que passavam fome".
Era a hora de descobrir a América mais uma vez. Depois da chegada de Cristóvão Colombo, em
1492, só o Brasil já recebera duas ondas migratórias de espanhóis: na segunda metade do século 19 e por ocasião da 1ª Guerra Mundial (1914-1918).
No total, calcula-se que 700 mil espanhóis vieram para o País, nas três ocasiões. Nesse
contingente, estavam Manolo, o pai, a mãe e um irmão. A família aproveitou um programa de emigração do governo ditatorial de Francisco Franco – que
se estendeu de 1939 a 1975 – e recebeu a viagem de graça. "Meu pai fechou a porta de casa, colocou a chave em uma reentrância da parede, virou as
costas e fomos embora".
Já no Porto de Santos, sufocado em um terno de casimira sob o calor abrasante do mês de dezembro,
no deck do navio, Manolo viu um negro pela primeira vez na vida. Suspeitou de uma miragem. "Fiquei parado, observando", recorda.
O movimento, os sons, as gentes do cais atestavam à família: começava uma nova, e nem sempre doce,
vida.
Do porto à construção civil – Outro irmão de Manolo já estava em Santos havia algum tempo
e conseguira um chalé para abrigá-los, na Rua Senador Lacerda Franco, no bairro Aparecida.
O detalhe é que a casa seria dividida com outras três famílias espanholas. Mesmo assim, eles eram
gente de sorte: muitos imigrantes desembarcavam sozinhos, sem falar português ou ter aonde ir. "Um deles veio no nosso navio. Ele olhou para os
lados e disse: 'Sou um passarinho perdido, tanto me faz ir pra direita ou pra esquerda'".
Esses passarinhos perdidos acabavam encaminhados por espanhóis mais afortunados a pensões
espalhadas pela Cidade, cujos donos geralmente eram espanhóis ainda mais afortunados. No início do século 20, Santos recebeu a alcunha de
Barcelona Brasileira, graças em grande parte à absorção da mão de obra espanhola pelo porto recém-inaugurado.
Já na época em que a família de Manolo se estabeleceu por aqui, a construção civil vivia uma
ebulição. Ele e seu pai foram trabalhar com carpintaria nas inúmeras obras que pipocavam pela cidade. "(O trabalho) era da manhã até a noite".
A sagrada sesta – o cochilo depois do almoço, tão caro aos espanhóis – ficou impossível. Mas, à
mesa, os imigrantes ibéricos jamais fariam concessões. O picadinho de carne com batatas, o cozido de repolho e carne de porco e o guisado de miúdos
– comprados frescos no antigo Matadouro – revezavam-se nas refeições, regadas a vinho e pão.
Galo vira peru – Manolo cresceu, casou, teve filhos. Da carpintaria, passou a vender roupas,
de porta em porta. Foi dono de bar. De uma corretora de imóveis. E hoje é proprietário de um posto de gasolina.
Já passou mais tempo de sua vida no Brasil do que na Espanha. Mas até hoje faz questão da mesa
farte e da família reunida, especialmente nas datas solenes.
No Natal, por exemplo. O peru, ele nem toca no dia 24 – "é sempre muita comida". Mesmo assim, não
pode faltar: assado, bonito, lembra o capón, espécie de galo grande, típico da região de Lugo, na Galícia. Na época natalina, um concurso
escolhe o maior galo das redondezas. "O vencedor é enviado de presente ao rei da Espanha". Pois é, em mesa saudosa de imigrante, até galo vira peru.
"Me enche os olhos", diz Manolo. E a alma.
Manoel Enriquez Casal, o Manolo: "Nós até tínhamos um moinho em casa, nossa situação não era muito
ruim". O mesmo já não podiam dizer milhares de compatriotas seus, entre os anos 30 e 40
Foto: Fernanda Luz, publicada com a matéria
Do porto à construção civil - Outro
Foto: Fernanda Luz, publicada com a matéria
Paella - Reza a lenda que um enamorado pescador de Valência - porto espanhol do
Mediterrâneo - separava um exemplar de tudo o que pescava: "Este es para ella", dizia. Com o tempo, o para ella transformou-se na
paella que o galego Augustín Estevez introduziu em Santos por meio de seu restaurante, o Vista ao Mar.
"Aprendi de um amigo cozinheiro espanhol que vivia na Argentina. Ele dizia que paella era 'el
oro de España'". Estevez, de 70 anos, chegou ao Brasil em 1961. Quando, em 1972, abriu o Vista ao Mar, deixou o tradicional filé com fritas de
lado e "houve uma época em que havia fila para comer a paella". A paella valenciana do Vista ao Mar leva camarões, lagosta, polvo,
lula, marisco, açafrão, azeite, arroz e um algo mais, que não revela. "Na vida, tudo tem segredos", limita-se a dizer. Para três ou quatro pessoas,
tentar descobrir o segredo custa R$ 200,00.
A bota Espécie de bolsa
em que o vinho é acondicionado e consumido.
É feita de couro de boi ou de pele de cabra, revestida, por dentro, com resina quente, extraída das vísceras
de animais |
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Pão e vinho - O pão e o vinho, uma dupla obsessão espanhola. "Come-se pão com tudo", conta
o cônsul honorário da Espanha em Santos, Manoel Santalla Montoto. Certa vez, em um restaurante espanhol, uma Coca-Cola custou ao irmão de Montoto 4
euros, ao passo que a refeição completa, incluindo o pão e o vinho, saía por nove.
Muiñera - A Espanha é uma terra de moinhos, especialmente a Galícia. Em boa parte do
tempo, o trabalho se resumia à supervisão do movimento das pás e rodas. Para driblar a monotonia, as famílias que tomavam conta dos moinhos
dedicavam-se a comer, beber, cantar e dançar.
Daí nasceu a Muiñera. "É uma dança bem rodada, saltada, imitando o movimento dos moinhos",
explica Márcia Dieguez de Carvalho, diretora cultural do Centro Espanhol, responsável pelo grupo folclórico Caminhos de España.
Vade retro! - Em momentos solenes ou delicados, os espanhóis promovem uma queimada para
espantar os maus espíritos. Em uma tigela, colocam-se aguardente, grãos de café, açúcar. Em seguida, ateia-se fogo e profere-se meia dúzia de
esconjuros.
"Fizemos isso aqui no Centro Espanhol na Copa do Mundo de 2010", brinca Márcia. Deu certo: como se
sabe, a Espanha foi campeã.
Espanha (Reino de España)
Capital: Madri
População: 46.063.511 (2008)
Línguas oficiais: espanhol, catalão, valenciano, galego, basco e aragonês
PIB: US$ 1,536 trilhão (2010)
Renda per Capita: US$ 28.830 (2010)
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): 0,878 (muito elevado)
Datas nacionais: 12 de outubro (Descobrimento da América) e 25 de julho (Dia de Santiago, padroeiro do país)
Colônia na região: 18 mil na Baixada Santista, sendo 80% deles oriundos da região da Galícia, segundo estimativa do Consulado Honorífico da Espanha em Santos. As principais instituições ligadas à colônia ou dela surgidas são o Centro Espanhol, o Jabaquara Atlético Clube e a Sociedade Beneficente Rosalía de Castro.
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