"E assim, na noite de 27 para 28 de junho, estourava no
velho quartel santista
a revolta da tropa, chefiada por Francisco das Chagas..."
Imagem de José Wasth Rodrigues, publicada com a matéria
Um humilde soldado e um general santistas
nos acontecimentos preparatórios da Independência
EVOCANDO A "REVOLTA DE FRANCISCO DAS CHAGAS" E AS DIVERSAS FASES DA CONSPIRAÇÃO DOS
SANTISTAS, CIVIS E MILITARES, QUE LUTARAM PELA SEPARAÇÃO DO BRASIL DA COROA PORTUGUESA
O governo da Província acabara de passar, das mãos do futuro
marquês de Aracaty, o capitão-general João Carlos Augusto de Oeynhausen Gravenburg, para o Governo Provisório de 23 de junho, daquele ano de 1821.
A praça militar de Santos estava, então, sob o governo do tenente-coronel Bento Alberto da
Gama e Sá, e abrigava no velho quartel da Rua de Santa Catarina o Primeiro Batalhão de Caçadores, parte da guarnição da
Vila, composta ao todo de um regimento.
Comandava o corpo de artilharia, distribuído entre os fortes locais - o
Forte da Praça, o de Itapema, o da Trincheira, o da
praia do Góes e o da Barra Grande - o sargento-mor, capitão José Olyntho de
Carvalho e Silva, santista de velha estirpe, filho do capitão Francisco Olyntho de Carvalho, então governador do Forte de Itapema, por direitos
hereditários.
Desde a chegada de José Bonifácio de Andrada, em 1819, que se
formara em Santos uma alentada mentalidade separatista, aparecendo, como elementos de confiança na corrente, Martim Francisco, Manoel da Silva
Bueno, o padre Patrício Manoel de Andrada, o general Antonio Cândido Xavier de Carvalho e Sousa, João Baptista Vieira Barbosa, o comandante do corpo
de artilharia, José Olyntho, e mais alguns destemerosos santistas. Do importante grupo formado, só não era santista o general Cândido Xavier, que
nascera em S. Paulo, mas se fizera em Santos e aqui passara quase toda a sua vida.
AS CAUSAS DOS MAIS RECENTES RESSENTIMENTOS
A reunião das Cortes portuguesas e seus estranhos decretos, relativamente ao Brasil, haviam
revolvido o sentimento de conformação, agitando de superfície a fundo o patriotismo dos brasileiros. No espírito de alguns patriotas mais decididos
reavivava-se a revolta contra a enorme série de proibições e restrições que, como enorme capacete de chumbo, pesava sobre os anseios de
independência abrigados nas mentes brasileiras, nos últimos trinta anos de colônia.
Assim, naquela ocasião, mercê da última política compressora do Reino e da absorção
imprudente das correntes portuguesas do Brasil - cujas autoridades, em geral, elevadas pela mesma força, estavam ainda profundamente impregnadas do
espírito da metrópole, formando na política recolonizadora ou no partido chamado "retrógrado" -, o ânimo santista, sempre desafeto às tiranias,
debatia-se em ânsias libertadoras.
Entre uma das coisas mais ofensivas, que mais deprimiam o homem brasileiro, estava a
situação dos soldados nascidos no Brasil. Seus salários estavam sempre em desproporção notável com os nascidos além-Atlântico, e só eram recebidos
com enormes atrasos, de três e quatro anos, o que lhes criava uma situação de inferioridade moral e material absoluta, tornando-os, mais, escravos
de uma situação que não podiam abandonar, do que propriamente soldados.
A ATUAÇÃO DE JOSÉ OLYNTHO
Em Santos, a situação era essa, e bem se aperceberam disso os patriotas enumerados. José
Olyntho foi encarregado de explorar a situação entre os seus comandados da arma de artilharia. Seu papel era relevantíssimo e sua responsabilidade
absoluta. Com ele estavam os armamentos grossos, os canhões de todos os portes, e os pontos estratégicos da cidade e do porto. A sua obra começou,
lenta mas eficiente.
Entretanto, como sempre acontece, o elemento civil era impaciente e irrequieto, não sabia
esperar e amadurecer as coisas. Desse modo, os patriotas santistas precipitaram os acontecimentos e, ao invés de procurarem envolver o comandante da
praça na trama conspiradora, fazendo-lhe a demonstração da situação privilegiada em que Santos se achava, para ser a iniciadora do movimento no
Brasil, uma vez que todas as fortalezas estavam com eles e no porto não poderia entrar navio algum inimigo, preferiram começar pelos soldados,
explorando a situação em que viviam, procurando elevar-lhes o moral, encontrando aí dois homens que, melhor do que os outros, se prestavam ao papel
de agitadores e sublevadores da tropa brasileira - Francisco das Chagas e José Joaquim Cotindiba, soldados do Batalhão de Caçadores.
Logo concertaram com eles um plano de sublevação, a que não eram estranhos os
Andradas, José Bonifácio e Martim Francisco, e o cônego João Ferreira de Oliveira Bueno, santistas que faziam parte do
Governo Provisório de São Paulo, onde, vitoriosa a revolta de Santos, se pronunciaria a crise e se propagaria o movimento, com a adesão de Itu,
Sorocaba, Taubaté e outras cidades paulistas.
PRECIPITANDO O MOVIMENTO
Tudo se preparara para meses depois, quando a situação no Rio de Janeiro se esclarecesse de
uma vez, mas não contavam os patriotas santistas, em sua precipitação, com a ignorância de Francisco das Chagas e Cotindiba, dois homens rudes, de
pouquíssimas letras e mentalidade nenhuma, os quais, sentindo-se moralmente fortes pelo apoio social e político que lhes vinha inesperadamente,
entraram a levantar, imediatamente, o pessoal desgostoso da infantaria.
E, assim, na ignorância do capitão José Olyntho, já na noite de 27 para 28 de junho,
estourava no velho quartel santista a revolta da tropa, chefiada por Francisco das Chagas, caracterizada por atos que não estavam capitulados no
plano de ação dos patriotas, nem do comandante da tropa de artilharia.
VIOLÊNCIAS E VINDITAS DOS REBELADOS
Todos os oficiais, reconhecidamente portugueses de sentimento, ou os que haviam feito uso de
maus tratos em dadas ocasiões, foram presos e executados pelos soldados exaltados, auxiliados por muitos populares, que haviam aderido ao movimento.
Ébrios na repentina liberdade, desvairados pela
possibilidade, tantos anos sonhada, de satisfazer desejos de vindita [1],
aqueles homens incultos derramaram pela Vila, obliterada a razão, e comprometidos até certo ponto os próprios sentimentos, dando arras
[2] aos seus impulsos e expansão ao seu delírio. Daí, os exageros verificados em suas
manifestações, de outra forma justificáveis, os assassínios perpetrados e os incêndios havidos, contra as pessoas visadas e suas propriedades, os
esbordoamentos, e, finalmente, o saque, praticado contra negociantes reconhecidamente retrógrados.
Diante da precipitação com que se fizeram as coisas, retraiu-se o comandante José Olyntho;
fingiu ignorar o movimento, e reteve imóvel a sua guarnição, como desinteressados os Fortes, principalmente o de Itapema, comandado por seu pai, que
mais perto ficava da cidade.
Diante dos exageros praticados pela tropa, haviam-se também retraído, para não comprometer
definitivamente a idéia, os próprios compatriotas, já de si surpresos pela precipitação de Francisco das Chagas. Não compreendiam, e nisso andaram
mal, que a tragédia moral daqueles pobres soldados, escrita durante tantos anos, a vergonha e a fome, para si e para os seus lares, pudesse
sobrepujar-se à razão dos seus martirizados; daí o seu erro e o seu retraimento no ponto mais solene dos fatos consumados. O povo, porém, pareceu
compreender e justificar as loucuras da tropa brasileira, aderindo em parte e perdoando-lhe os desatinos.
FASES DE COMBATE DA REVOLTA
Uma corveta real achava-se fundeada ao largo do estuário, fronteira à embocadura do rio da
Bertioga. Fizera um disparo de advertência, e Francisco das Chagas, como resposta, assentara as peças de artilharia do velho Forte da Praça,
abandonado à sua gente, sem resistência, e atacara violentamente o vaso de guerra da Coroa, forçando-o a retirar-se para além do Paquetá, descendo
ali a sua guarnição armada, para reforço às tropas fiéis.
A 30 de junho chegava ao Governo Provisório de São Paulo a notícia do levante.
Perguntava-se, então, entre os elementos retrógrados, onde estava a guarnição das fortalezas santistas, onde estava o general Cândido! O Governo
Provisório declarou-se em sessão permanente, durante quarenta e oito horas.
RENDIÇÃO DE FRANCISCO DAS CHAGAS
A 6 de julho, enviado pelo general João Carlos Augusto, chegava a Santos o 2º Batalhão de
Caçadores, sob o comando dos coronéis Lázaro José Gonçalves e Daniel Pedro Muller, aquele secretário da Guerra e este Vogal, pelas Armas, no Governo
Provisório. Nesse mesmo dia, dava-se a rendição de Francisco das Chagas, que declarava não querer sacrificar seus camaradas à disparidade das forças
e dos armamentos, saber qual o castigo que o esperava, e assumir toda a responsabilidade do acontecido, não lhe importando a morte, desde que tinha
vingado os brios brasileiros e pisado as insígnias régias, sobrepondo, ainda que apenas por alguns dias, a dignidade brasileira à tirania dos
dominadores.
Espírito semi-rude, o humilde soldado santista, segundo o depoimento dos homens daquela
época, soube ser digno na queda, negando-se a comprometer seus chefes civis e militares, declarando-os em completa ignorância da conspiração e
alguns até ausentes da Vila, em seus sítios.
No dia 7 de julho de 1821, o Governo Provisório de São Paulo publicava um
"bando" [3] em que dava à Província a festiva notícia da retomada da Praça
Militar de Santos com a rendição dos "infames rebeldes" (sic).
Como final da bernarda [4]
histórica, as vergas da corveta real, surta no porto, encheram-se de corpos balouçantes de soldados brasileiros sacrificados à justiça sumária do
comandante.
OS CABEÇAS LEVADOS PARA SÃO PAULO
Francisco das Chagas e Cotindiba foram os únicos que seguiram presos para São Paulo,
aparentemente pelo fato de serem os cabeças do motim, personificadores do espírito de indisciplina que era preciso extinguir na colônia brasileira,
mas, na verdade, por proteção dos irmãos Andradas que, sem afrontar visivelmente a grande força dos retrógrados de São Paulo, queriam tentar a
salvação de tão dignos soldados de sua terra.
A semente estava lançada, porque a revolta ecoara em todos os pontos do país, e
principalmente no Rio de Janeiro.
A 28 daquele mesmo mês de julho, decretavam as Cortes portuguesas que
exércitos brasileiro e português fossem uma só corporação. Decreto maquiavélico, que visava o exército do Brasil, inteiramente, ao comando de
oficiais lusos ou adeptos da recolonização, e cujos intuitos foram imediatamente percebidos. Fervia, pois, o grande problema brasileiro, resumido na
frase de Shakespeare: "To be or not to be!" [5]. Avivavam-se
terrivelmente os sentimentos nativistas do nosso povo.
A EXECUÇÃO DE CHAGAS
A 20 de setembro de 1821, efetuava-se a execução de Francisco das Chagas, em São Paulo, no
Campo da Forca, em terreno vizinho ao cemitério geral, onde hoje é a Praça da Liberdade!
Apesar de indicarem os documentos da época que a corda para a execução era nova, comprada
nas vésperas, sabe-se que ela se rompeu três vezes durante o ato da Justiça, verificando-se a execução na quarta tentativa, já com as sombras da
noite. Tudo rezam depoimentos importantes de alguns íntimos dos Andradas. Na quarta tentativa, o paciente já não era mais Francisco das Chagas, e
sim outro condenado trazido para o lugar daquele, com a proteção e a ajuda do capucho a sombrear-lhe ainda mais o rosto.
Francisco das Chagas obtivera escápula para o interior da Província. Pouco depois, por
transpirar entre os "retrógrados" o boato da mistificação, forjaram a queda de Martim Francisco e sua imediata prisão. Naquela época, José Bonifácio
de Andrada já estava no Rio de Janeiro, e Martim Francisco foi remetido para lá, preso e escoltado, onde, em lugar de uma prisão, esperava-o a
glória do Ministério, ao lado de seu irmão.
PROSSEGUIU A CONSPIRAÇÃO EM SANTOS
Em Santos, serenado o ambiente com a passagem daqueles fatos agitados e a subida de
Francisco das Chagas para São Paulo, puderam os conspiradores locais, novamente, estender a sua trama. José Olyntho de Carvalho voltou a conspirar
com seus pares.
Em 1822, em agosto, à frente de todo o seu Corpo de Artilharia, reforçando as tropas do
general Cândido Xavier, seguia o militar santista contra São Paulo, onde os "retrógrados" haviam tornado possível a bernarda de Francisco Ignácio. A
subida da tropa santista era produto de articulação com José Bonifácio, que na mesma ocasião fazia seguir do Rio para S. Paulo o corpo "Leais
Paulistas", de 1.100 homens das três armas, como faria seguir o próprio Príncipe Regente, deslocando para sua Província o problema da Independência,
onde era mais certa a sua resolução.
Liquidados os acontecimentos de São Paulo pela pressão das forças militares paulistas
seguidas de Santos e do Rio, e pela chegada do Príncipe, passou Santos a ser olhada como ponto de confiança na grande jornada brasileira que se
avizinhava.
A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
Nos primeiros dias de setembro chegava o Príncipe a Santos. José Olyntho foi-lhe apresentado
pelo general Cândido Xavier, como um dos melhores elementos da separação. Em companhia de ambos e do novo governador da praça, d. Pedro procedeu à
revista das fortalezas, verificando o seu apresto e sua eficiência, passando em revista a guarnição de todas, ordenando o seu imediato aumento com
forças de infantaria, pois que, talvez, muito breve, tivessem que entrar em função.
A 5 do mesmo mês partia o Príncipe, de Santos (N.E.: na
verdade, no dia 5 ele descia a Santos, de onde retornaria na madrugada do próprio dia 7), e a
7, nem bem chegado a São Paulo, já fazia a Independência do Brasil. Nada mais havia a esperar e a recear com tal apoio de S. Paulo.
Santos concorrera, acima de qualquer outra cidade, para o grande passo nacional, por si e
por seus filhos.
No dia seguinte, José Olyntho de Carvalho era promovido a coronel inspetor das fortificações
da praça de Santos e recebia, por ordem do príncipe-imperador, ainda em S. Paulo, o hábito e a comenda da Ordem de Aviz. Pouco tempo depois, era
governador da Praça e recebia a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.
Era um vulto da Independência que se revelava, sem sair de sua terra; era um dos santistas
esquecidos pela posteridade, um cabo de guerra ilustre, que morreria século a dentro, no altíssimo posto de marechal.
N. E.:
[1] vindita - vingança
[2] arras - expansão, ensejo,
oportunidade
[3] bando - pregão público,
proclamação
[4] bernarda - alvoroto,
revolta, motim popular
[5] "To be or not to be!"
- "Ser ou não ser!" |