Quase nos fins do II século, a pacata população da vila de
Santos dá conta desse fato espantoso: pela estrada que comunica, pela serra de
Cubatão, o planalto paulista com o litoral de S. Vicente, marcha e se aproxima lentamente, em som de guerra, o
mais luzido exército que por ali jamais se viu. Cerca de mil pessoas o compõem. Nele figuram os mais poderosos caudilhos de São Paulo, arrastando
cada qual o seu clã de capangas. É uma demonstração de força, teatral e
imponente, que um grupo de potentados do alto da serra faz a um outro potentado do litoral, Diogo Pinto do Rego, homem de alto respeito e grandes
posses em Santos. Diogo do Rego havia desrespeitado, com arrogância afrontosa, Timóteo Correia, provedor da fazenda naquela cidade e membro da
poderosíssima "gens" dos Taques e Almeidas.
É o caso que um tal José Pinheiro, do clã de Diogo do Rego, tendo de retirar da
Alfândega um pequeno volume, achou que não devia pagar o
imposto devido e, fiado naturalmente no poder do seu protetor, arrebata violentamente o volume, levando-o para casa. O provedor manda prendê-lo e o
recolhe à cadeia. Diogo do Rego, potentado caprichoso, irrita-se com isto, vai à cadeia, ameaça o guarda, solta o preso. Tal como fazem ainda hoje,
no Norte, os caudilhos sertanejos.
Por essa época a solidariedade parental é vivíssima. Timóteo
Correia é enteado de Pedro Taques de Almeida, um dos chefes das ilustres casas dos Taques, dos Almeidas e dos Barros. Ofendido Timóteo, toda a sua
parentela se sente também ofendida. O velho Taques convoca todos os parentes para combinarem o meio melhor de tomar uma desforra. Reunidos em
concílio ardente, resolvem, afinal, descerem todos, Timóteo Correia, Pedro Taques e "demais parentes de autoridade", com os seus homens de armas,
até o litoral, para tornar a prender o culpado, desagravar o provedor e sustentar-lhe "a jurisdição e o respeito".
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Congregados os clãs respectivos, Timóteo Correia, os seus parentes e os seus
amigos, "com copioso número de índios administrados", saem de São Paulo com destino a Santos. O cortejo forma, na estrada do Cubatão, segundo
Taques, "um corpo de mais de mil pessoas".
Na testa da coluna está Timóteo Correia, ladeado por sua mãe, D. Ângela de
Siqueira, figura varonil de matrona romana, vivamente empenhada pela desforra do filho. Junto dele, o velho Pedro Taques, com "uma guarda de mais de
cem homens armados". Logo após, os representantes da "gens" dos Barros, os irmãos Fernão Pais de Barros, Pedro Vaz de Barros e Antônio Pedroso de
Barros, tios de Timóteo Correia, por parte de D. Ângela de Siqueira. Depois os "briosos Pires e Almeidas" da formidável "gens" dos Almeidas,
Francisco de Almeida Lara, João Pires Rodrigues de Almeida, José Pires de Almeida, Pedro Taques Pires e Salvador Pires de Almeida, todos sobrinhos
de Pedro Taques.
Depois, os representantes da "gens" dos Taques, Luís Pedro de Almeida, Antônio
Pedro Taques, José Pompeu de Almeida, Maximiliano de Góis e Siqueira e Lourenço Castanho Taques, todos sobrinhos de D. Ângela. Por fim, fechando a
coluna, o poderoso clã do "grande Guilherme Pompeu de Almeida", composto de "escolhidos soldados da melhor nobreza da vila de Parnaíba, debaixo do
comando do capitão-mor Pedro Frazão de Brito", também parente de Timóteo Correia.
Durante três dias e três noites, esse poderoso exército desfila, na melhor
ordem, morosamente pela encosta do Cubatão. Chega, afinal, a Santos. Entra a cidade. Em torno da casa de Diogo Rego estende as suas forças, em linha
de assédio. Rego havia sido avisado, com antecedência grande, dessa demonstração. Como bom potentado, não se atemoriza. Resolve enfrentar os
caudilhos da serra. Transforma sua casa em fortaleza. Nas paredes da frente e dos fundos abre várias troneiras, em que introduz arcabuzes, "para
disparar quando os paulistas intentassem cercá-lo". Recolhe nos seus paióis e adegas "muita pólvora e balas, com fartura de víveres e sustento de
carnes secas, e tudo quanto discorreu poderia carecer sem necessidade de abrir as portas para fornecer-se da praça".
Prevendo a hipótese de ser detido, mina toda a casa com barris de pólvora. Feito o
que, recolhe-se com "todos os seus apaniguados, mulatos, escravos e pretos, de que tinha número grande, e homens seus agregados, destros na pontaria
das escopetas e arcabuzes, e com José Pinheiro, seu compadre". É uma situação verdadeiramente inexpugnável. Diante dessa formidável fortaleza, os
sitiantes ficam em atitude embaraçosa: sem ânimo para o assalto, mas sem quererem também sofrer a desonra do recuo.
Os padres carmelitas, franciscanos e jesuítas, residentes na Vila, intercedem
com os seus bons ofícios. Mas Diogo do Rego se conserva intratável, como intratável se conserva Pedro Taques.
Nessa indecisão, um expediente diabólico acode aos sitiadores: utilizar as
peças de artilharia do forte. Descavalgam-nas das baterias e trazem-nas, a braços de homens, para fora e as assestam contra a casa de Diogo do Rego.
Este, compreendendo o irremediável da nova situação, cede, entregando o seu protegido José Pinheiro, que é, afinal, recolhido novamente à cadeia. E
a calma volta à cidade, entre o bimbalhar de sinos pelo acontecimento...
No meio de toda essa luta, é curioso notar a atitude das
autoridades públicas, a quem incumbe a segurança da ordem social. Elas não aparecem senão como simples espectadoras do tumulto. Em regra, recuam,
cautelosas e tímidas, diante desse poder formidável que os latifúndios elaboram. [220]
[...]
[219]
V. Pedro Taques - Nobiliarquia Paulistana.
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V. Taunay - História Geral das Bandeiras, II, 183.
Veja a obra completa - que inclui um relato sobre
os bandeirantes vicentinos -: clique na imagem abaixo para abrir o arquivo em formato Adobe PDF (1,29 MB), disponível
também no site Domínio Público (obra sf000067):
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