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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Uma batalha entre São Paulo e Santos... (2)

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A mesma história relatada por Menotti del Pichia em 1922 - e também em 1920 por Oliveira Vianna - tem outra apresentação na obra História de Santos, de Francisco Martins dos Santos (2ª edição, conjunta com a Poliantéia Santista de Fernando Martins Lichti, Ed. Caudex Ltda., São Vicente/SP, 1986, volume II, capítulo XVIII, páginas 153 a 156):
 
Espírito de justiça de uma época e de um homem

Assim denominamos ao acontecimento principal da vila santista, ocorrido entre os anos de 1684 e 1685, onde se revela o espírito de justiça de um jovem de 14 anos, tornado, nessa idade, provedor da Fazenda Real da Capitania, evidentemente inspirado por toda a sua grande facção de apoio, mas constituindo exceção e exemplo na história da administração brasileira.

Timóteo Corrêa de Góis, havia alguns anos já, recebera, por herança de seu pai Sebastião Fernandes Corrêa, os cargos de provedor e contador da Fazenda Real e vedor da gente de guerra no presídio da Praça de Santos. Sua idade, porém, não lhe permitira que os assumisse, pelo que por nomeação de sua mãe, d. Ângela de Siqueira, exercera os referidos cargos até o ano de 1684 seu padrasto, o cavaleiro fidalgo da Casa Real: Pedro Taques de Almeida.

Naquele ano, completando a idade de 14 anos, Timóteo Corrêa de Góis desceu de São Paulo, acompanhado de grande séqüito da notável e valiosa parentela, a ocupar os lugares que a sua instrução e o seu discernimento, apesar da pouca idade, fa-lo-iam honrar de pronto.

Como estava vizinha a festa da Páscoa, após assumi-los tornou Timóteo Corrêa com seus parentes a São Paulo, deixando o escrivão com o encargo de despachar as cargas que viessem para a Casa da Alfândega, na forma do Regimento da Fazenda.

Estavam todos em São Paulo e vizinhanças, quando entrou no porto de Santos uma embarcação vinda do Rio de Janeiro, trazendo, entre outras cargas, uma caixa que devia pagar 480 réis de direitos, importância que se distribuía, então, pelo juiz, o escrivão e o meirinho da Alfândega. Tal caixa pertencia a José Pinheiro, homem casado e morador em Santos, como rezam as crônicas.

Considerando José Pinheiro que o novo provedor e juiz da Alfândega era apenas um menino, pelos poucos anos, e se achava ausente em São Paulo, valendo-se da sua projeção, resolveu retirar aquela caixa, arbitrariamente, sem nada pagar daqueles direitos de 480 réis. Afinal, era apenas uma pequena caixa que se poderia carregar sob o braço.

O escrivão da Alfândega deu conta disso, o mais depressa que pôde, ao provedor Timóteo Corrêa de Góis, que considerou a ação condenável pelos efeitos morais que produziria e pela ofensa que constituía a si e à Fazenda Real. Comunicou o fato ao padrasto, o capitão-mor Pedro Taques de Almeida, o qual, chamando a si as providências cabíveis, ordenou ao escrivão e ao meirinho que recolhessem à enxovia da cadeia de Santos o culpado José Pinheiro, antes de qualquer outra providência.

A ordem do capitão-mor foi executada; entretanto, o preso era compadre e protegido de Diogo Pinto do Rego, pessoa da maior autoridade social na vila e que recentemente deixara o cargo de capitão-mor governador da Capitania, exercido por duas vezes. Lembrou-se José Pinheiro de apelar para a sua proteção, levando-o a discordar do ato oficial que punira seu compadre, a ponto de ir em pessoa à cadeia para libertá-lo, com flagrante escárnio à autoridade do provedor e com grande escândalo de toda a população da vila.

Esse procedimento de Diogo Pinto do Rego acendeu os ânimos, não só do capitão-mor Pedro Taques de Almeida, como de Timóteo Corrêa de Góis e de todos os seus parentes, entre eles os poderosos Fernão Pais de Barros, Pedro Vaz de Barros e Antônio Pedroso de Barros, conhecidos paulistas e bandeirantes, que, em reunião de família, resolveram descer a Santos para castigar a insolência.

Dessa resolução teve aviso o ex-capitão-mor Diogo Pinto do Rego, e, ao invés de reparar o mal feito, assumiu a responsabilidade do ato e declarou-se disposto a sustentar o rompimento e enfrentar as conseqüências que se declarassem.


Rancho Grande dos Tropeiros, concluído em 1837 na área onde 150 anos antes ocorrera o ato rebelde de Diogo Pinto do Rego
Imagem fotografada originalmente com técnicas especiais para o Calendário de 1978 editado pela Progresso e Desenvolvimento de Santos S.A. (Prodesan), com o tema Quadros de Benedito Calixto

As casas de morada de Diogo Pinto do Rego eram de sobrado, com quatro salas de largura e tinham a frente para a rua que corria do Carmo até o lugar que chamavam Quatro Cantos (atual Rua Quinze de Novembro), deitando fundos para o Campo da Misericórdia (depois Largo da Coroação e hoje Praça Mauá), em local aberto e raso, que se estendia até as fraldas do Monte Serrate, onde hoje se vêem a antiga fonte do Itororó e a Repartição do Saneamento.

Nessas casas, cujos fundos tornavam-se mais importantes do que as frentes naquela emergência, entrincheirou-se e fortificou-se o ex-capitão-mor, fazendo abrir nas paredes e paredões, da frente e dos fundos, várias "troneiras" dotadas de arcabuzes, para defesa quando os paulistas intentassem atacar.

Todos os elementos necessários à sustentação de um cerco foram reunidos ali por Diogo Pinto do Rego - armas e munições, água e víveres diversos em grande cópia - para evitar uma rendição por falta de resistência ou por efeito de sede e fome.

Recebendo os avisos do dia certo em que chegariam, a Santos, as tropas do provedor Timóteo Corrêa de Góis, meteu-se Diogo Pinto do Rego em suas fortificações, com sua filha Da. Ana Pinto da Silva, o réu causador de tudo aquilo, José Pinheiro, sua família e sua gente, mais os seus apaniguados, mulatos, negros e escravos, que eram em grande número, além de assalariados, homens destros na pontaria dos arcabuzes, à espera do ataque.

Amigos e religiosos, autoridades diversas, vereadores e outras pessoas empenhavam-se em demover Diogo Pinto de semelhante loucura, pedindo-lhe que não continuasse em seus propósitos absurdos e sobretudo inúteis, mas, por mais que invocassem todos as conseqüências e toda a inutilidade dos seus preparativos, nada conseguiram do espírito rebelado do ex-capitão-mor.

A esse tempo, chegava a Cubatão o pequeno exército do provedor Timóteo Corrêa de Góis. Vinham à frente o provedor, sua mãe dona Ângela de Siqueira e seu padrasto, o capitão-mor Pedro Taques de Almeida, com uma guarda de mais de 100 homens armados, e a seguir Fernão Pais de Barros e seus irmãos Pedro Pais de Barros e Antônio Pedroso de Barros, tios do provedor, depois ainda os famosos Pires, Francisco de Almeida Lara, João Pires Rodrigues de Almeida, José Pires de Almeida, Salvador Pires de Almeida e Pedro Taques Pires, todos seguidos de seus homens, gente adestrada nas guerras e nas bandeiras.

Fechando a grande coluna, Luís Pedroso de Almeida, Antônio Pompeu Taques, José Pompeu de Almeida, Maximiano de Góis e Siqueira, Lourenço Castanho Taques e o capitão-mor de Parnaíba, Pedro Frazão de Brito, comandando as tropas que marchavam à custa do grande Guilherme Pompeu de Almeida, num total de mais de mil homens.

Durante três dias e três noites realizou-se o transporte de toda aquela gente em canoas e batéis até o caminho de São Vicente (o antigo Caminho do São Jorge, que chegava a Santos por cima dos morros), por onde marcharam todos até a base do Monte Serrate (antigo São Jerônimo), por onde surgiu o enorme acampamento de barracas de palha, seguindo a figura de três linhas paralelas, iniciadas no Itororó e a terminar pouco além da fonte de São Jerônimo (junto à encosta do atual Morro do Fontana) - em comprimento de um tiro de mosquete - segundo a expressão da época.

A frente do acampamento dava para os fundos da casa-forte do capitão-mor Diogo Pinto, de onde sua gente assistia a todos aqueles preparativos, e onde o ex-governador havia acumulado barris de pólvora para a hora final, quando ele se visse forçado à rendição e preferisse deitar-lhes fogo para a explosão que levaria tudo pelos ares, casas e gente, com estrago geral de vidas e propriedades naquela redondeza.

A população da vila, ciente da intencionada barbaridade, sentindo o que aquilo representaria para todos, procurava o Carmo, ali vizinho, para que os religiosos daquela Ordem, por sua vez, procurassem demover a Diogo Pinto do Rêgo da loucura pretendida, apelando para a sua consciência de católico, que, "certamente, não queria incorrer nas desaprovações de Deus e da Igreja".

Por sua vez, recebendo as comissões de povo e religiosos, o provedor Timóteo Corrêa e seus parentes exigiam a rendição de Diogo Pinto do Rêgo e a entrega do réu José Pinheiro. Não desistiriam de uma punição, que, por menor que fosse, era necessária para exemplo e moralidade da Justiça. José Pinheiro deveria voltar para a mesma prisão de onde o fora tirar a audácia de Diogo Pinto, seu compadre, e sem tal procedimento era impraticável qualquer tentativa de pacificação.

Eram já passados três dias sem que a intervenção das embaixadas populares e religiosas (do Carmo, de S. Francisco e seculares) houvesse conseguido alterar a decisão de ambos os campos. Todo o corpo de armas de Timóteo Corrêa de Góis continuava a postos, à espera da rendição incondicional de Diogo Pinto do Rego. Esperariam as forças sitiantes que a fome e a sede chegassem ao fortim do ex-governador, já que os comandantes, sabendo-o altamente fortificado e disposto a fazer estourar os barris de pólvora, não queriam levá-lo a esse extremo, nefasto a toda a vila.

Foi quando ocorreu a um primo do provedor Timóteo Corrêa, o cidadão Domingos Dias da Silva, que no Forte da Praça ou de Nossa Senhora do Monte Serrate, ali ao lado do antigo Colégio dos Padres Jesuítas (Alfândega de hoje), existiam nove peças de artilharia de grosso calibre, cavalgadas em carretas.

Correu ele a transmitir a seu tio, o capitão-mor Pedro Taques, a idéia que tivera. Pedro Taques aproveitou-a imediatamente. Designou um corpo de cem índios para desmontar as referidas peças, bem como conduzir as carretas para o seu acampamento, onde fez dispô-las em ordem de tiro, assestadas para os fundos da casa-forte de Diogo Pinto do Rego, preparadas algumas cargas que seriam detonadas caso continuasse a sua teimosia.

O aparecimento das grandes peças de artilharia grossa foi a água na fervura. Puderam mais as grandes bocas de fogo assestadas para o fortim do ex-governador do que todos os apelos à sua consciência civil e religiosa. Diante da realidade da força, o ultimatum final de Timóteo Corrêa de Góis teve outra acolhida no fortim assediado.

Reconheceu Diogo Pinto do Rego a inadvertência em que caíra, levado por seus arroubos de homem de guerra, que tantos louros conquistara no Reino, nas fronteiras de Portugal, e rendeu-se, declarando-se arrependido do erro que praticara.

O ex-governador da Capitania mandou entregar a Pedro Taques de Almeida o réu José Pinheiro, que foi mandado recolher, de imediato, à enxovia de onde havia sido arbitrariamente retirado, com grossos grilhões aos pés, como símbolo da Justiça vencedora.

Em seguida entregou-se ele mesmo com toda a sua gente, e, quando o povo esperava a execução de José Pinheiro, mais a rigorosa punição do ex-governador, o menino de quatorze anos, Timóteo Corrêa de Góis, sobrepondo sua opinião à vontade de muitos daqueles seus parentes que o acompanhavam, homens rudes e bravos, famosos na paz e na guerra, estabeleceu solenemente que duas horas de prisão com grilheta para José Pinheiro e o pagamento dos 480 réis dos direitos sonegados bastavam para desafrontar a Justiça e produzir os necessários frutos no espírito do povo. Diogo Pinto do Rego seria apenas admoestado, já punido como estava pela própria derrota [1].

Houve festa em Santos. Todos os sinos das igrejas repicaram festivamente. Houve salvas de artilharia. Na igreja do Carmo cantou-se solene Te Deum em ação de graças, e, publicamente, na mesma igreja, abraçaram-se uns e outros, horas antes soldados de dois campos adversos, como se não houvesse vencidos nem vencedores, com aquelas amplas demonstrações na pacatez da vila santista, tão necessitada da união de todos os moradores.

Este fato extraordinário, e único, pôs em respeito e grande autoridade a pessoa de Timóteo Corrêa de Góis, revelando uma estranha maturidade do administrador de 14 anos e uma inacreditável clarividência de seu padrasto, o capitão-mor Pedro Taques de Almeida, aceitando uma quase esdrúxula decisão, que parecia desprezar todo o gasto e todo o sacrifício dos parentes e amigos vindos de longe, para que a justiça se fizesse como seria de esperar e como eles imaginavam.

Quatro ou cinco anos depois, em 1689, Timóteo Corrêa de Góis casava-se e vinha morar em Santos, aqui encontrando um ambiente de paz e de bênçãos, e aqui fixando-se por toda a vida [2].

Timóteo Corrêa de Góis faleceria no ano de 1732.


NOTAS:
[1] Consta que Diogo Pinto do Rego, não resistindo à vergonha moral da derrota e ao tipo de castigo que lhe dera Timóteo Corrêa de Góis, incapaz de suportar as críticas que o povo inteiro fazia às suas bravatas destruídas por um menino de 14 anos, desapareceu de Santos, mudando-se da vila ou voltando para Portugal.

[2] Elementos e transcrições de Pedro Taques: Nobiliarchia Paulista; e Luiz Gonzaga da Silva Leme: Genealogia Paulistana.

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