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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS 1888/89
A cidade e a Abolição

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No final da Monarquia, em Santos, as campanhas abolicionista e republicana eram na prática uma só, com os mesmos personagens, nos mesmos locais, simultâneas. Se o trabalho dos abolicionistas terminou em maio de 1888, com as festas pela promulgação da Lei Áurea, o dos republicanos se completou um ano e meio depois, com a Proclamação da República.

Em sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade, o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição). Nesta edição especial - exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda -, as principais matérias não tiveram identificação de autoria, a não ser de forma genérica no expediente do jornal. Basicamente o mesmo texto, porém, foi incluído na obra História de Santos, como sendo de Francisco Martins dos Santos, um dos citados no expediente daquele jornal:

Os barracões de Quintino de Lacerda, últimos vestígios do Jabaquara, onde ele terminou seus dias, a 13 de agosto de 1898 - Aspecto tirado em 1900
Foto publicada com a matéria

Santos nas campanhas da Abolição e da República

"Em princípios de 1887, o presidente da província, Queiroz Telles, mostrando o que era a obra libertadora dos paulistas, telegrafava ao governo do Rio de Janeiro "que não era mais possível conter a evasão dos escravos na província, porque os soldados haviam feito causa comum com os abolicionistas, favorecendo a passagem dos fugitivos para a cidade livre de Santos"."
(Júlio Conceição - Depoimento Histórico)
"Onde, porém, o abolicionismo dominou todas as consciências, numa impressionante unanimidade de opiniões, foi na cidade de Santos. Desde que um escravo conseguia pisar as ruas daquele porto, era, de fato, homem livre, e mais, encontrava trabalho remunerado para seus braços".
(Evaristo de Moraes - A Abolição)

Os movimentos da Abolição e da República tiveram, na cidade de Santos, indiscutivelmente, um grande fator de propulsão e triunfo. Em resumo, procuraremos relatar, a seguir, a participação santista nesses dois grandes passos da nacionalidade.

Coube a Santos, por intermédio de um seu filho ilustre, a primeira demonstração pública de sentimento abolicionista em forma de protesto parlamentar. José Bonifácio de Andrada e Silva, no ano de 1823, entregou à consideração da mentalidade brasileira, altamente representada na Assembléia Constituinte do Império, realizada naquele ano, a sua famosa Representação sobre a escravatura, peça magnífica onde a capacidade de um homem revelava toda a miséria social já produzida pela escravidão e todas as desgraças que ela devia ainda produzir para o novo país em formação, sugerindo os meios de extingui-la sem choque para a economia particular.

Para a elaboração daquele monumento de cultura, patriotismo e humanidade, parece ter-se inspirado José Bonifácio no exemplo vivo da sua própria terra, pequena vila então, de 5.000 habitantes apenas, dos quais 2.000 eram escravos e 3.000 livres, que já sofria as conseqüências do mal combatido, pagando-o com a apresentação, rigorosamente demográfica, de 1.400 mestiços, mulatos, cafuzos e caboclos, entre as duas populações, quase a metade de ambas, motivo indiscutível do seu atraso material de então.

Apesar de não combater somente o estado social brasileiro, estagnado e mórbido, decadente pela mestiçagem aviltante, mas de apresentar também as medidas de previdência e aplicação necessária à extinção do escravismo sem choque imediato para o capital, seu projeto caiu diante da barreira intransponível do sistema arraigado e dos interesses em jogo. Ele vencera a política de dois reinos, por assim dizer, fazendo uma nação, mas não pôde vencer o egoísmo de uma sociedade que comerciava os seus semelhantes, tresandava a sangue e degradava o Brasil.

Isso, talvez, mais do que outro qualquer fator, concorreu para sua queda e desprestígio. Recearam que as "idéias malucas" do homem que fizera a independência de um povo, fizessem também a de uma raça, e a desgraça da plutocracia brasileira.

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Um problema paulista - As palavras do grande santista, entretanto, não haveriam de cair somente no campo sáfaro da Corte, síntese do escravismo de todo o Império. Estava escrito que elas, como sementes novas e generosas, deveriam encontrar o chão amigo e fértil de sua Província, onde germinariam para honra da Nação em princípios e enaltecimento de São Paulo. Assim, desde aí, a substituição do braço escravo pelo braço livre entrou a constituir um problema paulista, sempre sob estudo e aplicação.

A reação popular, o movimento abolicionista propriamente dito, só teve início em Santos e São Paulo após a terminação da guerra do Paraguai, em 1870.

Desde que se fundara em São Paulo, em 1868, o Partido Liberal-Radical, onde se enfileiravam inicialmente Rangel Pestana, Limpo de Abreu, Xavier da Silveira, os dois Ottoni, Felício dos Santos e outros abolicionistas-republicanos, precedendo a Campos Salles, Prudente de Moraes, Bernardino de Campos, Francisco Glycerio e tantos mais que a ele se filiaram depois, e cuja voz transmitia-se ao público pela Opinião Liberal, cumprindo o seu programa de ação, onde constava, debaixo da máscara pacífica, a campanha por todos os meios em prol da substituição do braço escravo pelo braço livre, apareceram os primeiros sintomas de reação popular.

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Uma precursora e logo outras e outras... - Em Santos apareciam os precursores da Abolição. Dª. Francisca Amália de Assis Faria iniciara o custodiamento dos primeiros negros fugidos; o quintal da sua casa tornara-se logo um pequeno quilombo, e dela partiram os primeiros convites a outras damas santistas para fazerem o mesmo.

Dentro em pouco orçavam por centenas as reclamações feitas às autoridades pelos donos de escravos, contra o açantamento dos fujões realizado pelas melhores famílias da cidade, o que, exatamente, dificultava as providências já de si lentas e quase aparentes das mesmas autoridades. Assim se subtraíam os primeiros escravos às ignomínias do cativeiro.

O coração da mulher, é preciso que se diga, foi o primeiro a gritar o início da fase de ação, a proclamar com o seu exemplo a necessidade da luta pela extinção do bárbaro e retrógrado regime.

Naquele mesmo ano de 1870, outra santista fundava em São Paulo a primeira sociedade libertadora, uma sociedade feminina, destinada a promover alforrias de cativos; era dª. Anna Benvinda Bueno de Andrada, esposa do conselheiro Martim Francisco Ribeiro de Andrada, a santista que, por acaso, nascera em Mussidan, na França, filha de Antonio Manoel da Silva Bueno, ilustre filho de Santos, que tivera assento nas Cortes Constituintes de Lisboa, em 1821, e que se refugiara na Inglaterra com os demais deputados brasileiros, cuja assinatura fôra negada à ignominiosa Constituição dos portugueses.

Dª. Anna Benvinda Bueno de Andrada foi a fundadora e presidente d'"A Emancipadora", sociedade especializada na "libertação de escravas moças", e um dos cobradores das mensalidades sociais foi seu filho, o então menino e depois ilustre político republicano dr. Bueno de Andrada.

No início dessa segunda fase, apenas alguns vultos de Santos apareciam como forças ativas e organizadoras da corrente idealista, solidificando o grande ideal de solidariedade humana: Xavier da Silveira, Francisco Martins dos Santos, dr. Alexandre Martins Rodrigues, Joaquim Xavier Pinheiro e João Octavio dos Santos!

Esses foram os precursores. A mocidade violenta da última quadra estava ainda em embrião.

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Renovação do movimento - O movimento abolicionista continuou na mesma marcha durante alguns anos, assistindo-se aqui e ali o repontar de uma força nova, uma adesão, um jornal, um fato alvissareiro e a continuação da fé inabalável dos homens que haviam jurado levar ao fim o trabalho proposto.

Cerca de 1880, apareceram as primeiras forças jovens reforçando as velhas, reavivando o movimento e acentuando a vitória.

Um conspirador destemeroso surgira entre os novos elementos, como uma das melhores esperanças da luta contra o cativeiro; era Américo Martins dos Santos. Moço de 28 anos, ex-cadete da Escola Militar, descendente de importante e tradicional família santista, e decidido a todas as situações, integrou-se Américo Martins na corrente de que participava toda a sua gente, congregando desde logo os moços da sua idade para um movimento mais acentuado, de efeitos mais rápidos e palpáveis.

É aí que aparece a forte legião da mocidade abolicionista de Santos. Por sua iniciativa, realizou-se no ano de 1882 uma grande reunião em que tomaram parte Guilherme Souto, Geraldo Leite, Júlio Backeuser, Santos Pereira (o Santos Garrafão), Ricardo Pinto de Oliveira, Júlio Maurício, Constantino de Mesquita, Joaquim Fernandes Pacheco, Theóphilo de Arruda Mendes, José Ignácio da Glória, Luís de Mattos e outros entusiastas.

Tornou-se célebre essa reunião, porque nela foi resolvida da criação de um reduto para os negros, espécie de quilombo onde se reunissem todos os escravos subtraídos à escravidão, como refúgio geral e único, ao invés de se ocultarem nos quintais e porões das casas amigas, na impossibilidade de serem colocados nos sítios vizinhos.

Feita a coleta inicial entre os participantes da reunião, completou-se o total aí apurado com as importâncias subscritas pelos demais adeptos que o desejaram, e depois, afastado esse primeiro óbice, procedeu-se à escolha do lugar onde devia ser criado o reduto que tão respeitável lugar ocuparia na história da Abolição.

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O Quilombo de Jabaquara - Atrás das terras de Mathias Costa, ainda em estado primitivo, cobertas de mato e cortadas de riachos, havia uma extensão de várzea trançada apenas de caaqüeras, camburás e trapoeirabas, para onde se ia ainda pelo caminho que existia ao lado da Santa Casa, subindo a lombada do morro, passando pela casa de Benjamin Fontana, e a seguir, pelo sítio de Geraldo Leite da Fonseca, que ficava ao alto, caindo então para a várzea do Jabaquara. Era o único caminho para lá.

Ali se colocaram, no possível segredo, todos os negros até então ocultos nas casas particulares e os que apareciam, até que formaram um núcleo numeroso e respeitável. Precisavam agora de um chefe na altura da responsabilidade que os mantivesse em ordem e arrefecesse os seus ímpetos naturais e compreensíveis, porque aproximava-se a fase heróica do movimento e tornava-se necessária uma ação pensada, conjunta e definitiva.

Américo Martins lembrou um nome: Quintino de Lacerda! Todos apoiaram a lembrança. Ele conhecia Quintino da casa dos republicanos Antonio e Joaquim de Lacerda Franco, e prontificou-se a ir pedir a estes o concurso do seu ex-cozinheiro e homem de confiança. No dia seguinte, Quintino, orgulhoso da sua nova missão e satisfeito por ter de enfrentar perigos, como era da sua índole, tornava-se o comandante do reduto livre de Jabaquara.

Num abrir e fechar d'olhos, estavam armados duzentos homens no quilombo santista. Ao cabo de um ano contava o Jabaquara mais de quinhentos indivíduos, vigiados pela atalaia do morro, onde se levantava o posto avançado e sempre alerta de Geraldo Leite, o ardoroso despachante da Alfândega local.

Os generais eram os chefes ativos do movimento, mas o comandante era Quintino de Lacerda. As reuniões mais secretas a respeito do "quilombo" santista eram realizadas ora na fábrica de Xavier Pinheiro, ora na farmácia de Theóphilo Mendes, ora na chácara de Geraldo Leite, ao alto do morro, e algumas vezes no próprio Jabaquara.

A 24 de agosto do mesmo ano de 1882, uma grave notícia abalava os arraiais abolicionistas, uma repetição da fatalidade de 1874: morrera Luís Gama, o sucessor de Xavier da Silveira, o marechal da vitória que se vinha pronunciando. Ficaria faltando desde então o chefe agitador, a força realizadora do advogado paladino, mas estava escrito que assim não devia ser, e aí, como um milagre do exemplo e determinação da Providência, surgia a figura de Antonio Bento, advogado também, ex-conservador, ex-promotor e juiz municipal de São Paulo.

Santos exultou com a notícia sobre o novo chefe da ação, e não se enganou, porque, desde aí, a vitória pronunciou-se cada vez mais nítida, levada pela mão firme e segura, tenaz, do seu terceiro chefe.

Meses depois, visitava Antonio Bento a cidade de Santos, percorrendo as casas dos chefes locais e o reduto fortificado do Jabaquara, convencendo-se, então, de que "se achava diante do ponto alto e confiante da campanha".

Fotos publicadas com a matéria

Recebendo os fugitivos - Combinou-se nessa ocasião que, oportunamente, alguns homens de Quintino de Lacerda fossem acampar na raiz da serra, junto ao Cubatão, e no alto, perto de São Bernardo, junto à antiga fazenda do "Ponto Alto", no lugar chamado Zanzalá, a fim de receber os negros fugidos através das matas, e disputar, se tanto fosse preciso, aos capitães de mato, a posse dos seus perseguidos. Tal providência visava completar o trabalho dos "caifazes" do próprio Antonio Bento que, conseguindo a fuga em massa das fazendas do interior, encaminhavam os fugitivos para a Serra do Mar, para o ponto onde os guias de Santos deviam conduzi-los a salvo, para a liberdade da terra santista.

Quintino exultou com a perspectiva da luta, e, algumas semanas depois, já seguia ele, pelas primeiras vezes, com um grupo regular de negros decididos para os pontos determinados da serra do Cubatão, deixando em Santos a outra parte da gente necessária à guarda do reduto.

Daí, pelo tempo adiante, surgia de vez em vez, pela estrada ou em canoas, uma escolta do chefe negro, trazendo dez, vinte e até mais escravos famintos e seminus, recebidos junto à raiz da serra ou junto às matas do Zanzalá.

Contavam-se, então, a respeito de Quintino, várias e verdadeiras façanhas, que ele somente confirmava com um riso rasgado e sem palavra. Pai Felipe, um preto experiente, era o seu braço direito, no "quilombo".

Quando começou a descida maior de escravos de serra-acima, o governo mandava, uma vez ou outra, guardar com escolta a ponte do Casqueiro, impedindo o caminho, mas nem sempre os soldados se desincumbiam de sua missão, porque muitos dos sargentos destacados para tal serviço fingiam não ver os fugitivos, desculpando assim o seu ato amigo. De outra vez, avisados a tempo, os homens descidos da serra embarcavam-se todos em canoas no Cubatão, vindo ter a Santos por água, contornando a dificuldade.

O episódio narrado por Castan, que se diz participante dos trabalhos da Abolição, era comum naquela passagem: por ele se vê que não deixavam os militares de cumprir as ordens recebidas, visto que, pela ponte não passava ninguém; mas concorriam para a sua fuga pelo rio.

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As "reminiscências" de Carlos Victorino - Abramos aqui um parêntesis para ouvir algumas palavras de Carlos Victorino, em suas Reminiscências - págs. 64/67:

"Num dos recantos da Vila Mathias existia o quilombo, chefiado por pai Filipe, um preto já velho, mas de tino aguçado, comandando com muita prudência o seu povo. Nesse quilombo, embrenhado numa porção de mato e habilmente encoberto de vistas perseguidoras, fizera Felipe o acampamento da sua gente, que trabalhava no corte de madeira para lenha e construção, e na indústria de chapéus de palha.

"Pai Filipe, aos domingos, franqueava o seu quilombo aos rapazes e homens conhecidos como abolicionistas, tratando-os com esmerada cortesia e contando das fazendas coisas do arco da velha, coisas de fazer arrepiar os cabelos!

"Enquanto ele fazia narrações, a sua gente dançava ao som do tambaque, pandeiro e chocalho, a cuja cadência mulatinhas ainda novas e crioulos robustos bamboleavam o corpo, meneavam as cadeiras, picavam com o pé, fazendo um círculo vagaroso até encontrarem-se os pares que se esbarravam numa proposital umbigada certeira, cheia, fazendo o corpo dar meia volta.

"Esta dança selvagem era acompanhada de cânticos nos quais a última sílaba da rima prolongava-se muito, repercutindo nas matas.

"Parava de súbito o tambaque, cessava a dança e, com permissão de pai Felipe, era distribuído o quentão. Descansavam um momento para começar a dança, com os mesmos jogos, com as mesmas cantigas, prolongando-se esse divertimento até a noite, mormente se havia luar.

"Então era sublime quando as pessoas que procuravam a distração naquele ponto da cidade ouviam, logo ao entrar na vila, o eco sonoro dessas cantigas, vindo do fundo das matas, semelhando o gemido duma dor que mais tarde se reverteria em júbilo, pois tudo isso, toda essa agitação em prol dos oprimidos não era mais que o labor dum parto que deveria dar à luz a Lei Áurea, entregando ao Brasil não um ente - mas todos os entes, completamente libertos e que até o dia 12 de maio de 1888 estorceram-se na opressão terrível da escravidão.

"Não era só na Vila Mathias que existiam refugiados esses homens escravos: numa dependência do Monte Serrate, tínhamos o Jabaquara, lugar protegido por Quintino de Lacerda que também fora escravo e agora liberto, dava conforto àqueles que eram ainda o que ele foi em passados tempos.

"Pois bem, pai Felipe, em seu quilombo, Quintino no Jabaquara e Santos Pereira na cidade, eram os baluartes protetores dos foragidos das violências do tronco e outros instrumentos de martírio usados nas fazendas de café".

Por sua vez, esses homens tinham ao seu lado a proteção de Santos em peso, que não se cansava de promover tudo quanto fosse em proveito da propaganda abolicionista; tanto que altos personagens do abolicionismo, vendo na terra dos Andradas o acolhimento que deram à causa, protegiam os santenses, como José do Patrocínio, que honra Santos com a sua visita, realizando no Teatro Guarany uma conferência na qual distribuiu a diversos escravos as cartas de liberdade, e isto debaixo duma das mais retumbantes ovações que já se presenciou, tal era o entusiasmo por tão sublime causa, e admiração ao nobre orador.

O espetáculo, o grande espetáculo social, ou por outra, a grande lição aos escravocratas dada por José do Patrocínio, em pleno tablado do Guarany, diante de inúmeros espectadores, deu mais impulso, agitou mais violentamente a guerra travada contra o escravagismo.

Diante, pois, destes espectadores, José do Patrocínio, depois de falar por espaço de uma hora e meia, chamava, prevenido duma lista, pelos nomes daqueles que deveriam receber a carta de liberdade.

Ao chamado aparecia, saindo dum bastidor, uma crioula, de cabeça baixa, envergonhada ante a multidão e ante o seu papel na Sociedade - o de escrava!

José do Patrocínio, com fraternal amor, orgulhoso do seu nobre encargo, entregava à crioula a carta e não admitia que ela se curvasse para beijar-lhe a mão: abraçava-a de leve e apertava-lhe a mão na mais viva expressão de igualdade. Esta cena era coberta de aplausos prolongados, que coroavam o ato.

A liberta, equívoca, não sabia se ficava no tablado ou se tornava aos bastidores; esperava uma ordem: julgava-se ainda escrava!

Seguia-se outro chamado; aparecia outro escravo, repetindo-se a mesma cena. E assim, montou a dez o número de libertos nessa noite, ante mil olhares, retumbantes aplausos e júbilo geral.

José do Patrocínio, vitoriado, retirou-se do teatro às 11 horas da noite, hora em que terminava parte da grande obra pela qual seu coração puramente democrata sempre pulsou: a Liberdade.

Após Patrocínio, Santos recebeu o ilustre dr. Cândido Barata Ribeiro, que no mesmo Teatro Guarany também realizou uma conferência sobre dois temas, ao mesmo tempo: "Abolição e República".

Dois portugueses na campanha - Dois portugueses surgiram nessa época, desempenhando um grande papel na campanha santista: Luís de Mattos, um nome ligado à vida da cidade, onde residiu talvez 30 anos; espírito liberal, que prestou a esta campanha, como à da República, serviços inestimáveis, assistindo também a instituições ou movimentos humanitários, ao progresso, à literatura, à arte e à ciência locais, colaborando ativamente na Cidade de Santos e no Diário de Santos, ao lado de Arthur Bastos, Vicente de Carvalho, Léo D'Affonseca, Júlio Ribeiro, Sylverio Fontes, Alberto Sousa, o dedicado Ferreira de Menezes e outros paladinos mentais do momento.

José Theodoro dos Santos Pereira, vulgarmente chamado o Santos Garrafão, por ser grande e bojudo, em contraste com seu irmão, português que, tomado de verdadeiro fervor pela causa dos negros, desvelou-se em atenção à gente de Jabaquara, fornecendo-lhe comida, roupas, medicamentos e socorros de toda a ordem, obtidos por ele das casas e das famílias que amparavam a grande causa.

Santos Garrafão afeiçoou-se grandemente a Quintino de Lacerda, admirando a bravura do preto sergipano, levando essa admiração aos maiores sacrifícios, demonstrados em trabalho ativo, em dinheiro e tudo que se fazia mister conseguir para os escravos que chegavam à canaã santista. Ele foi o grande personificador da alma popular, síntese do proletariado integrado na santidade da causa redentora, figura central do movimento, tornando-se célebres os bilhetes que enviava aos abolicionistas financiadores da campanha, para obtenção de recursos urgentes, e que começavam quase sempre com estas palavras: "Amigo fulano. Tenho tantos rolos de fumo para seguir etc. ..."

Esses rolos de fumo eram os negros arrancados aos potentados, recém-chegados a Santos, os quais convinha serem remetidos para outras províncias ou mesmo para o estrangeiro, a fim de escaparem definitivamente à procura dos senhores. Garrafão vivia maritalmente com uma preta, a Brandina, figura extremamente popular, afamada cozinheira, que possuía uma pensão na Rua Setentrional, e que foi uma verdadeira mãe para os seus irmãos de cor, assistindo-os em todas as necessidades, secundando eficientemente o grande trabalho do português.

Dos abolicionistas de São Paulo, recebia Santos Pereira, muito amiúde, telegramas aparentemente ininteligíveis e cartas disfarçadas, onde lhe comunicavam a descida de algum escravo ou de alguma leva numerosa para Santos, partindo quase sempre dele a comunicação aos chefes do movimento para as necessárias providências.

A Bohemia Abolicionista - Fazia também um ano que se fundara a Bohemia Abolicionista, valente agremiação da juventude local, organizada por Francisco Bastos, Antonio Augusto Bastos, Guilherme Mello, Pedro Mello, Antonio Couto, Arthur Andrade, Anthero Cintra, Luciano Pupo e Eugênio Wansuit, aos quais se juntaram, depois, Paulo Eduardo, José Vaz Pinto de Mello Júnior, Brasílio Monteiro, Joaquim Montenegro e outros.

Com ela surgira a publicidade violenta abolicionista-republicana, primeiro d'O Embryão, d'O Porvir e d'O Pirata, órgãos revolucionários, manuscritos, cuja tipografia era Jacob Schalap, um menino de Santa Catarina, de letra muito bonita, dedicadíssimo à causa, e depois, das folhas de combate já então impressas: O Alvor, O Piratiny, O Patriota e A Idéa Nova, as duas primeiras redigidas por Guilherme Mello, Antonio Augusto Bastos e Arthur Andrade, O Patriota, por Felix Carneiro, e A Idéa Nova por Constantino Mesquita, com a colaboração de Cândido de Carvalho e Alberto Sousa.

A Bohemia Abolicionista reunia toda a mocidade de Santos e existiu durante oito anos, desde 1881 até 1888, quando extinguiu-se com a realização do ideal que gerara. Nunca teve uma organização regular para não perder talvez o caráter de rapaziada. Às vezes tinha diretoria pelo espaço de meses, outras vezes funcionava sem ela tempos inteiros; as suas reuniões, porém, eram diárias e se realizavam ora nos bancos dos jardins, ora no prédio onde hoje funciona o cinema Paramount, na esquina do velho Largo do Rosário, residência, naquela época, dos pais de Guilherme e Pedro de Mello, integrantes principais do grêmio, e por isso mesmo muitas vezes impedido pela polícia, por ordem da chefia de São Paulo. Essa organização foi um dos mais belos aspectos da grande campanha santista.

No quarto desses rapazes ou nos aludidos bancos, por impedimento daquele ponto de reunião, se debatiam as mais graves questões políticas e sociais dessa época. Eram discussões acaloradas sobre abolicionismo, política e religião, travadas como em plenário da Câmara, com debates e interrupções.

Dentre esses moços idealistas, sobressaía um, mais velho que os demais, com trinta e alguns anos, mas com aparência de vinte e poucos, pernambucano, quase preto, que falava muito, em toda a parte, sem o menor rebuço ou respeito às conveniências, fazendo um comício em cada ponto onde parava, em contínuo e absoluto desprezo à vida, não deixando escravocrata em paz, fosse de posição elevada ou fosse da classe média - era Eugênio Wansuit. Fora Imperial Marinheiro da Armada, na guerra do Paraguai, com a idade de 18 anos, e por isso, talvez, perdera a noção do perigo.

Vicente de Carvalho - Foi aí, entre essa mocidade brilhante, que apareceu Vicente de Carvalho. Pode-se mesmo afirmar que foi naqueles jornais que ele escreveu os seus primeiros artigos e o seu trabalho foi sempre na altura do seu nome, dedicado e eficiente, tão exaltado como Rubim César, advogado como ele, orador oficial da Bohemia Abolicionista, que com arrebatada eloqüência e cada vez mais exaltada convicção, concitava a mocidade a exigir a abolição imediata, aconselhando-a à proteção do escravo, e a levar aos infelizes cativos do interior e dos escravocratas da região a ordem de fuga para o reduto livre de Jabaquara, ou para as serras de Santos.

Na imprensa, a voz que melhor se ouvia era a de Vicente de Carvalho, mas nos comícios, nas ruas, onde houvesse povo para escutar um grito de rebeldia, Rubim César estadeava a sua verbosidade.

Espetáculos em benefício de alforrias - Enquanto isso, a própria Bohemia Abolicionista organizava espetáculos artísticos e literários para com o seu produto libertar escravos. José André do Sacramento Macuco escrevia dramas que os rapazes representavam com aquele fim, havendo sempre grande afluência às sessões, demonstrando o apoio da Sociedade à obra humanitária dos moços santistas. Tais peças eram sátiras vivas e vergastadas solenes às autoridades escravocratas e aos donos de carne humana, que se negavam a apoiar a obra de redenção.

"A sombra da cabana" foi a última peça que Sacramento Macuco escreveu para a agremiação, marcando sua estréia a libertação de um escravo mulato, quase branco, cujo preço fora reputado pelo valor da renda total do espetáculo.

A carta de liberdade foi entregue ao pobre homem em cena aberta, no Teatro Guarany, e nessa ocasião, enquanto Sacramento Macuco e os rapazes abolicionistas recebiam delirante ovação, o dr. Rubim Cesar pronunciava uma das suas mais belas, patéticas e violentas orações.

Enquanto isso se dava com os moços, os chamados "mais velhos" trabalhavam também denodadamente para o mesmo fim, e, como sinal evidente dessa atividade quase na mesma ocasião, Américo Martins dos Santos e Ricardo Pinto de Oliveira descobriam amarrada ao mastro de um patacho, que passava do sul, uma escrava branca, que ia para ser vendida na Corte.

Descobri-la e comprá-la foram atos seguidos, cabendo a vários abolicionistas, em quotas proporcionais, a despesa de 600$000, preço altíssimo então cobrado pelo seu resgate. Essa mulher teve depois um marido arranjado pelos idealistas de Santos, que, por seu falecimento, deixou-a rica. Ela existe ainda hoje, no estado de viúva do segundo marido, e senhora de algumas propriedades.

Nessa altura, como acontecia em S. Paulo, com a Pharmacia de João Cândido Martins e Antonio Bento, também em Santos uma farmácia era o ponto natural de reunião dos próceres abolicionistas e republicanos - a de propriedade de Theóphilo de Arruda Mendes, um dos bons elementos das duas campanhas - onde se combinavam principalmente as medidas que se relacionavam com o porto, junto ao qual ela ficava.

Figuras que se destacaram na corrente abolicionista - Velhos e moços porfiavam em dedicação aos míseros sofredores das senzalas, distinguindo-se entre eles alguns médicos, que prestavam a atenção profissional aos que chegavam doentes ou adoeciam aqui, como o dr. Lobo Vianna, dr. Manoel Maria Tourinho e dr. Silvério Fontes, ilustre jornalista da campanha; dr. Soter de Araújo, inesquecível filantropo; dr. Manoel Homem de Bittencourt e Henrique da Cunha Moreira, os mesmos que tantos serviços prestariam à população em 1889, na grande e desastrosa epidemia de febre amarela que devastou a cidade, além de outros beneméritos cidadãos secundando a grande obra dos batalhadores da causa, em que não podem ser esquecidos, também, Henrique Porchat, grande figura das duas campanhas e futuro chefe da política republicana santista; José Antonio do Amaral Rocha; o ardoroso e inolvidável Júlio Maurício; Silva Jardim, paladino da abolição e apóstolo esquecido da República, morto nas entranhas do Vesúvio, no ano de 1891; Francisco Martins dos Santos Júnior, o distinto continuador da obra de seu pai; Júlio Backeuser; Guilherme Alves Souto, João Octávio dos Santos, o comerciante ricaço de tantos e tão valiosos serviços, um dos beneméritos da cidade, José Torres Rosmann; Júlio Ribeiro, o mineiro ilustre, filólogo eminente, jornalista vivaz e destemeroso das duas campanhas; Carlos Escobar, o denodado professor, que estava sempre em toda a parte onde fosse necessário seu auxílio, Santos, S. Paulo, Campinas ou Mogi-Mirim, a serviço da causa comum; Martim Francisco, o Andrada sincero e respeitado, cuja palavra fina e sempre satírica era o vergaste vivo e permanente sobre os erros sociais e administrativos da Província, o jornalista eminente das duas jornadas; Affonso Francisco Veridiano, o batalhador persistente e quase anônimo, pela modéstia de que revestia a sua ação valiosa e fecunda; José Ignácio da Glória, este como um dos chefes do abolicionismo vicentino com o coronel José Lopes; e, finalmente, José Leite da Fonseca (Juca Leite), o ardoroso irmão de Geraldo Leite, como este um dos mais brilhantes elementos da grande página santista, passagem marcante da História nacional.

O Treze de Maio, em Santos - E as lutas continuaram, até ao 13 de Maio de 1888, precedido em Santos pelo 27 de fevereiro de 1886, data em que a escravidão foi considerada completamente extinta em Santos.

Vale a pena saber como recebeu Santos o 13 de Maio, vamos dar a palavra a Carlos Vitorino, em seu interessante livrinho Reminiscências, págs. 73 a 76, em que ele descreve os acontecimentos da seguinte forma:

"A data de 13 de maio de 1888 foi recebida com a maior pompa possível. De cada casa, soltavam ao ar centenas de foguetes. Os navios surtos no porto embandeiravam os mastros, músicas percorriam as ruas; o povo entusiasmado dava vivas à Lei Áurea; da Vila Mathias, lá do quilombo de pai Felipe, os libertos vinham ao largo do Carmo, munidos de adufos e tambaques, dançar o samba, no qual os rapazes entravam também, dançando com os pretos, na mais íntima cordialidade; saudava-se a imprensa; de cada janela surgia um e discursava sobre o fato, Silva Jardim fez nada mais nada menos do que uns 40 discursos, e cada qual mais sublime.

"Em Santos haviam-se organizado, desde o dia 11, inúmeras comissões, cada uma incumbida da iluminação e ornamentação de uma rua ou praça, estabelecendo-se uma comemoração de oito ou dez dias seguidos, considerados feriados para todo o povo.

"À noite, iluminação provisória em todas as casas, até a mais pobre, constando essa iluminação de tigelinhas e lanternas de papel; marche-aux-flambeaux; discursos feitos por Martim Francisco e outros.

"O comércio concorria ajudando nas despesas; a loja Flor de Maio deu, à comissão organizadora da grande festa, muita fazenda para bandeirolas, que se estendiam em fios de barbante, desde a Rua de Santo Antonio até o Largo da Matriz, continuando pela Rua da Alfândega, entrando na General Câmara, cercando as do Rosário e Amador Bueno e terminando na de S. Francisco.

"Em Santos, nas lojas de fazendas, não havia mais ganga, sendo necessário recorrer-se às lojas da capital, pois faltavam ainda muitas ruas para serem embandeiradas.

"A Companhia de Gás preparava arcos para iluminar todas as ruas. O Correio de Santos ornamentou a frente do seu edifício com tigelinhas verde-amarelo e azul e branco. O Diário apresentou uma iluminação luxuosa; no Largo da Matriz foi levantado por Benedicto Calixto um soberbo arco triunfal, tendo na frente os retratos do visconde do Rio Branco e Luís Gama.

"Os postes que serviam de amparo aos fios para os galhardetes tinham escudos nos quais se liam os nomes dos grandes abolicionistas".

Isto tudo realizou-se nos dois primeiros dias subseqüentes ao 13 de Maio. Depois vieram os outros.

"No 3º dia, festas populares, em pleno Largo da Matriz, junto ao arco triunfal, a missa campal celebrada pelo cônego Luís Alves da Silva. A praça estava apinhada, não havia mais um lugar, e, ali, diante do altar soberbamente adornado, crédulos e incrédulos, impelidos todos pelo mesmo júbilo, curvavam os joelhos que se apoiavam sobre débeis pétalas de rosas que atapetavam os paralelepípedos.

"Não se distinguiam classes, tanto se ombreava o nobre como o plebeu; não existiam mais rixas de imprensa: os seus representantes estavam todos juntos. Fizeram-se representar nesse ato todos os cônsules, todas as escolas de ambos os sexos. Finda a missa campal, o dr. Eboli, numa das janelas do Grande Hotel Roma, de propriedade de Elias Caiafa, falou, em eloqüente discurso, felicitando o Brasil por esse alto acontecimento. À tarde desse dia, na mesma praça, lançou-se diante de inúmeros assistentes a primeira pedra para a ereção do monumento que deveria perpetuar a memória do visconde do Rio Branco".

(Esse monumento, porém, ficou apenas no entusiasmo do momento).

"No 5º dia, todas as escolas populares foram ao convento do Carmo, em visita ao túmulo de José Bonifácio, o Patriarca. Ali fez o discurso cronológico o eloqüente tribuno Silva Jardim, e pela escola do sexo feminino, regida pela sra. d. Maria Isabel Silvado, falou a menina Anna Constança Ferreira.

"No 6º dia, Quintino de Lacerda, o homem que fechou a Câmara de Santos, foi condecorado, à noite, numa das salas dum sobrado da Rua Xavier da Silveira, junto ao antigo Asilo de Órfãos. Recebeu Quintino de Lacerda essa homenagem por ocasião de uma reunião promovida pela comissão dos festejos, para dar a Quintino o prêmio que lhe cabia como um abolicionista fervoroso.

"O peito de Quintino foi condecorado pelas mãos angélicas da menina Carula Martins, filha do conceituado despachante geral Américo Martins dos Santos (medalha que se vê na fotografia de Quintino, estampada neste capítulo). Quintino, comovido, quase sem poder falar, agradeceu em breves palavras "as tamanhas honras de que não era merecedor".

"No 7º dia, foi colocada na casa onde nasceu José Bonifácio a lápide comemorativa entre as janelas do centro e junto à cimalha. Fronteiro ao edifício, a multidão esperava romper-se a gaze que encobria a inscrição histórica. Depois de alguns discursos pronunciados por diversos oradores e que foram cobertos de frenéticos aplausos, duas gentis mocinhas puxaram os cordões da gaze, que, numa queda morosa, bipartindo-se vagarosamente, deixava ler em letras de ouro gravadas sobre o finíssimo mármore, a inscrição que todos conhecem: "Esta é a casa em que nasceu e morreu o patriarca da independência - José Bonifácio de Andrada e Silva. Nasceu aos 13 de junho de 1763. Faleceu a 6 de abril de 1838".

"No 8º dia, saiu à rua um préstito, com carros alegóricos, nos quais figuravam senhoras e cavalheiros da alta roda santense, dando-se durante o seu percurso a imponente batalha de flores. À noite, falou o dr. Antonio Bento de Souza e Castro.

"Quem não se preveniu de flores, recorria aos papéis de diversas cores, cortados em pedacinhos, e com eles, com um punhado desses improvisados confetis, sarapintavam as cabeças loiras das gentis senhoras, os clacks dos cavalheiros e o estrado dos carros luxuosamente adornados.

"Deram-se outros festejos menos importantes, e o povo, cansado de divertimentos, por fim procurava o trabalho quase que em geral interrompido por oito a dez dias".

O "Capitão do Mato", símbolo odioso do cativeiro
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