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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
Clique na imagem para ir à página principal do livro 'Os Andradas'1922 - por Alberto Sousa (12)

A história, desde a fundação, pelo autor de Os Andradas

Ao longo dos séculos, as povoações se transformam, vão se adaptando às novas condições e necessidades de vida, perdem e ganham características, crescem ou ficam estagnadas conforme as mudanças econômicas, políticas, culturais, sociais. Artistas, fotógrafos e pesquisadores captam instantes da vida, que ajudam a entender como ela era então.

É o caso da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, cuja transcrição do capítulo 1 (A Vila de Santos), com ortografia atualizada, continua (páginas 248 a 273):
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Igreja e Colégio de S. Miguel dos Jesuítas (fundados em 1585) - Esta gravura é mais ou menos de 1860. Nela se vê sobre a porta principal, ao lado direito, o letreiro "Correios". Na época a que se refere o texto - de 1804 a 1821 - o Hospital Real Militar ocupava toda a parte, onde mais tarde se instalou o correio, altos e baixos, até a torre da Igreja de S. Miguel, exclusive. Na gravura a torre está quase inteiramente desmoronada, só restando um trecho até a altura da fachada da Igreja. O chamado Palácio dos Governadores era na ala ao lado da torre. No local onde se ergueu este Colégio, existiu a Casa do Conselho Municipal, construída ao tempo do Governo de Pedro Lopes de Sousa, filho segundo de Martim Afonso, e segundo Donatário da Capitania de S. Vicente.
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A Vila de Santos
Suas condições topológicas, demográficas, econômicas e sociais

Hospital da Misericórdia

O que na planta se não descobre, por mais que se procure, é o Hospital da Misericórdia, fundado por Braz Cubas, o primeiro que no Brasil se edificou. É que, acompanhando a malograda sorte da primitiva igreja, a cujo lado, e ao mesmo tempo, fora levantado, ruiu com ela, por serem ambos naturalmente construídos de material incapaz de resistir à implacável ação das intempéries.

Desde, pelo menos, o ano de 1654, não havia mais em Santos Hospital de Misericórdia; e no ano da Independência, e alguns anos depois, não havia nem hospital, nem igreja.

A existência da Santa Casa, quer por falta de meios pecuniários como por incapacidade manifesta ou pouco zelo de suas administrações, passava a ser uma existência obscura, inglória, quase puramente nominal.

Localização e desaparecimento do primitivo hospital

Em 1654, os Irmãos, "por ser grande a necessidade que aqui há de hospital, por ser o porto por onde freqüenta o comércio de toda a Capitania, tinham resoluto fazer casa de Misericórdia e Hospital", segundo declaram na representação, a que já nos referimos, dirigida a d. Jerônymo de Athayde, mas "como todos são pobres e não podem concorrer com todas as despesas necessárias para aquela obra", pedem-lhe que lhes faça mercê de conceder-lhes um auxílio para tal fim.

O magnânimo Athayde, conde de Athoughia, tendo em vista a plausibilidade das razões compridamente expostas, mandou dar de esmola aos suplicantes, por conta da Fazenda Real, a avultada quantia de cem mil réis, o que tudo consta do que já dissemos.

A omissão do Hospital na planta datada de 1790 [294] indica positivamente que até então a Irmandade da Misericórdia nada conseguira quanto aos seus pios propósitos; e mais concludente ainda é o testemunho de Frei Gaspar, que escreveu quatro anos depois suas excelentes Memórias: "... não padece dúvida que nella (Povoação) houve Hospital antigamente junto à Igreja, que hoje é Matriz; pois dele nessa paragem faz menção uma escritura, datada de 3 de janeiro de 1547, etc." [295].

Repare-se primeiramente no tom em que o historiador se exprime, como quem refuta contestações ou procura dissipar dúvidas; em seguida, note-se que ele afirma que houve antigamente hospital junto à Igreja e que de sua localização nesse lugar faz menção uma certa escritura.

Ora, se o hospital ainda existisse em 1784, Frei Gaspar, que escrevia portuguesmente, não teria construído a sua oração com o verbo no passado absoluto, e se o desaparecimento da velha instituição fosse caso recente, não apagado da memória dos povos, ele o registraria sem apelar para a existência da escritura de que faz escrupulosamente citação.

Também se já existisse outro hospital em ponto diverso de sua primitiva situação, claro é que as Memórias se refeririam a esse fato, como se referiram à mudança da Igreja e à queda e reconstrução das duas primeiras Matrizes; e a planta dita de 1790 não deixaria de incluí-lo entre os estabelecimentos principais da Vila.

Contradições e debates

O Arquivo da Misericórdia, que diziam imprestável, e ao qual em hora feliz recorremos proveitosamente, esclareceu-nos bastante a esse respeito. Frei Gaspar não teve talvez conhecimento dos documentos autênticos que o dr. Cláudio Luís da Costa consultou e que serviram de base ao seu notável Relatório, que é um histórico minucioso e fidedigno da Santa Casa.

Naquela época não havia hospital; a igreja, em princípio de ruínas, raramente se abria às manifestações litúrgicas da Fé; a Irmandade quase nunca se reunia, vencida pelo desânimo e pelo cansaço, após tantas lutas prolongadas; de maneira que o velho monge beneditino não saberia, por certo, em que mãos andavam os livros e mais papéis pertencentes ao Arquivo da Confraria.

Se ele conhecesse as atas das reuniões da Mesa e da Irmandade, e a correspondência trocada entre a instituição e os poderes públicos, certamente não precisaria estribar sua opinião concernente à antiga existência do hospital junto à Matriz, numa escritura registrada legalmente.

Não há dúvida que o recenseamento de Santos, do ano de 1765, que é o mais antigo que se conhece, especificando os limites da rua dos Quartéis, reza claramente que esta começava "do canto do Ospital". Tal indicação refere-se, porém, ao simulacro de Hospital Militar, que por ali havia, nas imediações do Quartel, ou dentro dele, conforme afirmamos atrás.

Frei Gaspar conhecia, por certo, a súplica dos Irmãos da Misericórdia ao conde de Athouguia, à qual se refere a resposta deste, que transcrevemos de Azevedo Marques, que a publicou talvez como impugnação à categórica afirmativa do velho e escrupuloso historiador das coisas antigas de nossa terra.

Grande empenho e esforço despendeu o autor das Memórias para elucidar esse ponto controverso, deixando patente que houve outrora hospital junto à Matriz. Não há dúvida alguma que a Carta Régia de 26 de setembro de 1725, à qual há pouco aludimos, a propósito da intervenção arbitrária do pároco nos negócios privativos da Misericórdia, justifica a atitude dos Irmãos, afirmando textualmente que "apesar de sua pobreza, dão esmolas e têm, por último, feito uma casa que lhes sirva de Hospital, na qual pretendem curar alguns enfermos [296].

Mas a esse documento contrapomos outra Carta Régia, a que também já nos referimos, a de 4 de maio de 1730, na qual, além do estado de ruínas da igreja, se constata formalmente a falta de qualquer hospital em Santos.

Dessa Carta se verifica que o provedor Ferraz expusera ao rei, na sua representação ou petição do ano anterior, as dificuldades em que se encontrava, por deficiência de recursos, para, depois de reconstruir a igreja, proceder à edificação de um hospital, "porque também está de todo destruído, o qual carece de reedificar-se, e muito mais no tempo presente, em que se acha tanta multidão de enfermos forasteiros, que concorrem a esta Capitania; e sendo esta Casa a única que há em toda a Capitania de serra acima, não tem hospital em que possam ser recolhidos e curados assim os ditos forasteiros como os soldados que assistem em companhia do governador" [297].

Ora, não é aceitável que em 1725 o rei se regozijasse porque a Irmandade, apesar de pobre, tinha feito um hospital onde pretendia curar alguns enfermos, e já quatro anos depois esse hospital não mais existisse.

É certo, pois, que em 1730 a igrejinha da Misericórdia ameaçava desabar, que os Irmãos recorreram à proteção do rei para reconstruí-la e que o hospital respectivo estava completamente destruído, urgindo levantar-se outro.

Parece-nos, portanto, que o trecho da Carta Régia, de 26 de setembro de 1725, está com redação defeituosa por ter sido mal compreendido o teor da queixa levada ao conhecimento do soberano, em relação ao conflito suscitado pela autoridade paroquial.

A Irmandade, para melhor apoiar seus argumentos, revelou por certo a intenção em que se achava de fazer um Hospital, "no qual pretendem curar alguns enfermos" e, dado o tempo decorrido, na resposta já se admitia como feito aquilo que estava apenas projetado. A frase "na qual pretendem curar alguns enfermos" mostra claramente, aliás, que só havia a intenção, o desejo de assim proceder, mas não designava que já houvesse hospital com enfermos em tratamento.

Ereta, depois de 1730, a nova igreja no Campo, a Irmandade, para remediar em mínima parte a grande falta de que se ressentia a Vila, mandava recolher os doentes necessitosos ao pequeno corredor que dava para a sacristia, mas o acanhado espaço comportava tão-somente a colocação de seis leitos, que não bastavam para atender à procura cada vez maior, porquanto, desde 1º de julho de 1726, a Misericórdia, que, nos seus começos, apenas protegia marítimos, já estendia sua caridosa proteção às outras classes.

O que se torna incontestável, diante dos fatos e dos documentos, é que setenta anos depois das citadas Cartas Régias e de ter sido aprovada a resolução de se admitirem a tratamento indivíduos de todas as classes, ainda não existia hospital algum em Santos, tanto militar como civil - pois digno desse nome não era por certo o indecoroso pardieiro de aluguel, ainda pior que o de S. Paulo, que o governador Franca e Horta aí foi encontrar por volta de 1803 [298], e que lhe arrancou do indignado peito, por ocasião da visita que lhe fez em 18 de novembro daquele ano, palavras de revolta e de protesto.

Era administrado ineptamente pelo intendente da Marinha, Joaquim Manuel do Couto, que ocupava em seu serviço particular os índios reservados às necessidades internas do pretenso hospital, onde os soldados enfermos dormiam sobre a tábua nua, por falta de enxergões, apesar de existir verba consignada para essa despesa, que, aliás, não montava, como é de crer, a soma considerável [299].

Cogitaram, pois, num generoso movimento comum, os homens bons da República (N.E.: palavra aqui entendida no seu sentido clássico, relacionado aos interesses da comunidade ou dos cidadãos,já que o regime de governo assim denominado só seria proclamado no Brasil em 1889) e a oficialidade superior da Guarnição, de construir um prédio especialmente destinado a semelhante fim, para o que se cotizaram entre si. O edifício principiou a ser construído numa das faces do Campo da Misericórdia - não se sabe precisamente onde - mas ficou inacabado, apenas à altura do vigamento do primeiro andar, por não terem as cotizações bastado para sua terminação.

Diante do malogro total de seus tenazes, ininterruptos esforços, via-se a Irmandade na imperiosa contingência de cuidar de tão urgente problema - quando o governador Franca e Horta, que foi capitão-general, de 10 de dezembro de 1802 a 11 de outubro de 1811, resolveu, em 1804, aproveitar o abandonado Colégio dos Jesuítas para nele instalar definitivamente o Hospital Militar, a Alfândega, os Armazéns de Sal e a residência dos capitães-generais e outras altas autoridades, quando tivessem de descer a Santos, "por não haver lá nada disso" [300].

O Hospital Real Militar. Sua localização

A Alfândega ficou instalada nos fundos do edifício, em fins de 1806 ou princípios de 1807; o Palácio dos Governadores, na ala ocidental; e o hospital, da banda de Leste. Os Armazéns de Sal, não se sabe onde foram localizados, mas provavelmente constituiriam um anexo da repartição aduaneira.


Alfândega de Santos - Instalada por Provisão Régia de 26 de fevereiro de 1720 (estado em 1922). No local onde ela se levanta, existiu até 1585 a Casa do Conselho Municipal, ereta ao tempo de Pedro Lopes de Sousa. Cedida, naquele ano, aos Padres Jesuítas, estes aí construíram o seu Convento, sob a invocação de São Miguel
Imagem publicada com o texto

Divisão interna

Duas eram as portas de entrada para o hospital: uma, a principal, ficava no pátio da Matriz, olhando para o Sul; e outra, ao Oriente, dava para o pátio do Quartel da Guarnição.

Logo à entrada principal, no pavimento térreo, havia dois quartos: um à direita, acomodando seis camas; e outro, menor, à esquerda, servindo para depósito de cadáveres. Ao fim da mesma entrada existia um corredor aberto por arcos, os quais se achavam fechados por grades de pau. Ao lado direito desse corredor estavam dois quartos quadrados. Um era a enfermaria das mulheres e tinha uma janela com grades. O outro, destinado ao internamento dos sifilíticos, continha dez camas colocadas ao longo das paredes, sem intervalo, e era ventilado por três janelas também com grades.

Em frente deste último quarto estendia-se um pequeno corredor, que ia terminar numa privada, e no qual se abriam duas portas: uma, à direita, dava para a cozinha, e outra, à esquerda, para o pátio interno, onde havia um poço. Atravessando-se este pátio até a parede oposta, encontrava-se o quarto do enfermeiro, quarto que servia ao mesmo tempo de dispensa, rouparia e armazém. Da cozinha, pequena e sem asseio algum, subia uma escada para as enfermarias do andar superior e pela qual eram servidas as refeições. Todos estes quartos e enfermarias não tinham soalho.

À esquerda do corredor grande, a que já nos referimos, situado no fim da entrada, subia a escada principal, dando acesso aos doentes, médicos e visitas para as enfermarias de cima. O corredor existente defronte do patamar era a enfermaria dos presos, acomodando dez camas paralelamente à parede e sem intervalos. À esquerda da escada, ao alto, abria-se uma porta dando para a torre, e defronte existia uma enfermaria comprida e estreita, guarnecida de camarotes, com suas cortinas, e cada camarote continha sua cama.

Eram em número de dez e tinham três janelas sem vidraças nem rótulas que deitavam para o pátio do poço. À direita, encontrava-se outra enfermaria, a maior de todas, com dezessete camarotes, sendo nove de um lado e oito de outro. Ao fundo ficava um altar onde se diziam algumas missas. Dispunha esta enfermaria de três janelas de frente, cada qual com dois postigos de vidro, dando para o pátio da Matriz.

Ao lado direito do altar havia uma porta abrindo para uma saleta, e defronte a ela começava um corredor estreito, onde se encontrava um armário com remédios, fios, ataduras e panos, e ao termo dele se achava uma privada que comunicava com a outra, de que há pouco falamos. à direita da saleta havia uma outra enfermaria, comprida, contendo dez camarins colocados ao lado esquerdo; e ao lado oposto abriam-se para o pátio interno, o do poço, três janelas com postigos de vidro.

Havia ainda uma enfermaria para oficiais, com três janelas sem vidraças, uma sala para os facultativos formularem seus receituários e para o cirurgião-mor do hospital ministrar explicações teóricas de anatomia aos ajudantes de cirurgia; e um pequeno quarto onde pernoitava o ajudante de cirurgião que estivesse de semana. Não havia isolamento de doentes de moléstias contagiosas, os quais eram internados nas enfermarias comuns, em perigosa promiscuidade com os outros.

Não havendo roupões próprios para os doentes, estes conservavam no corpo, até o dia da alta, a roupa branca que levavam e que quase sempre consistia numa única e imunda camisa velha e dilacerada. Quando, por qualquer excepcional motivo, era forçoso mandar lavá-la, o doente permanecia completamente nu no leito até que a camisa voltasse lavada, e esta prática nociva continuou durante muitos anos, a julgarmos pelas informações que ao capitão-general João Carlos Augusto Oeynhausen deu, a 17 de fevereiro de 1821, o médico francês, dr. Joseph-Marie Paul, que dirigia então, interinamente, o serviço clínico do hospital [301].

Se a casa era suja, a cozinha era mais suja ainda que o resto da casa, e não dispunha de nenhum dos utensílios necessários à preparação dos alimentos, dos remédios e da água quente de que os facultativos precisavam para os seus trabalhos, principalmente cirúrgicos [302]

Regime dietético

Além disso, a comida, preparada por índios que não conheciam a culinária ocidental, era a pior possível, não só quanto ao seu sabor, como à qualidade dos gêneros empregados, pois os espertos cozinheiros, combinados com os fornecedores velhacos, fraudavam nesse particular o estabelecimento, que era, afinal de contas, mal dirigido, como todos os departamentos públicos dos tempos coloniais.

Entretanto, os enfermos tinham direito às seguintes classes de dieta que exigiam bom preparo, tendo por base víveres de excelente qualidade: 1ª) estreitíssima - apenas caldos de galinha; 2ª) estreita - um quarto de galinha a cada comer, farinha, e arroz cozido n'água, sal e gordura; 3ª) larga - uma quarta de carne de vaca ao almoço, uma libra ao jantar, e meia libra à ceia; um prato de arroz e um décimo de farinha para as três refeições.

O vinho, a marmelada, o pão-de-ló, as frutas, só eram fornecidos mediante prescrição especial, e por escrito, dos facultativos, que, aliás, nunca examinavam ou fiscalizavam a alimentação proporcionada aos doentes. O almoço era servido às sete horas da manhã, o jantar às 11 horas do dia e a ceia às 6 horas da tarde [303].

Higiene

Quanto à higiene propriamente dita, sabe-se que as enfermarias eram lavadas várias vezes ao ano, o que colocava o Hospital de Santos em situação muito superior ao de S. Paulo - que não era lavado desde tempos imemoriais.

Insuportável odor fétido se exalava de todos os recantos do edifício - odor proveniente do desasseio geral, da falta de circulação do ar atmosférico e da absorção dos miasmas que se desprendiam continuamente do corpo dos enfermos. Nas enfermarias, então, esse mau cheiro tornava-se mais sensível ainda, devido à exigüidade de suas respectivas dimensões, e à difícil, quase impossível renovação do ar, por falta de janelas e portas, amplas e em número suficiente.

O pátio do poço - escrevia o citado médico francês - era uma verdadeira cloaca, todo coberto de dejetos animais em decomposição e dos imundos despejos da cozinha. Para o tratamento de muitas enfermidades, prescrevia-se o uso de banhos tépidos, mas não havia banheiras, nem quarto próprio onde colocá-las. Os urinóis das enfermarias, grosseiramente fabricados de barro, embebiam-se rapidamente dos excrementos dos doentes, contribuindo em grande parte para corromper o ar, que nunca se renovava.

A maioria dos hospitalizados - exatamente como no casebre condenado por Franca e Horta - eram deitados sobre tábuas rudes, pois o pequeno número de colchões, quase todos podres aliás, não bastava às necessidades do serviço e estavam mesmo incapazes de ser utilizados. "As latrinas revoltam ao mesmo tempo todos os sentidos e são focos permanentes de corrupção" [304].

Móveis e utensílios

Os móveis e utensílios usados eram tudo quanto pode haver de ordinário, além de insuficientes para as necessidades do estabelecimento: 62 barras (camas compostas de dois bancos e quatro tábuas atravessadas); 77 enxergões, 30 travesseiros, 160 lençóis de algodão, 14 cobertas de lã, velhas e rotas; 1 colcha de chita, 27 mesas para as camas, 30 guardanapos, 17 tigelas de louça grossa do Porto, 15 pratos da mesma qualidade, 2 toalhas de mão, 18 bacias pequenas, que serviam de escarradeiras; 1 gamela, um cocho para banhos, e, na cozinha, panelas de barro.

O hospital não possuía farmácia; o fornecimento de drogas e o aviamento das receitas médicas eram feitos pela Misericórdia, em virtude de ajuste previamente estipulado e a este respeito ainda em Santos as coisas corriam melhor do que em S. Paulo - cujo hospital tinha farmácia mas a farmácia não tinha remédios [305]. Tudo isso demonstra o absoluto descaso que o governo português, mesmo depois de sua trasladação para o Brasil, votava ao povo brasileiro e às suas mais prementes necessidades individuais e sociais.

Do que acabamos de narrar se verifica que em Santos o governo tinha hospital e não tinha botica, e a Misericórdia tinha botica e não tinha hospital. Nada mais natural, portanto, que, em vista da estreita interdependência em que viviam os dois desorganizados institutos, reinasse entre ambos a mais completa cordialidade e harmonia. Mas tal não se dava, como para diante se verá.

O que é digno de registro é que, apesar da absoluta falta de providências locais de ordem sanitária, os santistas chegavam geralmente a alcançar idade avançada. Não havia esgotos, nem drenagem do solo, nem água abundante para limpeza das casas e das ruas.

O hospital, destituído de todo o conforto e de toda a higiene, era um vasto e perigoso aglomerado sem ar e sem luz, onde se internavam indistintamente os atacados de febre típica, de tuberculose, de sarna, de sífilis, e varíola, de disenteria e outros morbos reinantes na localidade, podendo constituir-se um foco irradiador das mais perniciosas moléstias.

A Vila, edificada junto a morros, que impediam franca e regular ventilação, era úmida e excessivamente abafada, sobretudo nos prolongados meses estivais. Os ribeiros que intercorriam por ela em três pontos diferentes, eram os esgotadouros dos habitantes marginais. Nas ruas sem calçamento o lixo se amontoava; e a lama formada nos dias chuvosos exalava miasmas pestilenciais quando o sol reaparecia, fermentando-a. As emanações da praia coberta de despejos corrompiam o ar parado e quente.

Não obstante esse desfavorável conjunto de fatores de insalubridade, gerados e mantidos através dos anos pela incúria dos governos, pela ignorância das massas e pela escassez das rendas municipais - a população desfrutava relativa saúde orgânica. Fora a varíola, com seus surtos periódicos, não reinavam epidemias; abundavam os velhos e as estatísticas não acusavam grandes saldos a favor da mortalidade local.

É que a vitalidade intrínseca da raça energicamente reagia contra a perturbadora influência dessas causas destruidoras externas, representadas pela natureza física, pelos hábitos individuais e pelas condições precárias da vida social; causas que só muitos anos depois é que deram origem e serviram de pábulo à febre amarela importada do Rio, em 1850.

Assim mesmo, apesar das condições do meio, excepcionalmente preparado para recebê-la, só depois de um período incubatório de três anos é que ela explodiu pela primeira vez em fevereiro de 1853 [306].


A Capela do Carvalho em 1892. Ereta na antiga rua da Praia,
sob a invocação de Jesus, Maria, José, e também conhecida por Capela do Terço
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Capela do Carvalho

Em 1800, a igrejinha da Misericórdia ameaçava desabar, tal o seu estado de ruínas. Os ofícios cultuais obrigatórios foram aí suspensos por tempo indeterminado, e a 10 de agosto daquele ano a Mesa da Irmandade requereu licença ao bispo diocesano para celebrar suas festividades e mais cerimônias religiosas na Capela do Carvalho, precedendo permissão de seu proprietário, José António Vieira de Carvalho; mas tal idéia, por motivos que não logramos conhecer, deixou de ser posta em prática [307].

Acordo entre a Santa Casa e o Hospital Militar

É bem de ver que, achando-se a igreja em tão precárias condições de estabilidade e segurança, não poderia continuar hospitalizando, como até então, em sua apertada sacristia, sem grave risco iminente, os enfermos que apareciam, quer de Santos, quer procedentes da Conceição, de S. Vicente e de outros pontos marítimos um tanto mais afastados.

Depois de prévio acordo, começou o Hospital Militar a receber em 1804 os doentes que a Santa Casa lhe mandava; a princípio, apenas os do sexo masculino, e de 5 de janeiro de 1805 em diante, também as mulheres. O preço convencionado era de 200 réis diários por enfermo, que foi elevado pouco depois a 320 réis, subindo a 640 réis, a partir de 1º de novembro de 1828.

A instituição atravessava nesse momento um dos seus longos períodos sincopais, em que não dava sinal de vida; a sua Mesa, desde 1811, isto é, havia 17 anos, não se reunia; e os destinos da Irmandade estavam entregues à absorvente incapacidade de um ou dois administradores que exploravam talvez as respectivas posições.

O ato da Junta da Fazenda, aumentando arbitrariamente o preço das diárias, fora das estipulações havidas, despertou de seu marasmo a Mesa desidiosa, que se reuniu a 21 de dezembro do mesmo ano para deliberar em relação a esse caso, e o Irmão Procurador, padre José Ignácio Rodrigues de Carvalho, propôs, e foi aceito, que se construísse um hospital próprio, porquanto as despesas com o Hospital Militar "eram muito superantes à receita do estabelecimento".

Havendo já em cofre algumas esmolas obtidas em diferentes épocas, pensou-se em dar sem demora execução à obra, levantando-se o edifício no "lugar denominado Hospital Velho, assim por pertencer o terreno à Santa Casa, como porque o que já há de edifício facilita muito a sobredita obra".

Onde seria o lugar denominado Hospital Velho? À primeira vista pode parecer que se trata do local onde três séculos antes Braz Cubas erguera o Hospital de Todos os Santos; mas não é crível que dos escombros desse edifício ainda restasse, tanto tempo depois, qualquer porção capaz de facilitar a construção de um outro.

Parece-nos indubitável que se trata do hospital começado por iniciativa dos militares da Guarnição da Praça, combinados com as pessoas mais influentes e pecuniosas da Vila, e que, por falta de recursos, ficara parado, como dissemos, à altura do soalho do primeiro pavimento.

Os obreiros e os fornecedores de materiais tinham legado à Santa Casa os seus créditos não satisfeitos pelos promotores da obra, que ficou assim pertencendo àquela instituição apesar de embargos judiciais que interessados apresentaram, mas não foram afinal recebidos.

Má administração da Irmandade

Aí, naturalmente, é que se pensou em localizar o novo hospital, pois as despesas seriam menos avultadas em vista das razões sugeridas pelo Procurador em sua proposta. Colocado nesse ponto, ou noutro, que não sabemos qual seja, a verdade é que o novo edifício, quando concluído, não passaria de um pardieiro, o que bem atesta a penosíssima situação financeira que a Irmandade atravessava então.

Esse pardieiro, não se prestando para os fins objetivados, os doentes continuaram a ser tratados no Hospital Militar; e a Irmandade reprofundou de novo no seu crônico torpor, pois durante cerca de dois anos a Mesa não celebrou uma única reunião.

Movimento de reação

Foi nesse momento que um pequeno grupo de santistas devotados resolveu pôr cobro, energicamente, a tal estado de coisas. De acordo com o Compromisso das Misericórdias do Reino, a de Santos não podia contar mais de 100 Irmãos; porém somente contava 9 no ano de 1830. Foi então que o padre Patrício Manuel Bueno de Andrada, primogênito dos Andradas; Francisco Xavier da Costa Aguiar Filho, seu sobrinho, e Augusto Francisco Barris requereram à Mesa para ser admitidos no quadro geral dos Irmãos.

A Mesa, ou antes, o procurador da Irmandade, padre José Ignácio Rodrigues de Carvalho, que dispunha a seu bel-prazer dos poucos rendimentos da Tesouraria, e que se achava alcançado em perto de dois contos de réis, opôs-se à pretensão dos requerentes e secamente indeferiu a sua petição.

Desse ato despótico, injustificável e ilegal, recorreram eles para o presidente da Província, em cujas funções estava servindo interinamente o vice-presidente, d. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, bispo diocesano, que deferiu o recurso, mandando admitir os recorrentes à Irmandade.

O procurador abandonou seu cargo; o provedor, homem honesto mas de ânimo demasiado prudente, colocou-se então ao lado dos vencedores, e a 1º de novembro de 1830 fez-se uma reunião geral para nova eleição e data daí a fase de reconstrução da Santa Casa, fase que se veio prolongando, em longos anos de esforçadas lutas, até hoje.

A 30 do mesmo mês, estimulada pelas novas forças que a instituição recentemente adquirira, a Mesa eleita reuniu-se para discutir o sempre adiado problema da construção do hospital, mas ainda nada ficou definitivamente assentado, porque as condições dos cofres sociais eram péssimas.

Afinal, a 5 de janeiro do ano seguinte, deliberou a Mesa Administrativa representar à Junta da Fazenda, pedindo-lhe que reduzisse a 480 réis a diária cobrada por doente. Foram vãos os seus esforços, pelo que, na reunião seguinte, de 3 de julho do mesmo ano, elegeu-se uma comissão para promover entre os habitantes da terra uma subscrição destinada a dar-se começo quanto antes à obra projetada, que se tornava cada vez mais urgente.

Calote oficial

Convém registrar-se que a Irmandade, da botica que mantinha à sua custa, fornecia ao Hospital Militar, por conta do Governo, e com abatimento, os remédios que lhe eram necessários; mas, desde agosto de 1813 a 21 de agosto de 1831, a Junta da Fazenda, depois Tesouraria da Fazenda Nacional em S. Paulo, não pagava os fornecimentos feitos, que montavam a 6.343$976 réis, contribuindo com o seu calote para que a Santa Casa não se pudesse livrar dos apertos financeiros com que lutava.

Em vista disso, e como o Governo não quisesse atender ao pedido de abatimento da diária dos enfermos, que lhe fora apresentado e razoadamente justificado, a Mesa, em reunião daquele dia, resolveu terminantemente que só se fornecessem ao Hospital Militar, de então por diante, os medicamentos que este requisitasse, mediante pagamento à vista e sem desconto.

Hospital provisório

Na mesma sessão foi mais deliberado montar um hospital provisório "nas casas de António José Vianna, sitas no Campo da Chacra", nas proximidades da Capela de S. Francisco de Paula, removendo-se para lá os doentes internados no Hospital Militar, em numero de doze, o que logo se fez, pois que já em outubro o novo estabelecimento hospitalar estava funcionando regularmente, embora em prédio alugado e temporariamente adaptado às circunstâncias do momento.

As casas de António José Vianna, de que damos adiante uma reprodução gráfica, conforme seu estado atual, de completa ruína, eram construídas em terrenos da chácara do professor de Gramática Latina, e parte integrante dela; chácara que passou a pertencer, segundo já narramos, ao capitão-mor da Vila de São Vicente, Bento Thomás Vianna, e por morte deste, aos seus herdeiros naturais. Estavam situadas pouco além do sobrado onde morou com sua família J. T. Rosmann - velho sobrado erguido também em terrenos da citada chácara e também pertencente a António José Vianna.

Como os aposentos fossem muito acanhados, as camas estavam colocadas rente às janelas, que eram muito baixas e desprovidas de rótulas, o que permitia a livre comunicação dos enfermos com os amigos e parentes compadecidos; e estes, por ignorância mesclada de perniciosa compaixão, levavam aqueles à quebra repetida do regime dietético, fornecendo-lhes viandas interditas e até bebidas alcoólicas ordinárias - prática nociva que redundava sempre na agravação perigosa das moléstias.

A Mesa mandou, logo que teve conhecimento do abuso, colocar as rótulas de que as janelas precisavam, providência que serviu para proteger os doentes contra os desastrados carinhos de que eram alvo, mas que piorou sensivelmente as condições de salubridade das estreitas enfermarias por tornar menos franca a circulação do ar exterior. Cada particular pagava 640 réis, diária que foi aumentada para 1.000 réis, em sessão de 2 de fevereiro de 1832.


Hospital provisório da Santa Casa em 1831 - As casinhas de António José Vianna,
sitas no Campo da Chácara (Praça dos Andradas) e que serviram de
Hospital Provisório da Santa Casa (estado em 1922)
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Percalços da Provedoria

Até janeiro desse ano, a alimentação dos presos da Cadeia era custeada pelo bolso particular de cada Mordomo, prática onerosa que cessou, passando daí por diante a ser paga pelos cofres da benemérita instituição [308].

Aliás, até o ano de 1724, o provedor era taxativamente obrigado a saldar de sua algibeira os déficits verificados durante a sua gestão, ônus que tornava difícil, quase impossível mesmo, encontrar quem quisesse exercer a Provedoria.

Depois, essa responsabilidade foi dividida entre todos os Irmãos, medida que estimulava o zelo de cada qual pela boa arrecadação e prudente aplicação das rendas. Mais tarde ainda, tal praxe cessou definitivamente; mas as dificuldades financeiras da Irmandade aumentavam sempre, e por conseguinte as dívidas cresciam com o aparecimento assustador dos déficits. O de 1832, antes mesmo de encerrado o exercício financeiro, subia já a mais de 1.000$000 de réis.

Ao correr a notícia desse fato, e diante do vulto colossal desse algarismo, parou de súbito o nobre coração dos nossos antepassados transidos de pavor; foi passageira, porém, a síncope de desânimo que lhes paralisara a resistente fibra varonil. Propelido e orientado pelos seus homens principais, resolveu o povo de Santos amparar vigorosamente a ameaçada existência de sua predileta e benemérita instituição.

Foi ainda o dr. Cláudio Luís da Costa quem, numa conjuntura de tal ordem, levantou o brado inicial em prol desse movimento regenerador, alvitrando a criação de uma sociedade especialmente consagrada a pagar as dívidas existentes e amortizar os déficits que anualmente se verificassem.

Sociedade Philantrópica de Santos

E a 4 de novembro de 1832, numa das dependências do hospital provisório, realizava-se a sessão preparatória da Sociedade Philantrópica de Santos, por cujo intermédio o nome da família Andrada iria ligar-se, indissoluvelmente, à sorte da Santa Casa de sua terra natal.

A 1º de janeiro do ano seguinte, procedeu-se, no mesmo local, à leitura, discussão e aprovação dos estatutos, tomando parte ativa nos trabalhos da assembléia António Carlos e Martim Francisco.

Sociedade Harmonia

Existia por esse tempo em nossa boa terra uma sociedade recreativa, destinada a desfazer a monotonia da vida local por meio de saraus dançantes e musicais e outras diversões amenas e permitidas. Chamava-se Harmonia e era nos seus alegres salões que as damas principais da Vila e os elegantes e peralvilhos da época se reuniam, mantendo em certo nível a cultura social do meio.

Em 1832 era seu diretor José Maria da Costa Paiva, e o prédio em que ela funcionava pertencia ao sargento de milícias, depois capitão, Manuel Pereira dos Santos, negociante, e residente com sua família, à Rua Direita, 31 [309].

Não sabemos em que rua estava localizado aquele prédio, mas é certo que suas acomodações eram relativamente vastas e confortáveis, porque o seu proprietário, de combinação com o diretor da Harmonia, ofereceu-o à Sociedade Philantrópica para nele celebrar suas reuniões. E efetivamente, a sessão seguinte, de 6 de janeiro, já foi aí que se realizou, com o comparecimento de grande número de senhoras e senhoritas da melhor sociedade e de respeitáveis cavalheiros, que se impunham pela posição, pela riqueza ou pelas virtudes.

Era a sessão de instalação, havendo um certo movimento de curiosidade popular, por se saber que os estatutos aprovados na assembléia anterior permitiam que da sociedade fizessem parte mulheres - o que era absoluta novidade no Brasil. A Philantrópica foi, em nosso país, a primeira associação para a qual o elemento feminino entrou no mesmo pé de igualdade que o sexo forte - isto quando mal nos emancipávamos do cativeiro colonial e da ferrenha educação doméstica que os portugueses mantinham geralmente em relação às mulheres.

Lá se encontravam, entre outras, as exmas. sras. d. Gabriela Frederica de Andrada, filha de José Bonifácio e esposa de Martim Francisco; d. Maria Flora de Andrada, irmã daquele e que ocupara no Paço Imperial as nobres funções de camareira-mor de d. Leopoldina; e as ilmas. sras. d. Engrácia Perpétua do Loreto, acompanhada de suas duas filhas mais velhas, senhoritas Maria Theodolinda e Maria Angélica; d. Gertrudes Manuela da Silva Bueno, d. Domingas Rosa de Campos, d. Anna Margarida da Graça Martins, d. Francisca da Silva Campos e d. Joanna Florinda Bittencourt.

Procedeu-se primeiramente à eleição dos cargos administrativos reservados às mulheres, sendo eleita promotora a ilma. sra. d. Gertrudes Manuela da Silva Bueno e para sua suplente a exma. sra. d. Maria Flora de Andrada. Para imediatas, a votação recaiu nas exmas. sras. d. Gabriela Frederica de Andrada e d. Rita Olívia de Aguiar e Sousa, casada com António Cândido Xavier de Carvalho e Sousa, e filha do coronel Francisco Xavier da Costa Aguiar e sua esposa d. Bárbara Joaquina, irmã dos Andradas.

Tratou-se depois da constituição do Conselho Deliberativo, que ficou assim composto: Martim Francisco (40 votos), António Carlos (37), Diogo José de Carvalho, cunhado de António Carlos e filho do coronel José de Carvalho e Silva e sua mulher, d. Anna Marcellina Ribeiro de Andrada, irmã dos Andradas (35); António Carlos da Costa Aguiar de Andrada, sobrinho deles (34); Luís António da Costa Aguiar (31) e outros cavalheiros menos conhecidos, formando um total de 14 membros. Para suplentes foram eleitos, entre outros, o padre Patrício Manuel Bueno de Andrada, irmão mais velho de José Bonifácio, e Francisco Xavier da Costa Aguiar, seu cunhado.

De seguida, o Conselho Deliberativo elegeu por unanimidade de votos António Carlos para presidente da associação e Martim Francisco para seu suplente, recaindo a eleição para os outros cargos em nomes de menos notoriedade.

Às 8 horas da manhã de 3 de fevereiro, os membros da novel sociedade, incorporados, dirigiram-se à Capela de S. Francisco, que se achava festivamente ornamentada por Manuel das Dores, e aí ouviram missa em ação de graças, a qual foi celebrada pelo padre Patrício e cantada pelo cônego Marcellino António Ribeiro Bueno, acolitados pelos padres Cardoso de Menezes e Sousa, pai do futuro barão de Paranapiacaba, e Joaquim José de Sant'Anna.

A orquestra portou-se briosamente sob a experimentada batuta do maestro Manuel Joaquim da Trindade. Tanto o serviço religioso, como o da música e o da ornamentação do pequeno templo, foram prestados gratuitamente. Após a missa, visitou-se o hospital provisório, no próximo Campo da Chacra [310].

Martim Francisco foi eleito presidente para o ano administrativo de 1833 e 1834 e neste ano terminam as atas lançadas no respectivo livro, por nós compulsado carinhosamente; mas a sociedade existiu até 1840, cumprindo com galhardia e fielmente o seu programa.

Não sabemos quem sucedeu na presidência àquele vulto, afastado de Santos pelas prementes solicitações da política geral que começava a agitar-se nos pródromos da Maioridade. Sabemos apenas que o padre Patrício foi eleito para esse cargo a 25 de janeiro de 1837, que nele ainda se achava em 27 de fevereiro de 1839, e que a 10 de maio de 1840, quando a sociedade se extinguiu, entregando à Santa Casa tudo quanto possuía, ainda era ele quem lhe presidia aos destinos [311].


O segundo Hospital da Santa Casa de Misericórdia, inaugurado a 4 de setembro de 1836
(antiga Capela de S. Francisco de Paula, em cujo Consistório devidamente adaptado se instalou o mesmo Hospital). Tela de B. de Cesare, Santos -1903
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Projeto de mudança do hospital provisório

Com o salutar, constante e vigoroso amparo que lhe dava a Philantrópica, a Irmandade pouco a pouco se desafogou das angústias financeiras em que se vinha debatendo, e resolveu encarar com mais energia o problema da instalação de um hospital em melhores condições do que o que existia nas casas alugadas a António José Vianna, insuficientes para atender às necessidades da população pobre, que aumentava com o crescimento demográfico da Vila.

É assim que, reunida a Mesa a 18 de junho de 1833, deliberou enviar ao provincial do Convento de Santo António (ou S. Francisco), na Corte do Rio, um Memorial, expondo-lhe a situação em que se encontrava a Irmandade e pedindo-lhe a cessão de uma parte do seu Convento nesta localidade para ser ocupado com o Hospital da Misericórdia.

Em princípios do ano imediato, chegou a resposta do provincial, atendendo à solicitação que lhe fora dirigida, e pouco depois chegava também a autorização do ministro da Justiça para que se lavrasse o contrato entre a Ordem Franciscana e a Santa Casa. Mas, além disso, era indispensável ainda que, depois de realizado, esse contrato, para produzir efeito, recebesse aprovação da Assembléia Provincial.

Enquanto se consumia esterilmente nessas delongas e negociações um tempo precioso, alguns sócios entenderam que seria melhor, em vez da projetada transferência do hospital para o convento, cuidar-se energicamente, decisivamente de construir um hospital definitivo no Consistório da Capela de S. Francisco, que já estava incorporada aos bens patrimoniais da Santa Casa.

A idéia propagou-se, entusiástica e vitoriosa, entre os Irmãos de maior prestígio no grêmio da velha e respeitável confraria, e foi aceita na sessão de 12 de fevereiro de 1835. Martim Francisco, dentro da Philantrópica, e o dr. Cláudio Luís da Costa e seu irmão Jeremias Luís da Silva, no seio da Irmandade, combatiam tenazmente a idéia, preferindo a localização do hospital no Convento de Santo António, a título provisório; foram, porém, vencidos pela maioria que, a 15 de maio, mandou que se iniciassem prontamente as obras projetadas.

Fundação do hospital atual

A pedra fundamental do edifício, levantado no lugar onde se acha atualmente (N.E.: vale recordar que este livro é de 1922, anterior mesmo às cogitações sobre a instalação do quarto prédio hospitalar, no bairro Jabaquara), foi lançada a 2 de julho de 1835; e a 4 de setembro do ano seguinte realizou-se, com a pompa relativa à época, ao meio e aos recursos obtidos, a inauguração do Hospital da Misericórdia, de que Santos estava privado havia cerca de dois séculos.

Os enfermos foram conduzidos processionalmente do hospital provisório para o definitivo, sendo carregados pelos piedosos Irmãos os que não podiam andar. O vigário da paróquia recebeu-os evangelicamente à porta da Capela, onde ouviram a missa comemorativa do fausto acontecimento.

Reforma do compromisso

O novo Compromisso, adaptado às necessidades da vida contemporânea e expurgado, portanto, das disposições obsoletas próprias das Misericórdias da antiga Metrópole - disposições que tinham sido transplantadas literalmente para cá - foi aprovado pela Irmandade, em sessão plena de 4 de novembro de 1835 e pela Assembléia Provincial de S. Paulo, a 21 de março de 1836.

Em sua nova fase, a alimentação dos presos da cadeia deixou de estar a seu cargo, passando a ser custeada pela Câmara local, à razão de 900 réis por dia e por pessoa, pagas mensalmente as respectivas contas. As grandes operações cirúrgicas de que necessitassem os referidos presos seriam cobradas por uma tabela especial [312].

Cellula mater

Este apanhado metódico, embora talvez um pouco extenso demais, da marcha ascensional da Misericórdia de Santos, reflete, em todos os seus diferentes períodos, a própria vida de nossa terra natal, desde o seu início.

Ao princípio, a civilização achava-se especialmente concentrada na faixa marítima - fundou-se a Confraria e seu hospital para atender às necessidades principalmente das embarcações que demandavam o porto. Sobreveio depois o período da expansão e da conquista, das Bandeiras varando heroicamente o sertão inóspito em procura do ouro e das pedras preciosas - é o deslocamento de todas as forças para o interior do país.

Santos, como as outras regiões do litoral, decai; e com a sua decadência o Hospital da Misericórdia desaparece durante dois séculos. Cessa, porém, a fecunda atividade expansionista, a era dos descobrimentos; os paulistas voltam aos seus lares, às suas fazendas, aos seus engenhos, às suas terras, às quais vão consagrar doravante as energias dispersas pelo sertão.

Colhem as regiões litorâneas, colhe sobretudo Santos, os resultados dessa nova fase, e o seu hospital, nascido e desaparecido ao alvorecer da vida local, na planície rasa habitada pelos primitivos povoadores, galga a encosta do antigo morro de S. Jerônimo, em cuja zona ocidental já se fixara então o núcleo mais florescente da localidade.

Erguendo-se da planura à montanha, é ele a simbolização perfeita da evolução histórica de Santos -, a humilde povoação que de suas remotas e obscuras origens coloniais ascendeu ao vitorioso grau de processo material e social que ostenta hoje, como segundo entreposto comercial e marítimo do Brasil e como segunda cidade do Estado de S. Paulo, pelo eterno fulgor de suas tradições, pelo excepcional devotamento de seus filhos ao trabalho e pelo seu culto vigilante aos princípios e aos dogmas da liberdade política.

Centro grandioso onde se congregaram os esforços convergentes de todos os lutadores do Passado, cujos altíssimos exemplos estimulam a atividade enérgica, o ânimo varonil das gerações presentes, empenhadas na faina de melhorar sempre e cada vez mais as condições da sociedade futura, ele que nos deu o nome - é bem a cellula mater de nossa terra natal.

Arrabaldes

Distinguem-se no censo de 1822, entre os vários bairros habitados, a Praia do Embaré, a da Barra, a do Góes, a do Guarujá e a de Tegereva; a enseada de Santo Amaro, o Itapema, o Cubatão Geral, a Bertioga e alguns mais que não constam da planta anexa porque esta somente abrange o perímetro urbano da localidade. No decurso de um século, alguns desses históricos subúrbios se transformaram em estações balneárias elegantíssimas e outros em núcleos de considerável atividade agrícola e industrial.

As ruas mais populosas eram a dos Quartéis e a de Santa Catarina, no arraial dos Quarteleiros; no dos Valongueiros eram as de Santo António e Valongo, estas duas últimas com um total de cerca de oitenta casas e 800 habitantes e as duas primeiras com mais de oitenta casas e 450 habitantes, aproximadamente.

A densidade predial do Valongo suplantava, pois, a dos Quartéis, porquanto o número de casas desta zona quanto às ruas principais, excedia ao daquela, sendo entretanto inferior à cifra total de sua população.

Mas o Valongo era, como já dissemos, o distrito comercial por excelência; a sua abastada população habitava prédios de vastas proporções, nalguns dos quais se abrigavam acima de cinqüenta pessoas, predominando as de condição escrava; ao passo que nos Quartéis, bairro de gente modesta, as casas residenciais não eram grandes e nem os seus moradores possuíam escravatura numerosa como os do povoado rival.


O segundo Hospital da Misericórdia
(aspecto em 1922, vendo-se, ao alto e à direita, o então novo pavilhão para tuberculosos)
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NOTAS:

[294] Já demos as razões por que julgamos que essa planta é posterior a 1806.

[295] Obra citada, páginas 209 e 210.

[296] Documentos interessantes, V. 18, págs. 173 e 174.

[297] Docs. ints. V. 24, pág. 18.

[298] Docs. ints. Vol. 31, pág. 351.

[299] Atestado passado pelo cirurgião-mor da Praça de Santos, João Baptista Teixeira, em 20 de abril de 1804; idem, passado a 9 do mesmo mês e ano, pelo sargento-mor de Milícias, Manuel José da Graça, comandante da Praça; idem, passado a 14, ainda do dito mês e ano, pelo médico do Presídio, dr. José Joaquim Freire da Silva (originais existentes no Arquivo Público do Estado).

[300] Informação prestada pelo capitão-general Franca e Horta ao vice-rei do Brasil, a 7 de junho de 1803 (originais no Arquivo do Estado). Ofício do mesmo ao conde de Linhares, em 21 de agosto de 1811 (Docs. ints. Vol. 31, pág. 351).

[301] Original em francês no Arquivo Público do Estado.

[302] Ibidem.

[303] Plano para o Regulamento do Hospital Real de S. Paulo, Art. 12, observado também no de Santos, e aprovado por Aviso Régio de 14 de dezembro de 1804 (No Arquivo do Estado).

[304] DR. JOSEPH-MARIE PAUL - Informação sobre o Hospital Militar de Santos (Original em francês no Arquivo do Estado).

[305] Informação prestada ao Conde de Linhares, em 1810, pelo físico-mor das Tropas da Capitania, JOÃO ÁLVARES FRAGOSO, sobre o Hospital Real Militar de S. Paulo e o da Vila de Santos (No Arquivo do Estado). O Hospital de S. Paulo era situado na Rua do Seminário, em frente ao desaparecido Mercadinho de S. João, no próprio lugar onde hoje o Governo Federal está construindo o prédio para os Correios e Telégrafos. Depois que daí saiu o Hospital, foi o edifício ocupado, por três vezes, pelo Seminário de Educandas da Glória: uma, em 1833, outra em 1814 a 1861, e a última, de 1862 a 1870 (ANTÓNIO EGYDIO MARTINS - S. Paulo antigo, 1º V. páginas 25 a 28; AZEVEDO MARQUES - Obr. cit. 2º V. pág. 165, 2ª Col.).

[306] DR. GUILHERME ÁLVARO - Obra citada, página 12.

[307] Esta capela, ereta sob a invocação de Jesus, Maria e José, e também conhecida por Capela do Terço, estava situada na Rua da Praia, dando frente para o mar. Ainda existia há cerca de trinta anos, em estado de quase completa ruína, e por isso não se prestava mais para a realização de ofícios religiosos, e o local onde foi ereta é hoje um trecho do cais. Seu proprietário, que faleceu de "moléstia incógnita", a 19 de dezembro de 1823, jazeu enterrado nela (Livro Parochial de Óbitos, de Santos, 181090 e 1840).

[308] DR. CLÁUDIO LUÍS DA COSTA - Relatório citado.

[309] Recenseamento de Santos, ano de 1830.

[310] Livro Primeiro das Actas do Conselho Deliberativo da Sociedade Philantrópica de Santos (No Arquivo da Santa Casa local).

[311] DR. CLÁUDIO LUÍS DA COSTA - Relatório citado.

[312] DR. CLÁUDIO LUÍS DA COSTA - Relatório citado. AZEVEDO MARQUES (Obra citada, V. 1º, pág. 91, 2ª col.), citando pequeno trecho desse Relatório, dá-lhe como data o ano de 1837, quando em 1838 é que foi ele escrito e apresentado à Irmandade. E referindo-se à existência do primitivo Hospital fundado por Braz Cubas, como que pretende contestá-la diante da Provisão do Conde de Athouguia, que transcreve, e que nós também reproduzimos atrás, não lhe ocorrendo a hipótese de que o mencionado Hospital podia ter desaparecido antes de 1654, e foi o que efetivamente se deu, como provamos. Se tivesse ele compulsado com a devida atenção o Relatório do Dr. Cláudio não teria dúvida alguma a respeito.


NOTAS SUPLEMENTARES:

BRASÃO D'ARMAS DA CIDADE DE SANTOS. Foi adotado pela Municipalidade respectiva, em virtude da lei nº 638, de 20 de setembro de 1920. É cópia, com diversas alterações, do brasão pintado no último estandarte municipal, mandado confeccionar pela Câmara em 1888. A esfera armilar simboliza a Ciência e a Navegação.

A banda auriverde, que a atravessa obliquamente, recorda as cores usadas pelas autoridades e pelos patriotas da época da Independência, no tope nacional instituído oficialmente por José Bonifácio por decreto de 18 de setembro de 1822, cores que, por decreto da mesma data, foram adotadas para a bandeira do nascente império [*].

Neste pormenor, o brasão atual diverge do que existe no estandarte municipal de 1888, pois a banda bicolor atravessava então a esfera em sentido diagonal entre os dois círculos polares e não abrangia apenas a zona equatorial, como agora. A modificação introduzida se afasta, aliás, da tradição histórica, porquanto na bandeira do Principado do Brasil [*], na do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e na do Império, a banda corre invariavelmente de um círculo polar ao outro.

O campo de goles (cor vermelha) significa, de modo genérico, que todos os brasileiros devem seu sangue à Pátria; e particularmente, que os primeiros santistas, ao tempo de Braz Cubas, sacrificaram-se em defesa da terra, lutando contra os piratas e os silvícolas. O caduceu de Mercúrio é o emblema da atividade comercial, da qual aquele Deus pagão era patrono.

A coroa mural, em forma de castelo, representa a força e resistência, em memória de que Santos foi outrora como praça militar fortificada. Os metais das armas evocam a entrada da primeira bandeira no sertão, chefiada por Braz Cubas, e a descoberta de ouro e outros metais preciosos; o café é o símbolo da riqueza paulista e da base da vida comercial em Santos.

A divisa latina - Patriam charitatem et libertatem docui, que segundo o memorial explicativo mandado publicar pela Câmara, assim se traduz: À Pátria ensinei a liberdade e a caridade - quer dizer que, fundando o primeiro Hospital de Misericórdia no Brasil, e fundando a Independência, por intermédio dos três Andradas - deu Santos aos povos o exemplo daquelas virtudes cívicas. (N.E.: o brasão santista sofreu novas modificações em 2004).

[*] Leis do Império do Brasil, vol. 1º, págs. 7 e 8.

[*] A esta categoria foi elevado em 1647 por d. João IV, sendo d. Theodósio, seu primogênito, o primeiro príncipe do Brasil (ABREU E LIMA - Synópses da História do Brasil, pág. 110).

CARTA DE BRAZ CUBAS - Foi reproduzida da História do Brasil, de Rocha Pombo.

FORTIFICAÇÕES MARÍTIMAS - O plano do Fortim de Itapema, o da Fortaleza de Santo Amaro, o da Estacada e o da Ponta da Armação foram extraídos da obra de B. Calixto - Capitania de Itanhaên.

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