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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
Clique na imagem para ir à página principal do livro 'Os Andradas'1922 - por Alberto Sousa (3)

A história, desde a fundação, pelo autor de Os Andradas

Ao longo dos séculos, as povoações se transformam, vão se adaptando às novas condições e necessidades de vida, perdem e ganham características, crescem ou ficam estagnadas conforme as mudanças econômicas, políticas, culturais, sociais. Artistas, fotógrafos e pesquisadores captam instantes da vida, que ajudam a entender como ela era então.

É o caso da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, cuja transcrição do capítulo 1 (A Vila de Santos), com ortografia atualizada, continua (páginas 109 a 121):
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Pendão colonial (1500)
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A Vila de Santos
Suas condições topológicas, demográficas, econômicas e sociais

Caminho do mar

Já vimos que foram dois os núcleos de povoação que inicialmente se formaram no porto fundado por Braz Cubas: um, mais para o Oriente e para as bandas do litoral; outro, mais para o Poente e para o interior, ambos com elementos capazes de assegurar seu pronto desenvolvimento demográfico, econômico e social. As terras baixas existentes entre os dois outeiros continuaram desabitadas até aos começos do século dezoito, mais ou menos.

Não tardou, porém, que o novo e auspicioso núcleo de São Jerônimo suplantasse em vitalidade o núcleo de Santa Catarina, porquanto, além da estrada, de que já falamos, aberta por Paschoal Fernandes e seu sócio, dando acesso, pelo Jabaquara, até a vizinha S. Vicente, fora reconstruído, ou antes, melhorado, o caminho que do Cubatão ia ter a S. Paulo, o que muito contribuiu para amiudar e intensificar as relações comerciais entre Santos e todo o interior.

Esse caminho, que galgava a Serra de Paranapiacaba, ainda no começo da segunda metade do século dezoito achava-se em condições de quase completa intransitabilidade, tanto para viajantes como para tropas conduzindo mercadorias. As reclamações dos interessados nada podiam contra a habitual inércia dos governadores, nem contra o sistemático abandono em que a Metrópole deixava a sua opulenta Colônia, cujas Capitanias, para viverem através dos mais duros sacrifícios, tinham que contar principalmente com os abnegados esforços de seus próprios habitantes.

Tinha sido ele consertado em 1726, por ordem do governador Rodrigo César de Menezes, pela quantia de 2.000 cruzados, sendo ajustado o serviço com o "homem mais perito e inteligente que tem a Vila de Santos, obrigando-se a pô-lo na última perfeição, como de fato o pôs, de sorte que podem subir e descer cavalos e escravos arreados sem descômodo [53]".

Como os consertos parciais, feitos de espaço a espaço, arruinavam-se depressa, voltando a estrada ao que antes era, tinha aquele governador deliberado energicamente empreender essa reforma geral com caráter definitivo. Bom foi que no seu ofício não declinasse o nome do nosso abalizado conterrâneo, o qual não correspondeu à fama que o cercava de ser o técnico mais conspícuo em assuntos concernentes à construção e remodelagem de estradas vicinais.

A verdade é que, apesar da elevada soma por que contratou as obras, e não obstante a obrigação que assumira ousadamente de executá-las com a maior perfeição, não resistiram elas por longo prazo à ação do tempo e à continuidade do tráfego, porquanto, em março de 1734, o conde de Sarzedas, novo governador, deixou de mandar fazer-lhe as precisas reparações por causa das águas que dificultavam o trabalho [54]; e trinta e três anos depois, outro governador que, através de seus desvarios, prestou alguns reais serviços a S. Paulo - o Morgado de Matheus, teve um gesto de ampla e arrojada iniciativa, que surpreendeu e encheu de jubilosas esperanças a desiludida população de nossa decadente Capitania.

Lembrou-se ele de dirigir "a todos os homens de negócio da Praça de Santos", por intermédio do respectivo sargento-mor, uma consulta sobre quais seriam os meios mais convenientes a adotar para o aumento do comércio e navegação direta entre a mesma Praça e Lisboa, Porto e Ilhas.

Arrojada iniciativa da Praça de Santos

Exultou o comércio de Santos, e na longa resposta que lhe deu, a 5 de julho do mesmo ano, propôs, entre outras medidas menos importantes, se bem que de caráter essencialmente prático, a fundação de uma ou mais Companhias particulares, destinadas a entabular diretamente as relações comerciais e marítimas lembradas na consulta, e a "feitura do caminho para S. Paulo, porquanto é certo e sem dúvida que a incapacidade e fragoso do referido caminho tem servido, serve e servirá de notável prejuízo, tanto na diminuição dos direitos reais, como na decadência da Capitania".

A Praça de Santos, pelos seus principais representantes, signatários da aludida resposta, agiu ato contínuo de acordo com suas opiniões, subscrevendo considerável quantia para a incorporação das Companhias de Navegação e Comércio - oito contos e duzentos mil réis, que na moeda atual equivalem a cerca de quinhentos contos de réis, e sugeriu ao mesmo tempo aos comerciantes de S. Paulo o dever em que se achavam de contribuir com mais quantiosa dotação, por serem mais numerosos, disporem de maiores possibilidades e terem na solução do problema os mesmos interesses que seus colegas de serra abaixo.

No tocante à construção da estrada, alvitraram os santistas que fosse ela custeada pela Real Fazenda, se possível; caso contrário, deviam todas as Câmaras da Capitania concorrer para a obra comum, dentro cada qual de suas forças.

O ofício foi enviado pelo governador à Câmara da Capital, para sobre sua matéria se pronunciar devidamente, o que ela só fez a 13 de janeiro do ano seguinte, tendo previamente convidado para tomarem parte na sessão alguns dos mais conceituados mercadores da Cidade, os quais, inteirados do conteúdo do papel que se lhes propôs, prometeram responder daí a quinze dias, como de fato o fizeram, em vereança de 27 do mesmo mês; mas sua resposta, por demasiado vaga e protelatória, nada mais significava que uma recusa polida às arrojadas propostas da Praça de Santos, que ao seu gesto resoluto juntara imediatamente a ação.

Quanto às Companhias, os paulistanos, prudentes e timoratos, as impugnaram por contrariarem decretos reais e não serem úteis e convenientes ao bem comum, mas não disseram em que consistia a inutilidade e inconveniência do projeto; e em relação à estrada assentaram que era muito útil e necessário fazê-la, visto a pobreza em que se achavam os povos... isto é, que a Real Fazenda pagasse as despesas [55]. E não disseram palavra sobre se estavam prontos ou não a contribuir com um pouco de seus rendimentos para empresas ou obras que redundassem no fomento geral e na estimulação das forças econômicas da Capitania.

Em 1772, o Morgado de Matheus voltou à carga e conseguiu abrir uma subscrição entre todas as Câmaras paulistanas para se levar avante a obra de reparação definitiva da estrada; e nomeou o alferes Manuel Rodrigues Jordão para receber e guardar como depositário as quantias subscritas com aquele fim [56].

Novas e tremendas dificuldades deviam ter anulado o seu esforço - escassez de recursos pecuniários ou rápido estrago da obra mal construída - visto como, doze anos depois, isto é, em 1780, persistiam as péssimas condições anteriores da estrada, ou eram piores ainda, e as reclamações dos povos prejudicados não cessavam de chegar até junto dos governadores, que se revelavam incapazes ou impotentes para resolver o problema, cuja solução indefinidamente se adiava.

Substituído o Morgado de Matheus, a 14 de julho de 1775, por Martim Lopes Lobo de Saldanha, eis que este, cinco anos depois, a 5 de junho de 1780, sentiu-se afinal compenetrado da urgente necessidade de construir o caminho, e em longa carta dirigida ao Senado da Câmara de S. Paulo, declara-se francamente disposto a empreender as obras respectivas, por ser isso absolutamente indispensável aos interesses da Fazenda Real, de todas as povoações da Capitania e de cada um dos particulares nela estabelecidos.

Como, porém, a ruína da referida estrada era tamanha, que o Régio Tesouro não podia sozinho arcar com as despesas de sua suficiente reparação, recomendava o governador à Câmara que ouvisse o povo da cidade e seu termo a respeito do quantum com que voluntária e espontaneamente concorreria para se dar começo à obra projetada.

A Câmara recebeu essa carta em sessão de 27 do mesmo mês e a 29 reuniu-se de novo para tratar do assunto, tendo convocado para comparecerem em sua presença, e deliberarem sobre seus donativos, alguns republicanos e homens de negócio que tomaram por escrito seus compromissos.

A 6 de maio continuou ela, em vereança desse dia, na diligência de pedir ao povo para que concorresse com suas quotas em favor dos melhoramentos do caminho; e na sessão de 21 respondeu a Martim Lopes, remetendo-lhe as listas de subscritores, as quais renderam juntas a quantia de seiscentos e quarenta e cinco mil e quinhentos e vinte réis, e prometendo-lhe que, depois de principiada a obra, se concorreria com dobrada soma.

A 16 de setembro acusa o governador o recebimento das listas e declara à Edilidade que, com a esperança que a mesma lhe dá de que o povo, depois de iniciados os trabalhos, contribuirá com o dobro das quantias até então subscritas, mandara uma turma de homens práticos proceder às explorações preliminares que se tornavam precisas para se começarem com toda a segurança os referidos trabalhos.

A Câmara, pressurosa, respondeu a essa carta, em sessão de 19, reiterando as promessas feitas. Em vista disso, Martim Lopes, na segunda-feira, 7 de maio do ano seguinte, mandou dar início às obras, o que comunicou à Corporação Edilícia, em carta de 14 do mesmo mês, na qual lhe pede que mande entregar a quem de direito o que restava da quantia subscrita, pois até então só tinham sido recebidos quatrocentos e poucos mil réis e recomenda-lhe que, para não suceder parar a obra, convoque de novo os que prometeram dobrar a totalidade do donativo já feito.

A Câmara, em 16 de junho, resolveu cobrar executivamente todos quantos, tendo assinado, não fizeram no tempo devido as referidas entradas; e a 20 de outubro escreveu ao governador uma carta, cientificando-o de que faltavam apenas dez mil e seiscentos e cinco réis para perfazer o total subscrito, mas que considerava incobrável esse pequeno saldo, e que a nova cobrança rendera cinqüenta e sete mil e cinqüenta e cinco réis.

Martim Lopes, sumamente indignado com a escassez da nova espontânea doação, que nem de longe correspondia às promessas que reiteradamente lhe tinham sido feitas, e com a arrogância e brutalidade que lhe eram congênitas, respondeu aos Oficiais da Câmara, declarando-lhes que ficara suspenso com o conteúdo de sua missiva, determinando-lhes que devolvessem os cinqüenta e tantos mil réis aos miseráveis que os ofereceram, e comunicando-lhes que as obras prosseguiriam dentro das possibilidades da arrecadação já feita e parariam até que houvesse na Edilidade vereadores zelosos do serviço real e do bem público.

Não sabemos que impressão teria produzido no alarmado espírito dos camaristas piratininguenses a linguagem áspera e a ordem insolente do capitão-general, porque nas seguintes sessões não se tratou do recebimento de sua carta; pelo menos as atas são mudas a esse respeito. Entretanto, ela foi recebida, sem dúvida alguma, porquanto está registrada pelo secretário da Municipalidade, no livro competente.

Também no mês seguinte já o povo da Capital exultava com a notícia de que estava prestes a libertar-se da prepotência desse déspota que todos amaldiçoavam: pois chegara oficialmente a comunicação de que viria em breve substituí-lo Francisco da Cunha Menezes [57], que governou a Capitania de 1º de março de 1782 a 4 de maio de 1786.

O Caetaninho

Seu antecessor, entre outras obras, mandara fazer um grande aterrado junto ao Rio Grande [58], cujas inundações periódicas alagavam a estrada, tornando-a absolutamente intransitável. Menezes não abandonou os melhoramentos encetados e data de sua administração o início da prosperidade comercial da Capitania [59].

O marechal José Raymundo Chichorro Gama Lobo, governador interino, que serviu de 5 de maio de 1786 até 4 de junho de 1788, prosseguiu nas obras empreendidas pelos seus predecessores e mandou, por sua vez, fazer um aterrado desde a raiz da Serra até a borda do rio Cubatão, o qual, na época das cheias, transbordava, encharcando todo o terreno marginal.

D. Bernardo José de Lorena, que lhe sucedeu, administrando a Capitania, de 5 de junho de 1788 a 27 de junho de 1797, continuou as obras, que eram feitas com lentidão e muito deixavam ainda a desejar, pois, ao tempo de seu governo, "o estado do caminho da Serra era tal que só se podia andar por ele a pé, ou com muito risco" [60].

Por último, António Manuel de Mello Castro e Mendonça, assumindo as rédeas governamentais a 28 de julho de 1797, encarou com mais coragem que os outros o problema da comunicação regular entre o interior da Capitania e seu único porto marítimo, problema que era de substancial importância não só para o desenvolvimento de S. Paulo como das terras que, pela sua vizinhança, dela dependiam.

Tráfego de cargas entre Santos e o interior

Até 1827, as tropas de bestas conduzindo mercadorias, paravam às margens do Cubatão. O açúcar, principal gênero que do interior descia para Santos, era acondicionado em jacás, barris ou canastras mal forradas, e transportado, daquele porto fluvial, para a Vila, em saveiros ou lanchas, forçados a passar pelo largo do Caniú, o terror dos marítimos, porque tinha pouco fundo, e, com as trovoadas que agitavam o mar, as embarcações viravam, enchiam-se d'água, estragava-se a carga e até às vezes morriam tripulantes em luta com as ondas enfurecidas [61].

Transporte de passageiros

Os passageiros alugavam canoas pertencentes aos padres jesuítas, que ali possuíam uma Fazenda; isto, antes da confiscação de seus bens e respectiva incorporação aos domínios da Coroa. Esses religiosos pretendiam usufruir o privilégio de transportar passageiros, de modo que suscitaram com seus vizinhos contínuas questões que foram levadas a juízo, mas que somente lograram solução definitiva depois da proscrição da Ordem.

Projeto de estrada entre Santos e Cubatão

Antes de Castro e Mendonça tomar posse, já se havia tentado um melhoramento mais completo e visando melhores resultados práticos; era a construção de um caminho por terra desde o Cubatão até Santos, para evitar as delongas, os perigos e os prejuízos que a condução por mar acarretava. As dificuldades materiais a vencer eram grandes, faltavam recursos financeiros para essa obra que todos julgavam dispendiosa.

Alvitrou-se fazê-la por meio de uma contribuição das pessoas e corporações mais diretamente interessadas nela, mas as opiniões variavam a respeito e tudo ficou simplesmente em projeto. Em 1798, porém, Mendonça resolveu retomar o projeto novamente, conseguiu que os contribuintes se pusessem de inteiro acordo com ele sobre a imprescindibilidade da obra e lhe deu começo em setembro do referido ano.

Entre outras coisas, determinara que se construíssem três boas pontes de madeira, assentadas sobre pilares de pedra e cal, em todos os rios e braços pequenos de mar que a estrada em projeto devesse atravessar, exceto no rio Cubatão, onde haveria uma barca destinada a levar de uma a outra margem os passageiros.

Na Memória, a que nos reportamos, termina o governador por assegurar com toda a confiança: "há toda a certeza de que se há de concluir com brevidade". Havia apenas três meses que os serviços tinham sido atacados por sua ordem, e as despesas relativas corriam por conta da contribuição principiada em 14 de março [62].

Não sabemos em que espécie de ilusórios cálculos se fundaram suas esperanças, pois é certo que até depois da nossa independência política, nenhum caminho transitável comunicava por terra a Vila de Santos com o porto do Cubatão. Ainda em 1816, o marquês de Aguiar, secretário de Estado, enviava ao conde de Palma, governador de São Paulo, de 8 de dezembro de 1814 a 24 de abril de 1819, para informar, o requerimento em que a Câmara de Santos reclamava a continuação da obra, prova de que ela estava paralisada havia muito tempo [63].

E nesse estado permaneceu até que o presidente da Província, Lucas António Monteiro de Barros, dando definitivo impulso à iniciativa de seus vários antecessores desde os tempos coloniais, concluiu a estrada e entregou-a ao trânsito público a 17 de fevereiro de 1827 [64].

Caminhos para S. Vicente

O próprio caminho antigo, que dos Jerônimos levava a S. Vicente, ressentindo-se da incúria geral, fora pouco a pouco tornando-se intransitável, até cair em completa ruína e abandono, sendo substituído por outro que Pedro Rose ou Roser, administrador do Engenho de S. Jorge, abrira muitos anos depois de ser vila o porto de Santos [65].

Este mesmo caminho novo foi mandado reparar em 1819 pelo governo de d. João VI, à custa da Real Fazenda. A 30 de janeiro, o então brigadeiro Cândido Xavier de Almeida e Sousa, comunicando aos "Ilmos. Srs. Juiz de Fora pela Lei e Deputados do Nobre Senado" a abertura da estrada, lhes deprecava "em observância das positivas ordens de Sua Majestade, a perfeita conservação da dita estrada de comunicação como melhor acordarem, ou pelos bens do Conselho, pelos senhorios das testadas, ou braço em comum dos vizinhos", pois aos mesmos senhores pertencia "privativamente pela Ordenação a conservação de pontes, fontes, estradas e calçadas" [66].


Transporte de mercadorias na Praça de Santos, no século dezoito
(condução de caixas de açúcar)
N.E.: desenho decalcado sobre a estampa carioca Negros de Carro, de Jean Baptiste Debret
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Transporte urbano de mercadorias

Antes da abertura do caminho entre o Cubatão e Santos, as tropas que desciam a serra não transpunham o rio, conforme notamos: as mercadorias do interior, destinadas à Vila, e vice-versa, eram transportadas em lanchões que navegavam entre aqueles portos.

Ao que pudemos averiguar, não conheciam até então os santistas o dócil e prestimoso burro de carga, que muitos anos depois havia de tornar-se um dos grandes propulsores da riqueza local, quando o café se constituiu o principal gênero de exportação comercial da Praça.

Todo o serviço de transporte entre o mar e a terra era executado pelos robustos escravos dos diferentes trapiches, em carros puxados a mão, segundo se vê de vários desenhos da época e dos quais aqui reproduzimos uma cópia. Tais carros eram construídos de pranchas de pau, ligadas umas às outras, e assentes sobre quatro pequenas rodas que não tinham talvez cinqüenta centímetros de diâmetro. Tornava-se necessário o emprego de vários escravos para moverem-nos convenientemente, em virtude do excessivo peso da mercadoria que transportavam e que era, sobretudo, o açúcar.

Este produto, como dissemos atrás, vinha para Santos mal acondicionado em jacás, barris e canastras; aqui, os compradores que o revendiam para fora, passavam-no para caixas de madeira que comportavam de quarenta a cinqüenta arrobas cada uma!

Vimos, no Manifesto da corveta Santíssimo Sacramento, que de Santos saiu para Lisboa, a 4 de fevereiro de 1801, com carregamento de açúcar, que cada caixa pesava quarenta e quatro arrobas; e as que o bergantim Grão Penedo, comandado pelo mestre José da Silva Neves, levou do mesmo porto para o mesmo destino, a 17 de outubro do referido ano, pesavam nada menos de cinqüenta arrobas, ou seja a bagatela de setecentos e cinqüenta quilos!

Calcule-se de que espantosa força muscular e surpreendente agilidade não precisariam dispor os pobres negros dos trapiches para as transportarem até o cais e colocarem-nas a bordo das embarcações.

Comércio de açúcar. Fraudes e medidas de repressão. Causas depreciativas de sua qualidade

Por sinal que o açúcar paulista achava-se muito desacreditado na Praça de Lisboa e outros mercados consumidores da Europa, graças à fraude empregada sistematicamente por exportadores audaciosos, para ganharem na qualidade e no peso.

Ao passarem-no dos jacás ou canastras para as caixas de madeira, colocavam, entre duas camadas de açúcar fino, uma de açúcar mascavo - era a fraude quanto à qualidade; e quanto ao peso, aumentavam-no, adicionando ao conteúdo pedras enormes.

Quando a Corte Portuguesa veio para o Brasil, tratou de reprimir tão escandaloso abuso; e o Alvará de 27 de fevereiro de 1810 [67] dispôs que os que introduzissem nas caixas "corpos estranhos para aumento do peso" ou cobrissem "artificiosamente porções de açúcar de inferior qualidade com o da superior" incorreriam "pela primeira vez na pena de confisco das mesmas caixas e na de prisão por seis meses em cadeia pública; e de degredo por cinco anos para Angola, além das ditas penas, nos casos de reincidência".

Aliás, não era somente a fraude, depois reprimida pelas autoridades, que desacreditava nas praças européias o açúcar de produção paulista. A falta de ranchos onde ficasse depositado no Cubatão, durante a noite ou em dias chuvosos, até ser transportado para a Vila, contribuía para que o produto, geralmente mal acondicionado, e assim exposto às intempéries, se ressentisse do excesso de umidade, estragando-se e perdendo, por isso, grande parte do seu valor [68].

A indústria açucareira desaparece de Santos. Razão desse fato

E por que é que Santos, que iniciara com o maior sucesso a indústria açucareira na Capitania - perguntar-nos-ão talvez - abandonara então essa rendosa indústria que florescia pelo interior? Por uma razão muito simples e muito positiva. A experiência demonstrou que a produção de açúcar à beira-mar era muito menos rendosa que nas terras do sertão; aqui a safra regulava 60 arrobas por cada negro; lá embaixo o rendimento não passava de 25 arrobas por negro. No litoral, era preciso que o operário fosse assaz hábil para não perder muitos tachos de caldo, que não chegavam a cristalizar [69].

Foi esse o motivo por que tal indústria desapareceu de nossa terra, onde, ao encerrar-se o último ano do século dezoito, já não havia engenho algum em funcionamento; mas em S. Sebastião, em Vila-Bela, em Ubatuba continuavam a fabricá-lo em abundância e de excelente qualidade [70], não podendo contudo concorrer com o do interior porque a produção ficava mais cara, por causa da perda de numerosas tachadas. Das localidades de serra acima, a que mais produzia era Itu - uma média anual de 50.000 arrobas [71].


Bandeira do Principado do Brasil (1647-1816)
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NOTAS:

[53] Correspondência de Rodrigo César de Menezes (Nos Documentos interessantes, V. XVIII, páginas 208 a 210 e V. XXXII, páginas 144 a 146).

[54] Documentos interessantes, V. XL, página 137.

[55] Actas da Câmara Municipal de S. Paulo, 1765-1770 (Publicação oficial do Arquivo Municipal, V. XV, páginas 324 a 340).

[56] Documentos interessantes, V. XIII, página 71.

[57] Actas da Câmara Municipal de S. Paulo, 1777-1782 (Publicação oficial do Arquivo Municipal, Volume XVII, páginas 236 a 266, 273, 349 e 371). Registro Geral da Câmara Municipal de S. Paulo, 1764-1795 (Publicação oficial do mesmo Arquivo, páginas 291 a 293, 297 a 298, 316 a 318, 366 a 367, 401 a 405).

[58] Foi quando Martim Lopes andava inspecionando as obras dessa estrada que aconteceu o episódio que tristemente o celebrizou em nossa história colonial e no qual pereceu vitimado por sentença iníqua, o mulato Caetano José da Costa. Trombeta da Companhia do capitão Joaquim José de Macedo, da Legião de Voluntários Reais - o Caetaninho, diminutivo pelo qual era popularmente conhecido e ficou perpetuado nos anais da Capitania de S. Paulo.

Companheiro de folguedos de António Lobo de Saldanha, filho do capitão-general, com ele mantinha a licenciosa intimidade que nasce logicamente dessa espécie de relações viciosas e que anula os graus hierárquicos mesmo na disciplina militar.

Para homenagearem Martim Lopes, em sua passagem por S. Bernardo, ofereceram-lhe os moradores do lugar, "numa casa de campo dos Religiosos Beneditinos, denominada S. Bernardo" (ofício ao secretário de Estado, Martinho de Mello e Castro, a 14 de novembro de 1781) uma ruidosa festividade, composta de várias e interessantes diversões. (O dr. ANTONIO DE TOLEDO PIZA diz, por engano, em a nota nº 2, pág. 162, do vol. 31 dos Documentos interessantes, que esse acontecimento ocorrera na Fazenda de São Caetano. Convém assinalar que o Mosteiro de S. Bento possuía duas fazendas: uma, de S. Bernardo, que lhe fora doada em 1651 por Miguel Aires Maldonado; e outra, de S. Caetano, doada no mesmo ano, pelo capitão Fernando Dias Paes).

No decurso de um entremês teatral e de um bailado, seu filho, em provável estado de embriaguez, que lhe era quase normal, agrediu a bofetadas Caetaninho, por motivo fútil e seguro da impunidade, graças à privilegiada situação que desfrutava junto ao governo de seu pai, na alta qualidade de capitão-ajudante de ordens.

O ofendido, num irreprimível impulso de indignação mesclado ao sentimento de dignidade pessoal enxovalhada, não medindo as fatais conseqüências de seu gesto desabrido, vibrou algumas facadas no seu brutal agressor, pelo que foi imediatamente preso e remetido para a Capital.

Martim Lopes fê-lo submeter a Conselho de Guerra, que o não condenou à morte, por se tratar apenas de crime de ferimentos. Mas não se conformou ele com a justa decisão e anulou-a, mandando formar outro Conselho, composto de militares servis que lavraram sentença de acordo coma sua vontade implacável; e Caetaninho foi sacrificado odiosamente ao orgulho desse déspota cruel, em outubro de 1781 (AZEVEDO MARQUES - Apontamentos Históricos e Geográphicos da Província de S. Paulo, V. I pág. 79, 1ª col. V. II pág. 68, 2ª col. e 266, 1ª col. MACHADO DE OLIVEIRA - Quadro histórico, Appêndice).

Tantos e tão façanhosos feitos obrou durante a sua gestão, que a Câmara Municipal, o ouvidor e o bispo d. Frei Manuel da Ressurreição representaram repetidamente contra ele ao Governo da Metrópole, conseguindo finalmente vê-lo fora do cargo que desonrava (A. DE TOLEDO PIZA, Chrónicas dos tempos coloniaes, na Revista do Inst. Hist. de S. Paulo V. IV, página 314).

A respeito de Caetaninho, o falecido dr. Paulo António do Valle, que foi Lente de Retórica do Curso Anexo à Faculdade de Direito de S. Paulo, escreveu um drama em 3 atos, que foi representado nesta Capital, no teatro público denominado Ópera, existente então onde hoje se levanta o edifício da Secretaria da Fazenda e demolido, por volta de 1870, em vista do seu estado de ruína. O drama do dr. Paulo do Valle foi publicado no ano seguinte, num volume de 87 páginas, in-8º (SACRAMENTO BLAKE, Dicc. Bibliogr. Bras. V. VI págs. 358-59. ALBERTO SOUSA - Memória histórica sobre o "Correio Paulistano" páginas 46-47, ediç. de 1904).

AZEVEDO MARQUES (Obr. cit. V. II, pág. 69), transcrevendo um trecho da resposta que ao ofício de 22 de maio de 1776, em que acusava o ouvidor do crime, mandou o vice-rei do Brasil a Martim Lopes, diz que a acusação e a referida resposta se referem a Caetaninho, o que é equívoco do cronista, pois o fato em que o Trombeta se envolveu em S. Bernardo aconteceu a 16 de setembro de 1781, isto é, quatro anos depois, como consta de várias passagens de sua obra e documentos autênticos nela inseridos, o que põe em plena evidência o seu engano.

[59] CASTRO E MENDONÇA - Memória sobre a communicação da Villa de Santos com a Cidade de S. Paulo, escrita em 1º de janeiro de 1799 (Documentos interessantes, Vol. XXXIX, páginas 112 a 114).

[60] Idem, ibidem.

[61] CASTRO E MENDONÇA, ibidem, páginas 115 e 116. O Largo do Caniú é uma reunião de águas na parte interior da baía de Santos, entre a barra do Casqueiro, a do Casqueirinho e a Ilha dos Bagres. Segundo o Dr. JOÃO MENDES DE ALMEIDA (Dicc. Geográphico, pág. 52, 2ª col.) quer dizer "torvelinho incessante".

[62] Documentos interessantes, V. XXIX, págs. 111 e seg.

[63] Idem, V. XXXVI, pág. 30.

[64] AZEVEDO MARQUES, Obr. cit. 2º V. pág. 276, 1ª col.

[65] FREI GASPAR - Fundação da Capitania de S. Vicente (Nos Doc. interess. Vol. 44, pág. 91)

[66] Ofício existente em original no Arquivo da Câmara Municipal de Santos.

[67] Leis do Brasil, 1º Vol. página 394.

[68] ANTÓNIO MANUEL DE MELLO CASTRO E MENDONÇA - Memória sobre a communicação da Villa de Santos com a Cidade de S. Paulo, assim por mar como pelo caminho projectado por terra, e sôbre o principal commércio que há, com a Europa e os portos d'América por esta via, escrita em 31 de janeiro de 1799 (Doc. int. vol. 29, pág. 121).

[69] Idem, ibidem, pág. 120.

[70] Relatório com que o capitão-general Bernardo José de Lorena passou o Governo da Capitania a seu successor António Manuel de Mello Castro e Mendonça, a 27 de junho de 1797 (Doc. Int., Vol. 15º, pág. 124).

[71] Idem, ibidem.

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