Apresentação por Varnhagem, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
Ao Instituto Histórico do Brasil
Senhores:
Sabeis como a presente obra de Gabriel Soares, talvez a mais admirável de quantas em português produziu o século quinhentista, prestou
valiosos auxílios aos escritos do padre Cazal e dos contemporâneos Southey, Martius e Denis, que dela fazem menção com elogios não equívocos.
Sabeis também como as Reflexões Criticas que sobre essa obra escrevi foram as primícias que ofereci às letras, por intermédio da Academia
das Ciências de Lisboa que se dignou, ao acolhê-las no corpo de suas memórias, contar-me nos do seu grêmio. Sabeis como aquela obra corria espúria,
pseudônima e corrompida no título e na data, quando as Reflexões Críticas lhe restituíram genuinidade de doutrina e legitimidade de autor e
de título, e lhe fixaram a verdadeira idade.
Sabereis, finalmente, como nada tenho poupado para restaurar a obra, que por si constitui um monumento levantado pelo colono Gabriel Soares à
civilização, colonização, letras e ciências do Brasil em 1587.
Essa restauração, dei-a por enquanto por acabada; e desde que o sr. Ferdinand Denis a inculcou ao público europeu, com expressões tão lisonjeiras
para um de vossos consócios, creio que devemos corresponder a elas provando nossos bons desejos, embora a realidade do trabalho não vá talvez
corresponder à expectativa do ilustre escritor francês quando disse: "Ce
beau livre... a été l'object d'une... (permiti-me, senhores, calar o epíteto com que me quis favorecer)...
dissertation de m.
Adolfo de Varnhagen. Le... écrivain que nous venons de
nommer a soumis les divers manuscrits de Gabriel Soares à un sérieux examen, il a vu même celui de Paris, et il est le seul qui puisse donner
aujourd'hui une édition correcte de cet admirable traité, si précieux pour l'empire du Brésil".
Sem me desvanecer com as expressões lisonjeiras que acabo de transcrever do benévolo e elegante escritor, não deixo de me reconhecer um tanto
habilitado a fazer-vos a proposta que hoje vos faço de imprimirdes o códice que vos ofereço.
Não há dúvida, senhores, que foi o desejo de ver o exemplar da Biblioteca de Paris o que mais me levou a essa capital do mundo literário em 1847.
Não há dúvida que, além deste códice, tive eu ocasião de examinar uns vinte mais. Vi três na Biblioteca
Eborense, mais três na Portuense e outros na das Necessidades em
Lisboa. Vi mais dois exemplares existentes em
Madrid; outro mais que pertenceu ao convento da congregação das Missões e três da Academia de Lisboa, um dos quais serviu para o prelo, outro se guarda
no seu arquivo, e o terceiro na livraria conventual de Jesus. Igualmente vi três cópias de menos valor que há no Rio de Janeiro (uma das quais
chegou a estar licenciada para a impressão); a avulsa da coleção de Pinheiro na Torre do Tombo, e uma que em
Neuwied me mostrou o velho príncipe Maximiliano, a quem na Bahia fora dada de presente. Em Inglaterra
deve seguramente existir, pelo menos, o códice que possuiu Southey; mas foram inúteis as buscas que aí fiz após ele, e no Museu Britânico nem sequer
encontrei notícia de algum exemplar.
Nenhum daqueles códices, porém, é, a meu ver, o original; e baldados foram todos meus esforços para descobrir este, seguindo as indicações de
Nicolau Antônio, de Barbosa, de Leon Pinelo e de seu adicionador Barcia. Na Biblioteca de Cristóvão de Moura, hoje existente em
Valência e pertencente ao Príncipe Pio, posso assegurar-vos que não existe ele, pois que, graças à bondosa
amizade deste cavalheiro, me foi permitido desenganar-me por meu próprio exame. A livraria do conde de Vila-Umbrosa guarda-se incomunicável na
ilha de Malhorca, e não há probabilidade de que quando nela se ache ainda o códice que menciona Barcia,
possa ele ser o original. A do conde de Vimieiro foi consumida pelas chamas, as quais pode muito bem ser que
devorassem os cadernos originais do punho do nosso colono.
Graças, porém, às muitas cópias que nos restam — a uma das de Évora, sobretudo —, creio poder dar no
exemplar que vos ofereço o monumento de Gabriel Soares tão correto quanto se poderia esperar sem o original, enquanto o trabalho de outros e a
discussão não o aperfeiçoem ainda mais, como terá de suceder.
Acerca do autor talvez que o tempo fará descobrir na Bahia mais notícias. Era filho de Portugal, passou à Bahia em 1570, fez-se senhor-de-engenho
e proprietário de roças e fazendas em um sítio entre o Jaguaribe e o Jequiriçá. Voltando à península, dirigiu-se a Madrid, onde estava no 1° de
março de 1587, em que ofertou seu livro a Cristóvão de Moura, por meio da seguinte carta: "Obrigado
de minha curiosidade fiz, por espaço de 17 anos que residi no Estado do Brasil, muitas lembranças por escrito do que me pareceu digno de notar, as
quais tirei a limpo nesta corte em este caderno, enquanto a dilação de meus requerimentos me deu para isso lugar; ao que me dispus entendendo convir
ao serviço de El-Rei Nosso Senhor, e compadecendo-me da pouca notícia que nestes reinos se tem das grandezas e estranhezas desta província, no que
anteparei algumas vezes, movido do conhecimento de mim mesmo, e entendendo que as obras que se escrevem têm mais valor que o da reputação dos
autores delas.
"Como minha tenção não foi escrever história que
deleitasse com estilo e boa linguagem, não espero tirar louvor desta escritura e breve relação (em que se contém o que pude alcançar da cosmografia
e descrição deste Estado), que a V. S. ofereço; e me fará mercê aceitá-la, como está merecendo a vontade com que a ofereço; passando pelos
desconcertos dela, pois a confiança disso me fez suave o trabalho e tempo que em a escrever gastei; de cuja substância se podem fazer muitas
lembranças a S. M. para que folgue de as ter deste seu Estado, a que V. S. faça dar a valia que lhe é devida; para que os moradores dele roguem a
Nosso Senhor guarde a mui ilustre pessoa de V. S. e lhe acrescente a vida por muitos anos. Em Madri o 1.° de março de 1587 - Gabriel Soares de
Sousa".
Para melhor inteligência das doutrinas do livro acompanho esta cópia dos comentos que vão no fim. Preferi este sistema ao das notas marginais
inferiores, que talvez seriam para o leitor de mais comodidade, porque não quis interromper com a minha mesquinha prosa essas páginas venerandas de
um escritor quinhentista. Abstive-me também da tarefa, aliás enfadonha, para o leitor, de acompanhar o texto com variantes que tenho por
não-legítimas.
Esta obra, doze anos depois, já existia em Portugal ou por cópia ou em original; e em 1599 a cita e copia Pedro de Mariz na segunda edição de seus
Diálogos. Mais tarde, copiou dela fr. Vicente de Salvador, e, por conseguinte, o seu confrade fr. Antônio Jaboatão. Simão de Vasconcelos
aproveitou do capítulo 40 da 1ª parte as suas Notícias 51 a 55, e do capítulo 70
a Notícia 66.
Assim, se vós o resolverdes, vai finalmente correr mundo, de um modo condigno, a obra de um escritor de nota. Apesar dos grandes dotes do autor,
que o escrito descobre, apesar de ser a obra tida em conta, como justificam as muitas cópias que dela se tiraram, mais de dois séculos correram sem
que houvesse quem se decidisse a imprimi-la na íntegra. As mesmas cópias por desgraça foram tão mal tiradas, que disso proveio que o nome do autor
ficasse esgarrado, o título se trocasse e até na data se cometessem enganos!
Pesa-nos ver nos tristes azares deste livro mais um desgraçado exemplo das injustiças ou antes das infelicidades humanas. Se esta obra se houvesse
impresso pouco depois de escrita, estaria hoje tão popular o nome de Soares como o de Barros. O nosso autor é singelo, quase primitivo no estilo,
mas era grande observador, e, ao ler o seu livro, vos custa a descobrir se ele, com estudos regulares, seria melhor geógrafo que historiador, melhor
botânico que corógrafo, melhor etnógrafo que zoólogo.
Em 1825 realizou a tarefa da primeira edição completa a Academia de Lisboa; mas o códice de que teve de valer-se foi infelizmente pouco fiel, e o
revisor não entendido na nomenclatura das coisas da nossa terra.
Ainda assim muito devemos a essa primeira edição; ela deu publicamente importância ao trabalho de Soares, e sem ela não teríamos tido ocasião de
fazer sobre a obra os estudos que hoje nos fornecem a edição que proponho a qual, mais que a mim, a deveis à corporação vossa co-irmã, a Academia
Real das Ciências de Lisboa.
Madri, 1.° de março de 1851.
F. A.
de
Varnhgen |