Trecho do Aditamento, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
Aditamento
Algumas notícias
biográficas acerca de Gabriel Soares de Sousa, tiradas da 2ª edição da
História Geral do Brasil,
do editor, visconde de Porto Seguro
Os primeiros cuidados de d. Francisco de Sousa, logo que
chegou à Bahia, foram os de dar cumprimento e execução às ordens recebidas, para que auxiliasse eficazmente a Gabriel Soares, nas sua projetada
expedição à atual província de Minas, subindo pelo Paraguaçu até as suas cabeceiras, e passando depois destas às vertentes do Rio de S. Francisco,
segundo um roteiro que, conforme dissemos, uns sete anos antes, recebera, deixado por seu irmão João Coelho de Sousa, o qual, depois de haver
percorrido os sertões durante três anos, e de haver neles descoberto metais preciosos, e, segundo parece, até já diamantes, ao falecer, quando
regressava de tais descobrimentos, nas cabeceiras do Rio Paraguaçu, lhe mandara entregar a sua derrota por um portador de confiança.
Era Gabriel Soares nascido em Portugal,
talvez na própria cidade de Lisboa, onde tinha duas irmãs. Em 1567, passava à Monomotapa [*],
acompanhando a Francisco Barreto, quando, arribando à Bahia, preferiu ficar nesta cidade, onde foi medrando; chegou a fazer-se até senhor de um
grande engenho de açúcar no Rio Jequiriçá.
Por morte de seu irmão João Coelho, de quem já tratamos,
herdeiro do seu itinerário do descobrimento de várias minas nos sertões, resolveu passar à Europa, a requerer concessões e privilégios; mas houve
tal dilação no despacho de seus requerimentos, que, tendo partido da Bahia em fins de agosto de 1584, só depois de meados de dezembro de 1590 foi
despachado. Nesse intervalo, talvez com objeto de recomendar-se, ofereceu, no 1º de março de 1587, a d. Cristóvão de Moura, estadista influente no
governo, o precioso escrito acerca do Brasil de que já demos notícia.
As concessões obtidas pelo mesmo Soares reduziram-se:
A uma carta régia ao governador do Brasil, a fim de que
fossem postos às suas ordens duzentos índios flecheiros; e a mais oito alvarás, todos da mesma data, dispondo:
Que o mesmo Gabriel Soares de Sousa, "capitão-mor e
governador da conquista e descobrimento do Rio de S. Francisco", teria o direito de nomear, por seu falecimento, um sucessor que gozaria dos
mesmos títulos e poder.
Em ter faculdade de prover todos os ofícios da justiça e da
fazenda no seu distrito.
Em lhe ser concedido, para quatro cunhados e dois primos, que
com ele iriam, o hábito de Cristo, com 50 rs., e no fim da jornada, o foro de fidalgo e moradia para os mesmos; e mais dois hábitos para os capitães
que o acompanhassem.
Em poder conceder o foro de cavaleiros fidalgos até cem
pessoas dos seu séqüito.
Em poder fazer promessas de mais recompensas aos que se
distinguissem.
Em lhe ser facultado o tirar das prisões, para levar consigo,
os condenados a degredo que escolhesse, sendo de ofícios mecânicos, mineiros etc.
Em ser a estes contado, como tempo do degredo, o da
expedição.
Finalmente, em ficar autorizado, se quisesse, a prosseguir os
descobrimentos ainda mais além do Rio de S. Francisco; e por conseguinte até dos próprios terrenos das atuais províncias de Goiás e Mato Grosso, se
lá chegasse.
Os alvarás, mandados passar por Estevão da Gama, foram
escritos por João da Gama, ambos mui provavelmente ainda aparentados com o famoso descobridor da Índia, Vasco da Gama. Depois de chegar a Lisboa,
para se embarcar, obteve o mesmo Soares mais duas graças, em 27 de janeiro imediato; a saber, uma ordem para nesse porto se lhe dar embarcação, e
mantimento ordinário, às pessoas que com ele iam, e outra para o governador do Brasil lhe dar cinqüenta quintais de algodão em caroço, do que
houvesse pertencente à Fazenda, a fim de se fazerem armas, para os que o deviam acompanhar à nova conquista.
Auxiliado com tantos favores, partiu afinal de Lisboa, o novo
"capitão-mor e governador" Gabriel Soares de Sousa, na urca flamenga denominada Grifo-Dourado, em 7 de abril de 1591, conduzindo consigo uns
trezentos e sessenta homens, incluindo quatro religiosos carmelitas, um dos quais, fr. Hieronymo de Canavezes, veio a ser depois provincial.
O projeto de Soares era chegar às cabeceiras do Rio de S.
Francisco, onde se deviam encontrar as minas, de que nos lugares de que levava nota pelo roteiro de seu irmão, dava conta o mesmo roteiro; e cuja
existência veio a se confirmar no seguinte século; pois essas minas se achavam evidentemente no distrito da província, que, pelas que depois nela se
descobriram, se ficou chamando de Minas, como sabemos.
Infelizmente, o seu completo descobrimento e exploração, e
por conseguinte o princípio da colonização nesse distrito, ainda então teve de ficar aprazado, em virtude dos sucessivos malogros que acompanharam a
dita expedição de Gabriel Soares, incluindo a sua própria morte, sucedida proximamente na paragem onde tivera lugar a de seu irmão, e a de um índio
por nome Aracy (o sol) que lhe servia de guia.
O princípio do malogro da expedição procedeu de haver, em
meados de junho, naufragado a urca onde vinham todos, em Vazabarris; onde, graças à recente colonização por Cristóvão de Barros, não caíram vítimas
dos índios.
Salvando-se a maior parte da tripulação, passou o mesmo
Soares à Bahia, onde, refeito com os auxílios que lhe deu d. Francisco d Sousa, empreendeu a expedição, indo primeiro às suas terras, onde acabou de
prover-se de carne e farinhas, e logo varou até meter-se no conhecido Boqueirão, por onde forçosamente devia entrar para seguir caminho, subindo com
o Rio Paraguaçu pela margem direita.
Seguiu sempre subindo até o arraial, mais ou menos encostado
à margem direita do mesmo rio até uma paragem, em que, com parte da gente que levava, deixou assentado um arraial; porventura o próprio chamado de
João Amaro; pois tinha ordem de ir deixando no caminho pequenas povoações ou arraiais fortificados de 50 em 50 léguas, proximamente.
No caminho até esse arraial, lhe adoeceram muitos homens
de sezões, e perdeu muitos animais mordidos dos morcegos; pragas estas que deviam ser mui nocivas, quando os sertanejos tiveram mais tarde que
abandonar este caminho, cortando do Boqueirão ao arraial de João Amaro pela chamada Travessia, terreno sem pastos e quase sem água.
Desse primeiro arraial, prosseguiram, sempre pela margem
direita do Paraguaçu acima, não sem grandes trabalhos para evitar ciladas dos gentios, a abrir picadas, e juntar os animais, que se extraviavam, e
às vezes de todo se perdiam, já mordidos das cobras, já comidos pelos tigres; e finalmente pelos obstáculos oferecidos pelo próprio rio, que
ladeavam; o qual, com suas súbitas cheias, deixava muitas vezes os expedicionários ilhados, e na necessidade de esperarem que as águas baixassem.
Por fim, chegaram às primeiras grandes vertentes que vêm do
SO; e tomaram por uma delas, começando a subida da serra, não longe, ao parecer, da atual povoação de Santa Isabel do Paraguaçu. Para transpor a
dita serra, gastaram alguns dias, cobertos de nevoeiros, com bastante frio, não havendo por aí lenha para se aquecerem, nem pasto para os animais,
que já estavam mui dizimados, de nada lhe servindo muito salitre que tinham à vista.
Aqui começaram todos a esmorecer; e como perfaziam já
cinqüenta léguas desde o arraial anterior, decidiu-se Gabriel Soares a fundar o segundo; mas logo, cansado dos trabalhos, adoeceu, e faleceu pouco
depois.
Substituiu-o imediatamente no mando o mestre-de-campo Julião
da Costa; o qual, vendo-se privado do guia índio Aracy, porventura esmoreceu. Retirou-se com todos os da expedição para uma paragem mais sadia, e
daí escreveu ao governador, narrando-lhe o sucedido, e pedindo-lhe novas ordens.
Resolveu então este mandar regressar toda expedição, e
apoderando-se de todos os roteiros, premeditou já então vir a recolher dela os frutos, como particular, apenas largasse o governo. É o que
devemos concluir, em vista do que depois praticou, vindo a requerer e obter os mesmos privilégios e concessões outorgados a Soares, e ainda outros
mais.
O grande interesse que nos merece Gabriel Soares, como chefe
dessa expedição, embora malograda, e ainda mais como um dos primeiros escritores acerca do Brasil em todos os ramos, e com especialidade das
notícias etnográficas dos índios, nos induzem a incluir aqui as cláusulas principais do seu testamento, que deixou na Bahia, feito em 10 de agosto
de 1584, antes de embarcar-se para Europa, a requerer.
Depois do cabeçalho, e de mais seis itens, encomendando-se à
Virgem e a vários santos, prossegue:
"Donde quer que eu
falecer, me enterrarão no hábito de S. Bento, havendo mosteiro de sua ordem, onde me enterrarão; e não havendo maneira deste hábito, e havendo
mosteiro de S. Francisco, me enterrarão no seu hábito, e os religiosos de ambas estas ordens me acompanharão, e a cada um darão de esmola cinco mil
réis e pelo hábito dez cruzados.
"Se Deus for servido, que eu faleça nesta
cidade e capitania, meu corpo será enterrado em S. Bento da dita cidade, na capela-mor, onde se me porá uma campa com um letreiro que diga AQUI JAZ
UM PECADOR, o qual estará no meio de um escudo que se lavrará na dita campa; e sendo Deus servido de me levar no mar ou em Espanha, todavia se porá
na dita capela-mor a dita campa com o dito letreiro em a qual sepultura se enterrará minha mulher Anna de Argollo.
"Acompanhará o meu corpo se falecer nesta
cidade, o cabido, a quem se dará a esmola costumada, e os padres de S. Bento levarão de oferta um porco e seis almudes de vinho e cinco cruzados.
"Acompanhar-me-ão dois pobres, cada um
com sua tocha ou círios nas mãos, e darão de aluguel à confraria, donde forem, um cruzado de cada uma, e a cada pobre pelas levarem dois tostões.
"Não dobrarão sinos por mim, e somente se
farão os sinais que se fazem por um pobre quando morre.
"Deixo à casa da santa misericórdia desta
cidade quarenta mil réis de esmola, para se dourar o retábulo, e para missas (?) cinco mil réis.
"Deixo à confraria do SS. Sacramento
cinco mil réis e à de Nossa Senhora do Rosário dois mil réis.
"Far-me-ão no mosteiro de S. Bento, quer
faleça nesta capitania, quer em outra parte, três ofícios de nove lições, em três dias a fio; tanto que eu falecer, ou se souber a certeza de minha
morte, em cada ofício se dará de oferta um porco e cinco alqueires de farinha, e não me farão pompa nenhuma, somente me porão um pano preto no chão,
com dois bancos cobertos de preto, e em cada um cinco velas acesas.
"Em cada ofício destes me dirão cinco
missas rezadas, à hora das cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, com seus responsos sobre a sepultura.
"Nos outros dias seguintes, me dirão em
três dias a fios cada dia cinco missas rezadas; as primeiras cinco à honra dos gozos de Nossa Senhora, e a outro dia as outras cinco à honra dos
cinco mistérios gloriosos da Madre de Deus, conforme a contemplação do Rosário, e no outro dia as outras cinco à honra dos cinco passos dolorosos da
Madre de Deus.
"Me dirão na mesma casa, acabados os
ofícios atrás cento e cinqüenta missas rezadas e quinze cantadas, e as cantadas darão de oferta a cada uma sua galinha e canada de vinho, e umas e
outras saíram com seu responso sobre a minha sepultura, e as missas se repartirão pela maneira seguinte:
"Nos primeiros cinco dias se dirão, em
cada dia, dez missas rezadas e uma cantada, como acima fica dito, à honra dos prazeres que se contemplam no rosário de Nossa Senhora.
"Nos outros cinco dias logo seguintes, se
dirão em cada dia outras dez missas rezadas e uma cantada, à honra dos cinco mistérios dolorosos da Virgem Nossa Senhora.
"Nos outros cinco dias seguintes, se
dirão em cada dia outras dez missas rezadas e uma cantada à honra dos cinco mistérios gloriosos da Virgem Madre de Deus. E se não houver padres no
dito mosteiro, que bastem para dizerem estas missas juntas, humildemente peço ao padre abade que ordene com os padres do colégio ou da Sé, com que
se possam dizer estas missas, como tenho declarado, porque tenho confiança na Madre de Deus que, ao cabo destas missas, sairá minha alma do
purgatório.
"Como se acabar de dizer estas missas,
como tenho declarado, ao outro dia seguinte se me diga um ofício de nove lições, como os que acima tenho declarado.
"Mando que se digam pela alma de meu pai
e mãe cinqüenta missas rezadas, as quais se dirão como se acabarem as que acima tenho declarado.
"Mando que se tomará de minha fazenda a
valia de quinhentos cruzados, que se repartirão por cinco moças pobres, cem cruzados por cada uma para ajuda de seus casamentos, o que repartirá o
padre abade, com informação do provedor da santa misericórdia.
"Eu tenho duas irmãs viúvas; uma se chama
d. Margarida de Sousa e outra Maria Velha, ambas moradoras em Lisboa, e não tenho herdeiro forçado, e darão a uma delas de minha fazenda, do
rendimento dela vinte mil réis a cada uma; e falecendo alguma delas ou sendo já falecida, darão à que ficou viva, cada ano, quarenta mil réis em sua
vida tão somente, os quais lhe mandarão por letra a Lisboa, de maneira que lhe seja paga a dita quantia.
"Declaro que tenho um livro de contas que
tenho com as pessoas a quem devo, pelo qual se fará conta com as pessoas a quem estou em obrigação, ao pé de cujo título fica assinado por mim, ao
qual livro se dará inteiro crédito, porque, pelas declarações dele, deixo desencarregada minha consciência.
"Neste mesmo livro de minha razão tenho
escrito o que tenho de meu, assim de fazenda de raiz, como escravos, bois de carros e éguas, e outros móveis, índios forros; e nele tenho em
lembrança os encargos em que estou, assim às pessoas que me servem e servirão, como a outras pessoas, ao qual se dará outrossim inteiro crédito; por
que o fiz só a fim de concertar minha consciência; o que não posso tratar nem esmiuçar neste testamento pelas mudanças que o tempo faz, e eu não
saber qual há de ser a derradeira hora que meu Senhor há de chamar-me, para a qual não achei melhor remédio que este.
"Depois do meu falecimento se ordenará o
inventário de minha fazenda, e se fará conta do que devo, e se porá em ordem de se pagarem as minhas dívidas, para o que se venderão os móveis de
casa, bois e éguas, e açúcar que se achar; e para o que restar se concertarão meus testamenteiros com os credores, para se pagarem pelos rendimentos
de minha fazenda; se disso forem contentes, o que se há de negociar, de maneira que a minha alma não pene na outra vida; por isso, e não querendo
eles esperar, em tal caso se arrendará o engenho de antemão ou se venderão as novidades dele; e quando isto não bastar, se venderão as terras que
tenho no Jequiriçá, que com as águas e fazendas valem muito, por serem muitas e boas: em tudo farão meus testamenteiros, de maneira que eu fique
desencarregado.
"Declaro por meus testamenteiros ao rev.
padre fr. Antonio Ventura e à minha mulher Anna de Argollo, para que ambos façam cumprir este meu testamento como nele se contém; e sendo caso que
ela, ou por não poder estar presente na cidade, ou por suas indisposições não possa acudir a fazer cumprir este meu testamento, que tudo o feito
pelo rev. padre somente fica valioso. E porque o tempo faz grandes mudanças, que com elas há viver e morrer, e ausentar, não podendo por algum
lícito impedimento cumprir o rev. padre este meu testamento, digo que em tal caso seja meu testamenteiro o rev. padre que lhe suceder no cargo de
abade do dito mosteiro de São Bento; mas ainda que o rev. padre fr. Antonio Ventura não seja abade, sempre quero que ele seja meu testamenteiro.
"Como Nosso Senhor não foi servido que eu
tivesse filhos de minha mulher, nem outros alguns, nem sobrinhos, filhos de meus irmãos, nem herdeiros forçados a quem pertença minha fazenda, e
porque não herdei de meus pais, nem de meus avós, e adquiri por minha indústria e trabalho, e porventura alguns encargos de consciência que ora não
sei declarar, digo e declaro por meu herdeiro de toda minha fazenda ao mosteiro de S. Bento da cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, com
condição que eu e minha mulher Anna de Argollo nos enterremos ambos na dita capela-mor, que ora é e falecendo antes que se faça a capela-mor da
igreja nova, passarão a nossa ossada à dita capela-mor da igreja nova, onde estará a minha sepultura, com a campa no meio da capela, com o letreiro
[1] que atrás fica declarado.
"Serão obrigados o abade e religiosos que
ora são, e ao diante forem, me dizerem cada dia uma missa rezada por minha alma, para enquanto o mundo durar, com seu responso sobre a sepultura; e
cada ano, pela semana dos Santos, um ofício de nove lições.
"E sendo caso que Deus se sirva de me
levar para si no mar ou em Espanha, donde meus ossos não podem ser trazidos a este mosteiro, digo que, sem embargo disso, se me ponha esta sepultura
na capela-mor, dele, para lembrança de se me dizer o responso sobre ela e para se enterrar minha mulher tão somente.
"Declaro que os chãos, que tenho nesta
cidade, que houve de Antonio de Affonceca, de Anna de Paiva, de Pedro Fernandes e de Braz Affonso, e a terra que tenho valada no caminho da Vila
Velha, da banda do mar e da outra banda que que foi de Antonio de Oliveira, queria que ficasse tudo a meu quinhão, por tudo ser mui necessário para
o mosteiro, onde podem fazer muitas terecenas [**]
ao longo do mar para alugar, e pelo caminho acima muitos foros de casas, e muitas casas ao longo da estrada, que tudo pelo tempo adiante,
virão a render muito para o convento.
"E
porque hei este testamento por acabado, pelo qual dou por revogado todos os que tenho feito antes deste, e este só quero que valha, porque esta é a
minha derradeira vontade, o qual fiz por minha mão e assinado por mim - Gabriel Soares de Sousa"
[2].
Como produção literária, a obra de Soares é
seguramente o escrito mais produto do próprio exame, observação e pensar, e até diremos mais enciclopédico da literatura portuguesa nesse período.
Nos assuntos de que trata, apenas fora precedido uns dez anos pela obra
[3] e muito
mais lacônica, mas que lhe serviu de estímulo, do gramático Pero de Magalhães de Gandavo, autor que publicou o primeiro
livro em português acerca do Brasil, e que ainda mais estimamos, por haver sido amigo de Camões, e por haver, por assim dizer, posto em contato
com o nosso país o grande poeta, quando este escreveu em verso a epístola oferecendo-a a d. Leoniz Pereira, antigo governador de Málaca:
"A breve história sua que ilustrasse
A terra Santa Cruz pouco sabida"
[4].
Nos Lusíadas, apenas Camões se
lembrou do Brasil escrevendo uma vez este nome, e outra o de Santa Cruz
[5]; nunca o
de América.
Seja embora rude, primitivo e pouco castigado o estilo de
Soares, confessamos que ainda hoje nos encanta o seu modo de dizer; e ao comparar as descrições com a realidade, quase nos abismamos ante a profunda
observação que não cansava, nem se distraía variando de assunto.
Como corógrafo, o mesmo é seguir o roteiro de Soares, que o
de Pimentel ou de Roussin; em topografia, ninguém melhor do que ele se ocupou da Bahia; como fitólogo faltam-lhe naturalmente os princípios da
ciência botânica; mas Dioscorides ou Plinio não explicam melhor as plantas do velho mundo, que Soares as do novo, que desejava fazer conhecidas. A
obra contemporânea que o jesuíta José de Acosta publicou em Sevilha em 1590, com o título de Historia
Natural e Moral das Indias, e que tanta celebridade chegou a adquirir, bem que pela forma e assuntos se possa comparar à de Soares, é-lhe muito
inferior quanto à originalidade e cópia de doutrina.
O mesmo dizemos das de Francisco Lopez de Gomara, e de
Gonçalo Fernandez de Oviedo. O grande Azara, com o talento natural que todos lhe reconhecem, não tratou instintivamente, no fim do século passado
(N.E.: século XIX), da zoologia austro-americana melhor que o seu
predecessor português; e numa etnografia geral dos povos bárbaros, nenhumas páginas poderão ter mais cabida pelo que respeita ao Brasil, que as que
nos legou o senhor de engenho das vizinhanças do Jequiriçá.
Causa pasmo como a atenção de um só homem
pôde ocupar-se em tantas coisas "que juntas se vêm raramente - como as que se contêm na sua obra, que trata
a um tempo, em relação ao Brasil, de geografia, de história, de topografia, de hidrografia, de agricultura entretrópica, de horticultura brasileira,
de matéria médica indígena, das madeiras de construção e de marcenaria, da zoologia em todos os seus ramos, de economia administrativa e até de
mineralogia!"[6].
Pouco depois de haver o Brasil passado ao domínio do rei de
Espanha, avisava profeticamente ao governo da metrópole o dito Gabriel Soares:
"Vivem
os moradores tão atemorizados, que estão sempre com o fato entrouxado para se recolherem para o mato, como fazem com a vista de qualquer nau grande;
temendo serem corsários; à cuja afronta S. M. deve mandar acudir com muita brevidade; pois há perigo na tardança, o que não convém que haja; porque,
se os estrangeiros se apoderarem desta terra, custará muito lançá-los fora dela, pelo grande aparelho que têm para nela se fortificarem; com o que
se inquietará toda a Espanha, e custará a vida de muitos capitães e soldados, e muitos milhões de ouro em armadas, e no aparelho delas, ao que agora
se pode atalhar, acudindo-lhe com presteza devida".
[1]
Acha-se com efeito na capela-mor uma campa com a inscrição.
[2]
A aprovação deste testamento foi feita em 21 de agosto de 1584, e a abertura em 10 de julho de 1592.
[3]
Historia da provincia Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil: feita por Pero de Magalhães de Gandavo:
etc., ano 1576. Acha-se reimpressa no tomo 21 da Rev. do Inst.
[4]
Camões; Ded. da obra de Gandavo.
[5]
"De Santa Cruz o nome lhe poreis".
Camões X, 140. Veja também II, 45; V. 4, VII, 14; X, 63 e 139.
[6]
A primeira edição começou-se na tipografia do Arco do Cego in-fol; mas não se concluiu, nem se
expôs ao público; realizou-se a publicação pela primeira vez nas Memorias da Academia de Lisboa em 1825, no tomo III das de Ultramar: os
primeiros 29 capítulos se deram de novo à luz pelo MS. da Bib. R. de Paris, jornal O Patriota Brasileiro, Paris, 1830, porém a edição mais
correta é a do Rio de Janeiro em 1851, com os comentários que lhe juntou o autor da presente história (N.E.:
isto é, Francisco Adolpho de Varnhagen, o visconde de Porto Seguro, nascido em 17 de fevereiro de 1816 e falecido em 26 de junho de 1878),
quando primeiro secretário do instituto. Soares partiu para a Europa em 1584 (Carta de Cristóvão de Barros de 1584), depois de haver feito
testamento na Bahia em 10 de agosto deste ano, aprovado em 21 dº. [N.E.: in-fol = in folio, formato de corte
de papel; dº. = dezembro]
[*]
N.E.: "O Império Monomotapa (também grafado Mwenemutapa, Muenemutapa, ou ainda
Monomatapa, que era o título do seu chefe) foi um império que floresceu entre os séculos XV e XVIII na região Sul do Rio Zambeze, entre o
planalto do Zimbabwe e o Oceano Índico, com extensões provavelmente até ao Rio Limpopo. O território desse império corresponde ao território dos
atuais Moçambique e Zimbábue."
- Wikipedia, consulta em 28 de novembro de 2010.
[**]
N.E.: teracenas ou taracenas, e na forma moderna tarcenas,
são armazéns para guardar apetrechos navais. Da palavra terecena derivaram via italiano as palavras dársena e arsenal. |