A Justiça Pública - Autora!
- A Justiça Pública - autora!
Afastando o reposteiro verde, o servente do Fórum repetiu as palavras do escrivão para dentro da sala de espera. O escrivão continuou:
- Réu preso: José Praxedes Lloyd!
A cabeça do servente apareceu de novo dentre o reposteiro, na sala onde estavam os pronunciados: réu preso: José Praxedes Lloyd!
Escoltado por dois soldados de farda cáqui, com espadagões em rabo de galo, Praxedes entrou na sala das sessões, contornou a grade do recinto dos jurados, entrou pela passagem estreita e sentou-se
na cadeira dos réus.
O juiz criminal gritou logo: levante-se!
Praxedes levou um susto e ficou de pé. Os sete jurados sorteados, resignados com a tarde perdida, olhavam-no com displicência. Um deles se debruçou sobre o vizinho e disse: este é o tal do artigo
267.
Começou o interrogatório:
- Como se chama?
- José Praxedes Lloyd.
- Onde nasceu?
- No morro do Fontana.
O juiz esclareceu ao escrivão: em Santos. Um jurado cutucou o vizinho: primeiro réu que não é cabeça chata, hoje!
- Quantos anos tem?
- Uns vinte e três.
- Sabe por que está sendo processado?
- Por causo da Graciema.
Houve trocas de sorrisos entre os senhores do conselho de sentença, o juiz pigarreou, o escrivão parou de escrever.
- Onde estava quando se deu o crime?
Praxedes se lembrou do conselho do advogado: não diga senão a verdade, moço! Não tenha medo de contar a coisa tal como foi - só assim não a contará de duas maneiras diferentes.
O juiz insistia, queria saber a verdade:
- Onde estava, quando se deu o crime?
Era preciso contar a coisa, tal como foi:
- Estava em cima da Graciema.
O juiz tocou a campainha para fazer cessar os risos.
- O sr. está brincando com a Justiça Pública?
- Eu...
- Meritíssimo juiz - aparteou o advogado da defesa - peço a V. Excia. relevar as palavras do meu constituinte, homem ingênuo mas bem intencionado, bronco mas verdadeiro, em cujas expressões cruas
não há o menor desacato à respeitabilidade deste recinto, ou às pessoas de V. Excia. e dos srs. juizes de fato, porém tão somente a maneira rude e direta de contar as coisas, maneira comum nos homens do cais, pois ninguém ignora que o réu José
Praxedes Lloyd é um estivador, incapaz de saber ocultar, como os literatos, "a nudez forte da verdade sob o manto diáfano da fantasia".
Os jurados aprovaram, num aceno de cabeça, as palavras do dr. Casimiro, tido e havido como o melhor advogado criminal da cidade.
O juiz continuou:
- Conhece as testemunhas, tem alguma coisa contra elas?
- Conheço, é tudo gente mentirosa.
O juiz soprou ao escrivão: conhece e não tem.
- Tem alguma queixa contra o dr. promotor?
- É a premera veis que vejo esta cara.
Tlim-tlim-tlim, com energia, por causa dos risos.
- Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?
- O dotô ali exprica tudo - e apontou com o beiço para a tribuna onde estava o dr. Casimiro, advogado ad-hoc de José Praxedes Lloyd, processo 15.825, artigo do Código Penal 267.
Praxedes sentou-se, mas levantou-se logo em seguida.
O juiz foi condescendente: agora pode ficar mesmo sentado!
- Eu levantei pro causo do chapéo!
Tirou da cadeira o feltro amarrotado, desamassou-o, sentou-se de novo.
- Tem a palavra o sr. representante do Ministério Público.
O promotor iniciou a acusação. Praxedes ficou estarrecido: aquele mocinho de bigodinho preto falava as coisas como se tivesse espiado tudo! Uma ou outra vez, errava um detalhe ou lhe atribuía
pensamentos que nunca tivera, mas o caso mesmo, como se passara tudo, estava ali contadinho, desde as palavras que dissera à Graciema até as respostas que ela lhe dera; desde o primeiro encontro no bar Estrela Azul, até os encontros posteriores no
quartinho da Rua Dr. Cockrane.
Vinha toda a história à boca daquele doutor que o acusava com a cara brava, apontando-o de vez em quando com o dedo duro. Sim senhor! O dr. promotor sabia mais da vida alheia que a própria Maria dos
Anjos, afamada pela língua de palmo e meio em todo o bairro do Macuco!
Fora assim mesmo:
Havia quase um ano que conhecera a Graciema, no bar que fica logo no princípio da Rua Guerra - o Blue Star Bar, com uma estrela azul no luminoso. Ele estava jogando
dominó com o Argamódio, o Florêncio e o Romualdo.
Graciema entrou e pediu: seu Antonio, me dá uma cerveja Cascatinha, gelada.
Um marinheiro que bebia um morrão, ao lado, gracejou: vai beber toda a garrafa sozinha? não me convida, moça?
Graciema fez um muxoxo de zanga e virou-lhe as costas. O marinheiro já estava no porre e insistiu: que orgúio, belezinha! Aproximou-se mais, com o cálice na mão, cambaleante: tá
emprenhando algum rei, tá?
Ela não se conteve e esbofeteou o malcriado. O marinheiro fez um gesto de reação, fechou o punho, mas Praxedes jogou as pedras do dominó na mesa, levantou-se: eu sustento a tabefe da moça, seu!
Segurou o marujo pela gola da camisa: peça descurpa p'ra moça, vamo!
Assustado, o bêbado obedeceu - descurpe, dona.
Praxedes o levou até a porta, pela gola, e o soltou junto ao meio-fio. Graciema já vinha saindo, com a garrafa de cerveja, e disse: obrigada, moço; o sr. foi muito bom.
Praxedes foi com ela - aquele bruto podia voltar e incomodá-la na rua.
Atravessaram juntos a linha da Sorocabana, foram caminhando até a Rua Padre Anchieta, onde ela morava.
Quando se separaram, estava marcado um novo encontro para o dia seguinte, às 5 horas e quinze minutos. Quinze minutos era o tempo do Praxedes lavar o rosto e as mãos, depois do serviço, e fazer o
percurso do cais à Rua Anchieta.
O namoro seguiu, recatado, várias noites e várias tardes de domingo.
Graciema morava com o pai, carroceiro da União de Transportes, e com um irmão, molecote de recados na rampa do Mercado.
Praxedes tinha o curso completo de conquistas baratas. Já estivera até no Rio de Janeiro e aprendera muita coisa com as garçonetes dos botequins do Mangue. Mas lidar com moça séria assim, era
difícil: se lhe pegava a mão, ela tirava logo, se Praxedes, à noite, no portão, começava a se encostar muito, ela entrava em casa e não aparecia mais. Afinal, um dia, Graciema falou, muito vermelha, que o pai não queria mais o namoro, um namoro que
caminhava tão devagar.
- Também acho! - concordou Praxedes - que vai devagar, vai mesmo!
Pois então! Se o estivador tivesse intenções sérias, dissesse logo; senão não a procurasse mais.
Praxedes lá queria saber de casamento! Não via o exemplo dos colegas? Casavam, iam morar num quartinho de 40$000, depois vinham os filhos: um, dois, quatro. Passavam a morar num quartinho de 30$000,
ainda menor, ainda mais escuro, e não havia dinheiro para nada: as crianças sempre doentes, a mulher num instante estragada de tanto serviço e de tanto filho, rabugenta, reclamando roupa, tamancos, sabão, comida menos má, uma porção de coisas!
E o coitado do marido suando nos armazéns do cais, bufando no porão dos transatlânticos, para, no fim do mês, ver que o dinheiro ainda não bastava para o quartinho miserável e para a conta da venda.
Não era esta a vida do Pedro Espanhol, do Florêncio, do preto Benedicto Onofre Scipião de Paula?
Casar p'ra quê? Praxedes não era besta!
Graciema esperava, olhos fitos nos seus: eu gosto de você, Praxedes Lloyd; você não gosta de mim?
Bolas! Mulher é bicho interesseiro: sempre à cata de trouxa que a sustente para o resto da vida. E fazendo micagens, dizendo coisinhas: Praxedes, eu gosto de você!
Ele porém não era destes, não ia atrás de conversa de amor, muito bem começada sempre: benzinho p'ra lá e benzinho p'ra cá, mas terminando em pouco tempo em choro de mulher e choro de
criança: dinheiro p'ro leite, homem! dinheiro p'ra casa, homem! dinheiro p'ro padeiro, p'ro vendeiro, p'ro açougueiro! E as crianças berrando e sujando a casa toda. José Praxedes Lloyd não era bobo! Ele sabia
viver!
Mulher, p'ra ele, só interessava na cama. Gostava de Graciema assim: deitada de costas num leito macio, ou mesmo na sacaria de um armazém do porto.
Queria a Graciema como um homem forte pode querer uma mulher bonita: gostava do seu corpo moço, que ninguém tivera ainda; daqueles seios escondidos no vestido, e dos quais ele não vira ainda nem
mesmo o começo do sulcozinho que os separava. Gostava das suas pernas morenas, finas nos tornozelos, sem músculos em relevos excessivos nas panturrilhas. E dos seus braços, nem gordos nem magros, dos seus olhos escuros, da boca desbotada mas
polpuda.
Gostava, sobretudo, de tudo quanto não via, apenas adivinhando no corpo dela. Imaginava-a nua: deve ser assim... assim... que bom se fosse assim! E imaginava naquela carne volúpias inéditas, que
nenhuma das mulheres da Rua Visconde do Rio Branco ou da Rua João Octavio, gastas pelo uso intenso, podia oferecer.
Quem anda namorando moça-donzela é como quem caça no mato. Caçada de nhambu, por exemplo. A gente anda léguas, o dia inteiro, à procura e à espreita, piando e atraindo a caça. E quando ela chega,
acudindo ao pio, ao alcance do tiro, é pum! matar logo, sem piedade, porque para isto foi feita a caça e a mulher.
Graciema esperava uma resposta: então você não gosta de mim?
A gente pia nhambu e pia mulher. Os dois acabam morrendo às mãos do caçador.
José Praxedes Lloyd pia para mulher; gosto sim, Graciema! Então você não tá vendo?
- Custou tanto a falar!
O nhambu respondia ao pio, desconfiado. Era preciso piar melhor: você não sabe como este coração sacoleja aqui dentro, Graciema, por causo de você!
O nhambu vinha chegando, devagar: verdade mesmo, Praxedes?
O pio está bom, é só continuar: juro, Graciema!
Pensou que ela ainda reagisse, e por isto a segurou fortemente, procurando-lhe a boca, que veio por si mesma juntar-se à sua. José Praxedes estalou os lábios num muxoxo forte, porque sempre
aprendera que beijo faz barulho.
Aquilo é que era pio! O nhambu já não escapava mais!
Mas tinha que ir devagar: Graciema ficou zangada, chamou-o de bruto. Que tirasse as mãos de cima dela, tivesse modos... Até lhe ficara a doer, um seio, com aquela história de apalpação.
E de cima da escadinha de cimento, fugindo para dentro de casa, repreendeu: não pode esperar mais um pouco, seu buliçoso?
Praxedes foi até o Bar Estrela Azul beber um trago, e lá para tantas, depois de quatro partidas de dominó, o Agenor falou numa caçada no Jurubatuba, em que matara
três macucos, cinco saripocas, dois nhambus... E não contou mais porque Praxedes o interrompeu, com a voz difícil: em caçada deste bicho... não fale na minha frente... que eu sô o rei... dos caçadô de nhambu. Caço eles até... com
bêjos!
E emborcou o copo. Florêncio, por trás dele, mostrou aos outros os cinco dedos abertos da mão esquerda, apontando o copo seguro na direita.
Era mentira: José Praxedes só bebera quatro. Mas assim mesmo precisou de dormir num banco de pau no botequim que o luminoso anunciava ao longe: Blue Star Bar - Blue Star Bar - acendendo e apagando,
a noite inteira.
No início do século XX, o cais santista, já com acostamento em amurada, mas tendo operação de carga integralmente manual, e ainda o uso de
carroças para o transporte urbano
Imagem: acervo do professor e pesquisador santista Francisco Carballa |