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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (03)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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A Justiça Pública - Autora!

- A Justiça Pública - autora!

Afastando o reposteiro verde, o servente do Fórum repetiu as palavras do escrivão para dentro da sala de espera. O escrivão continuou:

- Réu preso: José Praxedes Lloyd!

A cabeça do servente apareceu de novo dentre o reposteiro, na sala onde estavam os pronunciados: réu preso: José Praxedes Lloyd!

Escoltado por dois soldados de farda cáqui, com espadagões em rabo de galo, Praxedes entrou na sala das sessões, contornou a grade do recinto dos jurados, entrou pela passagem estreita e sentou-se na cadeira dos réus.

O juiz criminal gritou logo: levante-se!

Praxedes levou um susto e ficou de pé. Os sete jurados sorteados, resignados com a tarde perdida, olhavam-no com displicência. Um deles se debruçou sobre o vizinho e disse: este é o tal do artigo 267.

Começou o interrogatório:

- Como se chama?

- José Praxedes Lloyd.

- Onde nasceu?

- No morro do Fontana.

O juiz esclareceu ao escrivão: em Santos. Um jurado cutucou o vizinho: primeiro réu que não é cabeça chata, hoje!

- Quantos anos tem?

- Uns vinte e três.

- Sabe por que está sendo processado?

- Por causo da Graciema.

Houve trocas de sorrisos entre os senhores do conselho de sentença, o juiz pigarreou, o escrivão parou de escrever.

- Onde estava quando se deu o crime?

Praxedes se lembrou do conselho do advogado: não diga senão a verdade, moço! Não tenha medo de contar a coisa tal como foi - só assim não a contará de duas maneiras diferentes.

O juiz insistia, queria saber a verdade:

- Onde estava, quando se deu o crime?

Era preciso contar a coisa, tal como foi:

- Estava em cima da Graciema.

O juiz tocou a campainha para fazer cessar os risos.

- O sr. está brincando com a Justiça Pública?

- Eu...

- Meritíssimo juiz - aparteou o advogado da defesa - peço a V. Excia. relevar as palavras do meu constituinte, homem ingênuo mas bem intencionado, bronco mas verdadeiro, em cujas expressões cruas não há o menor desacato à respeitabilidade deste recinto, ou às pessoas de V. Excia. e dos srs. juizes de fato, porém tão somente a maneira rude e direta de contar as coisas, maneira comum nos homens do cais, pois ninguém ignora que o réu José Praxedes Lloyd é um estivador, incapaz de saber ocultar, como os literatos, "a nudez forte da verdade sob o manto diáfano da fantasia".

Os jurados aprovaram, num aceno de cabeça, as palavras do dr. Casimiro, tido e havido como o melhor advogado criminal da cidade.

O juiz continuou:

- Conhece as testemunhas, tem alguma coisa contra elas?

- Conheço, é tudo gente mentirosa.

O juiz soprou ao escrivão: conhece e não tem.

- Tem alguma queixa contra o dr. promotor?

- É a premera veis que vejo esta cara.

Tlim-tlim-tlim, com energia, por causa dos risos.

- Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?

- O dotô ali exprica tudo - e apontou com o beiço para a tribuna onde estava o dr. Casimiro, advogado ad-hoc de José Praxedes Lloyd, processo 15.825, artigo do Código Penal 267.

Praxedes sentou-se, mas levantou-se logo em seguida.

O juiz foi condescendente: agora pode ficar mesmo sentado!

- Eu levantei pro causo do chapéo!

Tirou da cadeira o feltro amarrotado, desamassou-o, sentou-se de novo.

- Tem a palavra o sr. representante do Ministério Público.

O promotor iniciou a acusação. Praxedes ficou estarrecido: aquele mocinho de bigodinho preto falava as coisas como se tivesse espiado tudo! Uma ou outra vez, errava um detalhe ou lhe atribuía pensamentos que nunca tivera, mas o caso mesmo, como se passara tudo, estava ali contadinho, desde as palavras que dissera à Graciema até as respostas que ela lhe dera; desde o primeiro encontro no bar Estrela Azul, até os encontros posteriores no quartinho da Rua Dr. Cockrane.

Vinha toda a história à boca daquele doutor que o acusava com a cara brava, apontando-o de vez em quando com o dedo duro. Sim senhor! O dr. promotor sabia mais da vida alheia que a própria Maria dos Anjos, afamada pela língua de palmo e meio em todo o bairro do Macuco!

Fora assim mesmo:

Havia quase um ano que conhecera a Graciema, no bar que fica logo no princípio da Rua Guerra - o Blue Star Bar, com uma estrela azul no luminoso. Ele estava jogando dominó com o Argamódio, o Florêncio e o Romualdo.

Graciema entrou e pediu: seu Antonio, me dá uma cerveja Cascatinha, gelada.

Um marinheiro que bebia um morrão, ao lado, gracejou: vai beber toda a garrafa sozinha? não me convida, moça?

Graciema fez um muxoxo de zanga e virou-lhe as costas. O marinheiro já estava no porre e insistiu: que orgúio, belezinha! Aproximou-se mais, com o cálice na mão, cambaleante: emprenhando algum rei, ?

Ela não se conteve e esbofeteou o malcriado. O marinheiro fez um gesto de reação, fechou o punho, mas Praxedes jogou as pedras do dominó na mesa, levantou-se: eu sustento a tabefe da moça, seu!

Segurou o marujo pela gola da camisa: peça descurpa p'ra moça, vamo!

Assustado, o bêbado obedeceu - descurpe, dona.

Praxedes o levou até a porta, pela gola, e o soltou junto ao meio-fio. Graciema já vinha saindo, com a garrafa de cerveja, e disse: obrigada, moço; o sr. foi muito bom.

Praxedes foi com ela - aquele bruto podia voltar e incomodá-la na rua.

Atravessaram juntos a linha da Sorocabana, foram caminhando até a Rua Padre Anchieta, onde ela morava.

Quando se separaram, estava marcado um novo encontro para o dia seguinte, às 5 horas e quinze minutos. Quinze minutos era o tempo do Praxedes lavar o rosto e as mãos, depois do serviço, e fazer o percurso do cais à Rua Anchieta.

O namoro seguiu, recatado, várias noites e várias tardes de domingo.

Graciema morava com o pai, carroceiro da União de Transportes, e com um irmão, molecote de recados na rampa do Mercado.

Praxedes tinha o curso completo de conquistas baratas. Já estivera até no Rio de Janeiro e aprendera muita coisa com as garçonetes dos botequins do Mangue. Mas lidar com moça séria assim, era difícil: se lhe pegava a mão, ela tirava logo, se Praxedes, à noite, no portão, começava a se encostar muito, ela entrava em casa e não aparecia mais. Afinal, um dia, Graciema falou, muito vermelha, que o pai não queria mais o namoro, um namoro que caminhava tão devagar.

- Também acho! - concordou Praxedes - que vai devagar, vai mesmo!

Pois então! Se o estivador tivesse intenções sérias, dissesse logo; senão não a procurasse mais.

Praxedes lá queria saber de casamento! Não via o exemplo dos colegas? Casavam, iam morar num quartinho de 40$000, depois vinham os filhos: um, dois, quatro. Passavam a morar num quartinho de 30$000, ainda menor, ainda mais escuro, e não havia dinheiro para nada: as crianças sempre doentes, a mulher num instante estragada de tanto serviço e de tanto filho, rabugenta, reclamando roupa, tamancos, sabão, comida menos má, uma porção de coisas!

E o coitado do marido suando nos armazéns do cais, bufando no porão dos transatlânticos, para, no fim do mês, ver que o dinheiro ainda não bastava para o quartinho miserável e para a conta da venda.

Não era esta a vida do Pedro Espanhol, do Florêncio, do preto Benedicto Onofre Scipião de Paula?

Casar p'ra quê? Praxedes não era besta!

Graciema esperava, olhos fitos nos seus: eu gosto de você, Praxedes Lloyd; você não gosta de mim?

Bolas! Mulher é bicho interesseiro: sempre à cata de trouxa que a sustente para o resto da vida. E fazendo micagens, dizendo coisinhas: Praxedes, eu gosto de você!

Ele porém não era destes, não ia atrás de conversa de amor, muito bem começada sempre: benzinho p'ra lá e benzinho p'ra cá, mas terminando em pouco tempo em choro de mulher e choro de criança: dinheiro p'ro leite, homem! dinheiro p'ra casa, homem! dinheiro p'ro padeiro, p'ro vendeiro, p'ro açougueiro! E as crianças berrando e sujando a casa toda. José Praxedes Lloyd não era bobo! Ele sabia viver!

Mulher, p'ra ele, só interessava na cama. Gostava de Graciema assim: deitada de costas num leito macio, ou mesmo na sacaria de um armazém do porto.

Queria a Graciema como um homem forte pode querer uma mulher bonita: gostava do seu corpo moço, que ninguém tivera ainda; daqueles seios escondidos no vestido, e dos quais ele não vira ainda nem mesmo o começo do sulcozinho que os separava. Gostava das suas pernas morenas, finas nos tornozelos, sem músculos em relevos excessivos nas panturrilhas. E dos seus braços, nem gordos nem magros, dos seus olhos escuros, da boca desbotada mas polpuda.

Gostava, sobretudo, de tudo quanto não via, apenas adivinhando no corpo dela. Imaginava-a nua: deve ser assim... assim... que bom se fosse assim! E imaginava naquela carne volúpias inéditas, que nenhuma das mulheres da Rua Visconde do Rio Branco ou da Rua João Octavio, gastas pelo uso intenso, podia oferecer.

Quem anda namorando moça-donzela é como quem caça no mato. Caçada de nhambu, por exemplo. A gente anda léguas, o dia inteiro, à procura e à espreita, piando e atraindo a caça. E quando ela chega, acudindo ao pio, ao alcance do tiro, é pum! matar logo, sem piedade, porque para isto foi feita a caça e a mulher.

Graciema esperava uma resposta: então você não gosta de mim?

A gente pia nhambu e pia mulher. Os dois acabam morrendo às mãos do caçador.

José Praxedes Lloyd pia para mulher; gosto sim, Graciema! Então você não vendo?

- Custou tanto a falar!

O nhambu respondia ao pio, desconfiado. Era preciso piar melhor: você não sabe como este coração sacoleja aqui dentro, Graciema, por causo de você!

O nhambu vinha chegando, devagar: verdade mesmo, Praxedes?

O pio está bom, é só continuar: juro, Graciema!

Pensou que ela ainda reagisse, e por isto a segurou fortemente, procurando-lhe a boca, que veio por si mesma juntar-se à sua. José Praxedes estalou os lábios num muxoxo forte, porque sempre aprendera que beijo faz barulho.

Aquilo é que era pio! O nhambu já não escapava mais!

Mas tinha que ir devagar: Graciema ficou zangada, chamou-o de bruto. Que tirasse as mãos de cima dela, tivesse modos... Até lhe ficara a doer, um seio, com aquela história de apalpação.

E de cima da escadinha de cimento, fugindo para dentro de casa, repreendeu: não pode esperar mais um pouco, seu buliçoso?

Praxedes foi até o Bar Estrela Azul beber um trago, e lá para tantas, depois de quatro partidas de dominó, o Agenor falou numa caçada no Jurubatuba, em que matara três macucos, cinco saripocas, dois nhambus... E não contou mais porque Praxedes o interrompeu, com a voz difícil: em caçada deste bicho... não fale na minha frente... que eu sô o rei... dos caçadô de nhambu. Caço eles até... com bêjos!

E emborcou o copo. Florêncio, por trás dele, mostrou aos outros os cinco dedos abertos da mão esquerda, apontando o copo seguro na direita.

Era mentira: José Praxedes só bebera quatro. Mas assim mesmo precisou de dormir num banco de pau no botequim que o luminoso anunciava ao longe: Blue Star Bar - Blue Star Bar - acendendo e apagando, a noite inteira.

No início do século XX, o cais santista, já com acostamento em amurada, mas tendo operação de carga integralmente manual, e ainda o uso de carroças para o transporte urbano
Imagem: acervo do professor e pesquisador santista Francisco Carballa