Gaivotas
Muita coisa aconteceu, desde o dia em
que o moleque Praxedes pescou três bagres de cima da muralha do cais, e uma criança morreu debaixo daquele bonde.
Praxedes já não pinta com todos de lápis de cor as bandeiras dos navios. Se pintasse, havia de se
atrapalhar com a cruz que há agora nos pavilhões da Alemanha, uma perna para cá, outra para lá, uma virada
assim, outra de outro jeito. Haveria de concluir que a bandeira alemã ficou difícil como a do México, a
cruz gamada desafiando a perícia do traço, como a águia bicuda que teimava em sair do lápis gaivota ou tico-tico.
Da água oleosa ou do céu azul, não se sabe bem, parecem também sair aquelas gaivotas vivas que
revoluteiam em bando, assanhadas na pescaria.
Com as pernas pendidas sobre o mar, sentado à beira do paredão, um homem se diverte em jogar as
cascas e o bagaço de uma tangerina com mira nas aves.
Entre manchas furta-cores de petróleo, folhas quebradas de bananeira, bóia um pedaço de pão,
atraindo cardumes de peixinhos. E as gaivotas revoam, alvoroçadas, fecham às vezes as asas e mergulham como flechas, ou mal beliscam a superfície e
logo alçam vôo com a presa reluzente no bico escuro.
Uma paira sobre o homem, tranqüila, as asas cor de cinza quase imóveis, o bico prolongado pelas
penas pretas que se estendem até os olhos redondos e penetrantes. Outra se ergue de repente do mar, trazendo a minúscula fita prateada de um peixe
agulha, e vai devorá-lo sobre o grosso cabo que amarra o Itaquicé a um dos cabeços de ferro do cais.
Irrequietas sempre, as gaivotas traçam espirais, sobem e descem quase a prumo sobre a água, com
semelhanças de densa evaporação desprendida daquela superfície suja, bailando caprichosa no ar morno.
Muito em cima, grandes nuvens brancas bóiam em outro mar limpo e azul, como condensação daquela
evaporação de gaivotas.
A mão de alguém desceu sobre o ombro do homem sentado: Argamódio, vamo s'imbora que
tá na hora de pegá o serviço!
O estivador jogou à água o último bagaço chupado e se levantou.
- Você sabe que o Praxedes Lloyd foi preso?
- Pro causo da briga com o Nico?
- Por causa da Graciema. Diz-que o pai deu parte na polícia.
- Qué dizê que ele... (bateu a mão aberta sobre o orifício que os dedos juntos da outra mão
semi-fechada formavam) - tlóque, na pequena?
- Não era segredo, aqui no cais!
- Safado! É uma mulhé boa!
- Melhor p'ra nois, Argamodio. Praxedes vai p'ra sombra, a moça fica aí,
desdonzelada... A gente pode avançá na fruta sem susto. Eu vou dá em cima dela!
Argamódio alisou os cabelos com os dedos abertos e pensou: eu também! Deu um soco nas costas do
outro, num gesto usual de camaradagem e propôs: Florêncio véio, vamo bebê um trago, seu malandro?
- Boa palavra, Argamódio! Para isto sempre exéste tempo!
Encaminharam-se para uma das cantinas do porto, a cantina Bela Cosa, do napolitano Zippoli.
Argamódio bateu no balcão: dois aço, depressinha, seu Zippo!
O italiano de avental sujo emborcou a garrafa de cachaça nos cálices curtos e largos, recolheu os
níqueis à gaveta e prosseguiu na leitura do Fanfulla, onde o crime do Braz era ilustrado com o retrato do quarto em desordem, com a cama
manchada de sangue, amarfanhada ainda pelos últimos arrancos dos dois corpos mortos pelo marido enganado.
Os dois estivadores empinaram os cálices; queima que nem pimenta! - comentou Florêncio.
- Eu sempre digo: quem toma isto não tem vergonha! - brincou Argamódio.
E seguiram para o armazém XXV, em frente ao qual o Almanzora
acabava de atracar.
O italiano deitou os cálices sujos numa vasilha de estanho cheia d'água, onde lavava também as
xícaras de café. Mexeu na água escura os cálices servidos e os colocou na prateleira, secando de boca para baixo. Chupou os dedos molhados e voltou
à leitura.
Então não se conteve mais, esmurrou o zinco do balcão e disse alto: ma che cane!
Dois marujos que olhavam a guerra da Abissínia
(N.E.: região ao Norte da Etiópia)
na capa de La Stampa Illustrata, colada numa das paredes da cantina Bela Cosa, saíram rindo.
No estuário as gaivotas faziam evoluções, pescando peixinhos prateados. Mergulhavam na água
coalhada de detritos e subiam no ar com as penas sempre imaculadas, descrevendo volutas como fumaça de um cigarro, ou pousavam um instante no mastro
mais alto do transatlântico, dominando a terra e o mar, tranqüilas e confiantes, como seres que nunca tiveram problemas de sexo.
O Almanzora se destacava pela chaminé única, numa época em que o número de chaminés dava
prestígio a esses navios de passageiros
Foto:
reprodução de Rota de Ouro e Prata |