O fim da caçada
Uma tarde, José Praxedes vinha saindo
pelo portão da Docas que abre sobre a praça do Mercado.
Na bacia, numa grande canoa, fumegava um fogãozinho de tijolos, com uma caçarola em cima, onde
saltavam na fervura caroços de feijão mulatinho.
- Eta cheirinho bão! Tô com petite!
Carregada de melancias, uma chata entrou pelo canal rebocada
pela gasolina Marieta.
A molecada saltava na rampa de pedra, atirando cascas de banana e de melancia à água lodosa, ou se
despencava pelo declive em carrinhos feitos de caixote com rodas de cama velha, tal qual brincava o moleque Praxedes, quinze anos atrás.
Da seção de animais, desprendia-se o odor forte de galinhas e de cabras, e um cabrito balia,
compassado e tremido, abafando o arrulho dos pombos.
Uma araponga branquicenta martelava o ar, fazendo doer os ouvidos.
Acorrentados aos poleiros, baitacas e papagaios grasnavam imitando os gansos das gaiolas de arame.
Patos espichavam o pescoço, dentro dos viveiros, e se diziam uns aos outros a onomatopéia sabida pelos garotos da rua: quem foi que viu? quem foi
que viu?
José Praxedes, junto a uma banca de verduras, encontrou-se com Graciema.
- Vim falar com o Chico, por causa de um recado que ele tem que fazer. Agora vou tomar o 8
(N.E.: bonde da linha 8).
- É cedinho ainda. Vamos passeiá um pouco.
Passaram por entre as bancas externas, contornaram o prédio do Mercado que começava a fechar os
portões, saíram na Rua Bitencourt.
Praxedes encaminhou a moça pela Rua Dr. Cockrane, parou à porta da casa onde alugara um quarto.
Pigarreou e deu à voz o tom mais natural possível:
- Moro aqui. Vamo entrá um pouquinho?
- Não, Praxedes. Não fica bem.
Recomeçaram a marcha, em direção ao cemitério. Quando Graciema
o percebeu, benzeu-se: cruz! Onde viemos parar!
- A gente agora sai por aqui, pega a linha do 15; fica mais perto.
Foi levando a moça para os lados desertos de um capinzal, quase na orla do cais.
A noite chegava, e um acendedor da City, com a longa vara ao ombro, passou junto deles e acendeu o
combustor a gás.
- Xi, que tarde!
Praxedes impelia a moça para o matagal.
- É só atravessá este matinho, tamo lá.
Na entrada do capinzal ela parou.
- Eu não vou por aí. Tenho medo!
- Vamo, bem. Aqui não tem cobra, corta caminho, passo todo o dia. Agora p'ra dá a
vorta, fica longe p'ra burro.
Deu sozinho uns passos à frente, abrindo picada através dos altos caules verdes do capim-melado.
Graciema veio atrás.
- Eu sei piá nhambu! - pensou Praxedes.
Bem no meio do mato, o capim dava quase na altura do peito. O estivador colheu a mulher pela
cintura, derribou-a na verdura.
As hastes tremularam em torno, e cerraram uma cortina verde à volta deles. Graciema tremia,
assustada.
- Não faz assim, Praxedes! Eu não sou destas!
Praxedes encostava a boca na boca de Graciema, e as suas mãos lhe subiam sob o vestido, desatando
as roupas íntimas.
- Não faz, Praxedes! Eu sou moça solteira!
Recorreu de novo ao pio de nhambu, o melhor de todos:
- Eu caso, Graciema; dêxa que eu caso! Você não me gosta?
- Gosto, mas não faz... não faz... me larga!
- Se me gosta, dêxa, Graciema. Eu caso!
- Jura, Praxedes?
As mãos despedaçaram a roupa que não cedia, e subiram pelo vestido, rumo ao corpinho.
Era preciso piar mais e melhor:
- Juro, Graciema; pelos cabelos brancos da minha mãe!
A mãe de Praxedes morrera moça, doente do peito, com a carapinha ainda preta.
Mas o pio não falhara: Graciema fechou os olhos, entregue, e os olhos de José Praxedes também se
fecharam, na fúria dos espasmos.
***
Graciema começou a visitar Praxedes no quartinho da Rua Dr. Cockrane.
Sempre a mesma promessa: eu caso, dêxa as coisa ameliorá! - e o mesmo ardor na posse.
Graciema já duvida: casará, mesmo? Ou só a quer para isto? Os seus olhos se enchem de tristeza:
para isto, só?
A moça anda nervosa. Porque o Chico a contrariou, deu-lhe um beliscão valente, e o irmão saiu
chorando, dizendo que ia contar tudo ao pai.
Ele disse aquele "tudo" com um tom esquisito. O Chico saberá? E se souber? Deus do céu!
O Chico sabia, o beliscão estava doendo, e o moleque ficou com ódio da irmã.
- Pai!
- Tu já trouxe a féria, vagabundo?
- Pai, o sinhô sabe? A Graciema me deu um beliscão!
- Bem feito.
- Me deu porque tá com raiva, mais eu não tenho a curpa. Pai não sabe? A
Graci anda de putaria c'um mulato da estiva. Vai no quarto dele quase toda a tarde. Eu já vi.
Quando Graciema chegou da rua, vinha pensando que o Praxedes era um bruto: sempre lhe magoava o
corpo, e ainda era bem capaz de abandoná-la assim... Assim!
Quando entrou na salinha de jantar, o pai não explicou nada: segurou-a pelo braço, torceu-o, e
soltou-lhe no rosto todos os palavrões que dizia aos burros da União de Transportes, quando estes escoiceavam ou davam para empacar.
Depois pôs o boné, arrastou a filha atrás de si, e foi com ela levar a queixa ao delegado, na
Praça dos Andradas.
Antigo portão de acesso às instalações portuárias da CDS
Foto
cedida pelo Museu do Porto de Santos, no arquivo de Novo Milênio |