Naqueles momentos de angústia, procurava abandonar a casa, numa ânsia de ir para São Paulo ou o Rio de Janeiro. A família fazia
o possível para dissuadi-lo do intento, mas ele - que era de ordinário tão calmo e submisso - rebelava-se, tinha gritos de cólera e, numa ansiedade
cega, fugia correndo porta afora; como o portão da chácara estivesse fechado a cadeado, atirava-se contra a cerca de espinheiros, numa loucura de
fugir, fugir...
- Nhozinho! Mais que é isso?
Era Anna, a escrava que o havia criado. Vinha correndo atrás dele e, com boas palavras, com rogos muito doces, muito humildes,
ia desvencilhá-lo dos espinhos, conseguindo que voltasse para casa, a roupa em trapos, o rosto lanhado, os braços a escorrerem sangue.
Num desses dias - o fato é conservado na memória dos parentes - o poeta encontrou o portão aberto e fugiu em direção da vila.
Depois de muito correr, ganhou a estrada de Santos, já sua conhecida. Tomou por ela em direção da serra, do mar. Difícil será imaginar o que foi a
sua aventura ao longo de uma via quase deserta, continuamente revolvida pela passagem das boiadas. Andou dias e noites. Dormiu nos ranchos
abandonados à beira do caminho, entre andantes, marinheiros fugidos, quilombolas.
Desceu a serra por atalhos que pareciam comprazer-se num equilíbrio impossível, entre as encostas a prumo e os abismos. Passava
esgueirando-se entre o morro liso, escorregadio, e o desfiladeiro que, lá em baixo, toldado de neblina, se perdia entre pedras negras empoadas de
verde pela folhagem crespa das samambaias, com um ronco surdo de cachoeira.
Assim chegou ao Cubatão. dormiu no primeiro rancho de tropeiros que encontrou, entre uma
casa-grande e um engenho. No dia seguinte, transpôs a ponte coberta de telhas, onde funcionava a barreira e era
preciso pagar um vintém. O escrivão, um caiçara de grande barba loura que mais parecia alemão, vendo o estado em que o moço estava, deixou-o passar
livremente. Mais adiante alcançou a estrada de ferro, que estava sendo construída, e, margeando-a, chegou à ponte do
Casqueiro e depois às primeiras casas do Saboó.
Mais adiante, viu muitos homens que aterravam o lodaçal compreendido entre o
Mosteiro de Santo Antonio e o estuário; disseram-lhe que ali ia ser construída a
estação inicial da via férrea. Mais para a esquerda, apareceu-lhe um trecho de paisagem escura, onde as águas
negras refletiam o verde claro do mangue. Embarcações encalhadas no tejuco empenavam ao sol. Um cheiro forte de
alcatrão e maresia rondava nas aragens. A cidade cozinhava em banho-maria.
Tomou a Rua de Santo Antonio, depois a Rua Direita e,
lá para cima, descortinou novamente a paisagem triste do estuário. Mas, naquele ponto pareceu-lhe mais animada.
Lembrou-se com saudade de outras viagens. Em 1865, quando ainda tinha 19 anos, estivera em Santos, na companhia de sua irmã Mariazinha e de outras
pessoas da família. Hospedaram-se em casa de tia Nhandores, uma das moças do sobrado, casada com o médico dr. Firmino
José Maria Xavier.
Por essa ocasião escrevera uma poesia dedicada à sua prima Carolina, então solteira, que mais tarde casou com o dr.
Vieira de Carvalho, lente da Faculdade de Direito. Fez um esforço para lembrar aquela poesia.
Barra de Santos...
Praia que o mar brandamente
Repele ou acaricia,
Em que as auras vêm carpir-se
À volta do meio dia,
E à tarde espalhar frescura,
Sombras e melancolia:
Linda praia, debruada
De alvejante, fina areia,
Porque só tua lembrança
O espírito me encadeia?
Quem te deu tamanho encanto?
Onde está tua sereia?
Lembrou-se também, e com saudade, do dia em que embarcara no Juparaná com destino ao Rio de Janeiro. Reconheceu as
edificações chatadas da praia. Eram armazéns construídos de tábuas, com letreiros apagados, um pouco para cima
da única e larga porta. O sol faiscava nas telhas de zinco. Homens quase nus, em carreiros, como formigas, iam e vinham esmagados por grandes
fardos. Aquelas construções eram os trapiches.
As pontes de pranchões alcatroados alongavam-se pela lama do estuário e alcançavam o
canal. Eram construídas sobre moirões quadrados. A maré, que subia naquele momento, abraçava os madeiros e os envolvia em placas irisadas de óleo.
Apareciam raízes, ouviam-se estalidos, caranguejos fugiam pelos buracos instantaneamente secos. Na extremidade das pontes dos trapiches, havia
embarcações atracadas, nos serviços de carga e descarga. Eram navios de vela e vapores de roda.
Entrou por um desses trapiches que no momento estava em repouso e observou o quadro que se estendia de um lado e de outro:
navios atracados, quilhas enferrujadas de embarcações engolidas pelo lodo, casario baixo, de telhado escuro, botes e canoas fugindo ao longe,
impulsionados pelos remos.
Atrás da alfândega estava ancorado, à beira do canal, um patacho europeu, dos que chegavam
com louça, tabaco, telhas de zinco e grandes pipas de vinho. Alguns marinheiros, sentados numa tábua suspensa por cordas, martelavam a velha pintura
do casco, esfacelando-a em pequenas placas. O bater dos martelos vibrava alegre, vivo, na mornidão viscosa da tarde.
Paulo Eiró ficou-se entre as pilhas de carga, a contemplar aquela cena. Um homem atarracado, de boné mal equilibrado sobre a lã
ruiva, caminhou para ele e esforçou-se por falar-lhe em português. Como resposta, o rapaz perguntou-lhe em francês, espanhol, inglês, italiano e
alemão o que desejava. o marítimo era alemão. Ao ouvir a sua língua falada por um filho da terra, mostrou-se encantado, e dali a pouco estavam
amigos velhos. Nos portos de mar é assim, sempre foi assim. Ao cabo de longos passeios pela cidade, remaram para bordo do patacho, onde ele era o
mestre. Ali jantaram juntos, depois voltaram para terra e, tomando o Caminho da Barra, se dirigiram às
praias arenosas que bordam a costa até São Vicente.
Paulo Eiró acabou instalando-se a bordo. Ficava horas inteiras de papel e lápis na mão, registrando os fardos que saíam, no
lombo dos negros. Por essa altura já estava disposto a fazer uma longa viagem por esses mundos que lhe eram familiares, através dos livros.
E ele conhecia Geografia. Por ocasião de seu exame, no Curso Anexo, o conselheiro Amaral Gurgel, que presidiu a banca,
escrevera ao Chagas uma carta de felicitações, em que dizia: "Seu filho viajou pelo globo terrestre como quem anda pelas ruas de Santo Amaro"...
Recordava e sorria.
O mestre do patacho acedeu ao seu desejo e na semana seguinte, concluídas a carga e descarga, postos em ordem os papéis, o
barco levantou ferros para o Rio de Janeiro, onde faria escala. Mas, por uma terrível coincidência, o estado de saúde de Paulo Eiró agravou-se
naquela ocasião. Talvez resultado das fortes emoções da partida. Tomou-o uma daquelas angústias em que ele, quando na chácara, investia contra a
cerca de espinheiros. Mas ali, prisioneiro do navio, entre o cadaste e a roda de proa, apertado entre as amuradas, sentiu-se a ponto de atirar-se à
água. Mas não o fez.
Os marujos, nus da cintura para cima, com caras que pareciam recortadas em madeira, boquiabriam-se ao vê-lo morder os punhos e
dar urros de fera enjaulada. Sumia-se durante horas inteiras; muito tarde iam encontrá-lo metido a um canto do paiol da marra, fixando os intrusos
como gato acossado pronto a saltar no perseguidor. Seus olhos brilhavam com estranha claridade. O mestre do patacho sentia-se verdadeiramente
atrapalhado com o rapaz e um dia, para remate de inquietações, prendeu-o no camarim e meteu a chave no bolso.
A rota estava sendo vencida com vento de feição. Dias depois, como surgisse a bombordo uma povoação, talvez de pescadores, o
homem meteu Paulo Eiró num bote e mandou soltá-lo na praia próxima, recomendando aos remadores que o tratassem com doçura. Assim se fez. E algum
tempo depois, o poeta, sentado na areia, viu o bote regressar ao patacho e ser içado aos turcos; a seguir, a embarcação amarrou, com alvuras de
panos enfunados e oscilações de arfagem.
Ao entrar na povoação de pescadores, o desconhecido foi recebido com surpresa. As mulheres, de pano na cabeça, se debruçavam
nas meias-portas para olhá-lo. As crianças saíam para a rua, e quando o viam de perto, desandavam a correr.
- O andante! O andante!
Felizmente, um caiçara de chapéu de palha se dispôs a ouvir a sua história e, depois de oferecer-lhe uma cuia de galhas de
cação assado, com farinha manema, ensinou-lhe o caminho. Ele partiu. A serra estendia-se à sua frente, como um infinito mistério. Não se sabe quanto
tempo andou, vencendo encostas, atravessando cachoeirinhas espertas, subindo desfiladeiros a prumo, agarrado aos cipós e às samambaias. um dia
alcançou o planalto e tomou o primeiro caminho que se abriu à sua frente.
Chegou a uma povoação à beira de um rio. Era Paraibuna. dali obteve condução; anoiteceu em S. Paulo, amanheceu em Santo Amaro.
Já havia perdido a conta do tempo...
- Virge Nossa Senhora! Em que estado chegou Nhozinho!
Era a escrava Anna, no portão da chácara.