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Paulo Eiró e Alvares de Azevedo
Chegando a Tatuí, o viajante fez uma visita às
pessoas que ficara conhecendo por apresentação do tio Ezequiel. Foi otimamente recebido. Passou o dia na casa de um, a noite na casa de ouro. Na
manhã do dia seguinte, obteve lugar num carro que ia para Sorocaba. As estradas eram más, cheias de voltas, de vales, de barrancos e de lamaçais
permanentes, sempre revolvidos pela passagem das tropas. Apesar disso, a sua viagem foi deliciosa, pela quantidade de coisas inesperadas que
encontrou ao longo do caminho.
Em Sorocaba, a feira havia alcançado maior movimento. A localidade estava animadíssima. Por toda parte só se discutia animais,
preços, barganhas e transações. As vendas regurgitavam. As casas de arreios expunham nas portas a sua mercadoria e os transeuntes paravam para
admirar a obra dos artífices locais.
Como anoitecesse, entrou num pequeno negócio. Das portas, sobre a rua, pendiam lascas de bacalhau e réstias de cebolas. Diante
das portas estavam muitos homens em grupos. Cavalos empoeirados ruminavam presos aos mourões. Quando Paulo Eiró entrou, o vendeiro acendia o
candeeiro de azeite. Uma tênue claridade amarelenta desceu sobre numerosas figuras de roceiros.
- Boa noite prá meceis.
Vinte vozes responderam. No salão dos fundos, onde havia ainda mais gente, ouviram-se sons de viola e vozes roucas num desafio.
Foi até lá. Ninguém notou a sua presença de "gente boa" e a festança prosseguiu. De quando em quando, as quadrinhas improvisadas chamavam a atenção
do poeta, que as repetia vagarosamente, com a preocupação de guardá-las de memória. Assim passou horas. Por diversas vezes convidaram-no a
participar de carne assada no borralho, com um gole de vinho tinto. Ele aceitou de boamente todos esses convites e, com o passar da noite,
conquistou a simpatia daqueles feirantes.
Ao clarear da manhã, um tropeiro perguntou-lhe:
- Vai prá Piedade?
- Vou.
- Então venha comigo.
Ia levar um animal àquela localidade, e como simpatizasse com Paulo Eiró ofereceu-lhe condução. Este aceitou e, depois de
algumas horas de caminho, despediram-se na porta da hospedaria local. Era uma casa velha; sobre a porta, à tinta preta, via-se este letreiro: "Otel".
Na única sala, uma mesa de grandes proporções, encardida pelo tempo. Alguns "cometas"
(N.E.: caixeiros-viajantes, vendedores que percorriam as cidades do interior oferecendo
seus produtos à clientela, muitos errantes em seu percurso como os cometas no cosmo)
dos que vendiam quinquilharias nas fazendas, hospedavam-se ali, à espera de transporte, ou apenas pernoitavam para, no dia seguinte, chegarem ao seu
destino, com tempo de ainda poderem regressar ao pouso.
Bebia-se, conversava-se, contavam-se anedotas. Alguns daqueles homens,
enquanto ouviam os casos, para fazerem alguma coisa, iam gravando as iniciais do nome, à ponta de canivete, sobre a mesa escura. O poeta gostou da
companhia e ali ficou algum tempo; depois de gravar as suas iniciais na mesa, como os ouros, acabou por grafar as quadrinhas ouvidas dos violeiros
de Tatuí. E quando não mais teve quadrinhas, fixou os seus Desabafos:
"Imortal
seiva de vate,
Alma ardente
de paulista.
Essa lança
que se enrista
Quebra, não
peças combate!
Do teu
orgulho o remate,
Infeliz, será
talvez
Incensar
grandes e reis,
Ver a raça
envilecida
Formar de teu
corpo e vida
Estrado para
teus pés!"
Um dia, depois do almoço, os hóspedes do "Otel" foram alarmados com a
chegada de um figurão que apareceu na estrada de Itu, com bestas e pajens. Soube-se depois que era o barão Tchaudi, ministro da Suíça no Rio de
Janeiro. Andava em excursões pela Província. O diplomata e sua gente tomaram conta da casa e só partiram duas horas depois, rumo de Barueri.
O ministro era aborrecidamente espécula. Queria saber como se chamava
isto, como se fazia aquilo. Quando deu com a mesa toda riscada de letras, quis saber quem eram os donos daqueles nomes, o que faziam e como viviam.
Quando encontrou os versos, cobriu os hóspedes de perguntas... Já no terreiro, montado no seu cavalo, mostrou com a ponta do chicote o letreiro que
havia sobre a porta e, depois, com grande esforço, tomou nota na carteira.
Vendo-o partir, numa nuvem de poeira, Paulo Eiró sentiu forte a
nostalgia das viagens. No dia seguinte, pela manhã, depois de uma conversa em particular com o dono da hospedaria, fez-se de mala e cuia com destino
a S. Paulo. À tarde, chegou a uma venda da beira da estrada, onde teve de lutar com a preguiça do vendeiro que fumava à porta.
- Onde fica Cotia?
- Fica ali mesmo...
E o homem estendeu um beiço comprido que Paulo Eiró avaliou em três
léguas. Por isso, resolveu pernoitar na venda. Enquanto o hospedeiro pitava impassivelmente á porta, ele se encarregou de encher uns sacos com palha
de milho e ajeitá-los entre o balcão e as prateleiras quase vazias. À tarde, como o dono da casas não estivesse mesmo resolvido a mexer-se, deu uma
busca pelo quintal, de onde trouxe o chapéu cheio de machuchos, carás, batata-de-inhame e mangaritos, que vegetavam a seu bel-prazer. Fez um grande
fogo e tratou de preparar o jantar.
Quando os trabalhos já iam a meio, o vendeiro animou-se e resolveu
contribuir com um naco de carne-de-fumeiro que acrescentou ao cozido um sabor e um cheiro inesperados. E, já noite, à luz do candeeiro, os dois
homens fizeram o seu jantar, quase sem palavras, porque o diacho do vendeiro tinha preguiça até de falar...
No dia seguinte, depois de muito caminhar, Paulo Eiró chegou a S.
Paulo, passando pelo Caaguaçu, onde aparecia o grande e novo cemitério da Consolação. Contornou-o e chegou à Rua do Paredão; desceu para o Piques e
subiu para a Rua de São José, onde se hospedou na casa de tia Anninha. Ali passou dois dias de descanso, enquanto as escravas cuidavam da roupa
maltratada pela viagem. Como se sentisse de veia, escreveu duas poesias: uma dedicada à tia e outra ao primo Francisco Xavier Pinheiro e Prado.
Nesse ponto Paulo Eiró desaparece aos olhos do cronista para surgir de
novo na Corte, em 1º de outubro de 1861. Presume-se que, como era de seu costume, terminada a viagem a Tatuí, ele se recolhesse novamente à chácara,
onde família, agregados e escravos procuravam adivinhar as suas vontades. Naturalmente, como já havia acontecido mais de uma vez, essa vida calma
acabara enfarando-o até um dia, surdo a todos os conselhos, partir para nova aventura, levando a roupa do corpo e um embrulhinho de livros e papéis
debaixo do braço...
O caso é que Paulo Eiró foi para Santos, gastando dois dias para
atravessar os campos e descer a serra; tomou o vapor Juparaná e desembarcou no Rio de Janeiro. A vida desse viajante sem vintém na Corte é
difícil de contar, por falta de documentos, mas não é difícil de imaginar...
O fato é que, dois dias depois de sua chegada, no dia 3 de outubro, o
Correio Mercantil, jornal de Francisco Octaviano, autor de "Quem passou pela vida em branca nuvem...", publicava uma poesia de Paulo Eiró,
com o nome de Madressilvas. No dia seguinte, dava a lume uma fantasia intitulada Como se morre. Inspira-se toda em Alvares de Azevedo,
que havia falecido em 1852. O estilo dessa página denuncia influência do autor de Macario. São dois intelectuais a conversar, certa noite, à
luz de uma vela; o interlocutor de Paulo Eiró não conhece ainda Alvares de Azevedo, o que o leva a uma longa explicação:
"Eu o vi uma só vez em minha vida; mas nunca me poderei esquecer desse
instante. Era na velha igreja de São Francisco, em São Paulo. Armavam o templo para celebrar as exéquias do estudante João Baptista Pereira. Um
soberbo catafalco erguia-se até o mais alto da nave, tendo escritos nas suas quatro faces versos sentidos e lúgubres. Li-os e confesso que me
pareceram detestáveis. 'Quem é o autor?' - perguntei a um primo que me acompanhara até a igreja e que já gozava das honras de calouro. 'Aquele moço
que está ali, sentado em um banco'".
Era ele, Azevedo, o pálido sonhador. Seu olhar distraído e melancólico
estava fito no monumento fúnebre, como se contemplasse alguma visão que lhe aparecera bem vezes na bruma tristonha da noite. Parecia Hamlet
considerando o espectro do seu pai. Passaram-se meses e soube pelo Jornal do Commercio que finara o pobre cantor. Depois... silêncio. Saíram
finalmente a lume as poesias daquele cisne que morrera tão cedo, afogado na água estagnada dos paúes da terra. Um escritor português, Lopes de
Mendonça, que tinha na alma a têmpera de Azevedo, e que, como ele, acabou por enlouquecer, revelou ao Brasil que perdera um grande poeta. Porque
será, [... (N.E.: palavra ilegível no original)]
que nós não acreditamos senão naquilo que a Europa quer?
E conta um episódio da morte de Álvares de Azevedo, um episódio que,
segundo parece, não foi registrado por nenhum dos seus biógrafos.
(Do
livro "A Vida de Paulo Eiró", em preparação)
Affonso Schmidt
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