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ROTA DE OURO E PRATA
Navios: o L'Atlantique

1930-1935

Durante a década de 20 deste século, os três países da costa Leste da América do Sul, Brasil, Uruguai e Argentina apresentaram forte crescimento econômico, resultado, de um lado, da crescente demanda por parte dos países do Hemisfério Norte de produtos agrícolas e pastoris e, de outro lado, do enorme influxo de emigração europeia e japonesa, que consigo trazia dois fatores progressistas: força de vontade de trabalhar e conhecimentos técnicos.

O bom desempenho produtivo nesses três países proporcionou um aumento do nível de vida para as camadas populacionais e, para as mais elevadas, isto significou a procura de luxo e sofisticação. No setor dos transportes marítimos, o impacto dessa nova realidade socioeconômica resultou no aparecimento de diversos transatlânticos de grande porte destinados a servir a rota sulamericana do Atlântico. Surgiram assim os britânicos Asturias e Alcantara, da Royal Mail, os italianos Conte Verde e Conte Rosso, do Lloyd Sabaudo, o Saturnia, da Cosulich, e sobretudo o magnífico Cap Arcona, da Hamburg-Sud.

O lançamento desses grande navios de passageiros na Rota de Ouro e Prata a partir de 1925 relegou a um segundo plano o serviço combinado das duas armadoras francesas - Chargeurs Reunis e Sud-Atlantique -, que utilizavam ainda várias unidades tecnicamente ultrapassadas e envelhecidas.

Para manter-se competitiva nessa rota, a Sud-Atlantique planejou, no decorrer de 1928, a construção de um espetacular supertransatlântico, que - por tamanho, luxo e esplendor - superaria qualquer outro da concorrência, elevando assim o prestígio nacional francês para o nível que lhe era condizente.

Rei do Atlântico - Em novembro desse ano, foi deposta a primeira trave de sua quilha nos estaleiros de Penhoet, no Porto de Saint Nazaire. O futuro transatlântico já tinha nome designado, seria o rei do Atlântico, seria o L’Atlantique.


O luxuoso transatlântico fez sua viagem inaugural em 29 de setembro de 1931 na linha Bordeaux-Lisboa-Rio de Janeiro-Santos-Montevidéu-Buenos Aires

Imagem: cartão postal no acervo do despachante aduaneiro e cartofilista Laire José Giraud

Principais características e técnicas de construção:

Tonelagem: 42.545 toneladas de arqueação bruta.
Dimensões: 227 metros de comprimento, 30 metros de largura.
Maquinário de propulsão: Constituído por quatro turbinas a vapor do tipo Parsons, cada uma coligada a um hélice e alimentada por quatro caldeiras, perfazendo um total de 16 caldeiras e 112 fornos de alimentação.
Potência de propulsão: 45 mil cavalos-vapor para um velocidade de 21 nós (39 km/h).
Combustível: 6.100 toneladas de óleo, suficientes para uma viagem França-Argentina, eram armazenadas nos dez tanques de combustível na parte mais inferior do casco.
Pontes: 12 no total, designadas de cima para baixo: de esportes de comando, dos botes ou promenade ou A, B, C, D, E, F, G, das máquinas, das caldeiras e dos tanques. Destas 12, cinco correspondiam ao comprimento total do navio.
Divisórias transversais: 13, com 38 portas estanques.
Botes salva-vidas: 24 no total, dois deles equipados com motores.

Exteriormente, o L’Atlantique apresentava desenho e linhas clássicas nada inovadoras ou futurísticas. Casco terminando por uma proa reta e popa de cruzador, sua gigantesca superestrutura, massiva e linear, conferia-lhe um ar pouco estético ou elegante. De fato, o transatlântico da CNSA não podia ser considerado um belo navio, do ponto de vista exterior.

Suas três chaminés originais eram muito curtas, o que vinha agravar a sensação de peso que o navio dava. Das três, a posterior só tinha função decorativa, não estando ligada ao maquinário. Sua inclusão no desenho do navio foi, porém, um grave erro arquitetônico, pois a silhueta do mesmo teria aspecto mais afinado e moderno sem esta terceira chaminé.

Além do mais, o L’Atlantique apresentaria melhor desempenho na relação consumo combustível-velocidade média sem o peso extra de 200 toneladas, representado por esta terceira chaminé. Diga-se de passagem e para melhor idéia do seu tamanho, cada chaminé tinha um diâmetro por onde poderiam passar, lado a lado, dois trens ou quatro automóveis.

Batismo - Quinze meses após o início de sua construção, o L’Atlantique foi lançado às águas do Rio Loire, em 15 de abril de 1930. A tradicional garrafa de champanhe foi jogada à sua proa pela senhorita Cyprien Fabre, da família detentora do pacote acionário da Sud-Atlantique. Estavam presentes na cerimônia de lançamento diversas personalidades, entre as quais o então ministro da Marinha Mercante francesa, Louis Rollin, outros ministros e diversos embaixadores, dentre os quais o do Brasil, o do Uruguai, o da Argentina, o da Bolívia, o do Paraguai, o da Espanha e o de Portugal.

Do total de 1.208 passageiros que podia acomodar, 462 viajavam em 1ª classe, distribuídos em apartamentos ou cabinas de luxo (160 pessoas) ou em cabinas simples (302) pessoas. Em 2ª classe, podiam ser acomodados 82 passageiros, em 3ª 660 pessoas e em classe emigrante, algumas centenas. Esta última classe nunca foi, porém, utilizada no curto período da carreira do transatlântico.

A repartição dos passageiros de primeira classe era feita da seguinte forma:

Dois apartamentos de grande luxo com salão, sala de refeições, terraço privativo de sete metros de comprimento, dando diretamente ao mar, sala de banhos, amplo quarto de dormir, vestíbulo e compartimento especial para as bagagens.

Seis apartamentos de luxo com as mesmas repartições acima, menos sala de
refeições e terraço.

Setenta e duas cabinas de luxo a dois lugares.

Cento e vinte e oito cabinas de classe a dois lugares e 46 do mesmo tipo para 
apenas uma pessoa.

As tarifas praticadas para estes passageiros, numa viagem de ida e volta, variavam entre US$ 6 mil e US$ 15 mil por pessoa. A segunda classe dispunha de 16 cabinas e dois lugares e 18 de três, enquanto as de terceira classe acomodavam quatro ou seis pessoas. Em qualquer uma dessas classes, o que surpreendia eram os vastos espaços disponíveis para todos os passageiros, sejam os de caráter público, sejam os de uso particular.


Celebridades como a atriz Marlene Dietrich (aqui, na suíte Rouen do Normandie, em 19/11/1938) eram presença constante a bordo

Foto publicada com a matéria

Oitavo maior - Na época de seu lançamento, o L’Atlantique era o oitavo maior navio de passageiros do mundo, em termos de tonelagem, e situava-se entre os maiores 20 transatlânticos em termos de comprimento e largura. Todos esses recordes seriam batidos com a entrada em serviço do Normandie (1935) e sucessivamente do Queen Mary (em 1936).

Todo o esplendor do L’Atlantique encontrava-se sobretudo no seu interior, onde predominava o estilo contemporâneo da época, modernista, com alguns leves toques de futurismo. O transatlântico da CNSA foi, desse ponto de vista, precursor do magnífico e célebre Normandie, encomendado em finais de 1930 pela Compagnie Générale Transatlantique (CGT). Estes dois transatlânticos foram planejados contemporaneamente no decorrer de 1920, antes do crash financeiro de Wall Street.

A construção do L’Atlantique foi, porém, iniciada logo após a fase de planejamento, enquanto a do Normandie foi postergada em razão da necessidade de se construir  uma doca seca especial para o navio. A construção desta doca seca levou quase dois anos de trabalho (de abril de 1929 a janeiro de 1931) e foi só após o seu término que se deu início à realização do projeto T6 (ou seja, o Normandie) com as primeiras travas de madeira sendo dispostas em abril de 1931.


Grande incêndio quase destruiu o Normandie, em 9 de fevereiro de 1942,
quando era reformado para transportar soldados

Foto publicada com a matéria

Estética - Foi nesse mesmo mês e ano que aconteceu o lançamento ao mar do L’Atlantique, que, em diversos parâmetros, serviu de protótipo estético ao transatlântico da CGT. Derivavam deste fato as inúmeras similaridades no tipo de decoração e estilo interno deste dois transatlânticos. As duas armadoras hexagonais não mediram esforços e custos para embelezar os interiores de seus navios.

A CNSA chegou ao ponto de abrir um concurso público para a escolha do melhor projeto de decoração, concurso que ficou sob a supervisão da Sociedade de Promoção à Arte e Indústria Francesa, com sede em Paris. Dentre dezenas de submissões, foi escolhido o projeto do arquiteto Albert Besnard, que contou com a colaboração de colegas do estúdio arquitetônico Patout, Raguenet e Maillard.

Paradoxalmente aos grandes meios financeiros disponíveis, o estilo escolhido era relativamente sóbrio, livre de superficialidades, apresentando, porém, um aspecto geral utilitário, agradável, caloroso e ao mesmo tempo refinado. Os arquitetos procuraram fazer esquecer aos passageiros o fato de que estes se encontravam a bordo de um grande navio e estimularam a sensação de frequentar um moderno edifício funcional, construído na área chique da capital francesa, ao lado das boutiques de luxo dos Champs Elysees ou do Faubourg Saint Honoré.

Shopping-center - O hall de embarque de 1ª classe era grandioso, ocupando três decks (conveses) em altura e situado no coração do navio; era de formato octogonal em seu centro, com dois espaços laterais correspondentes aos foyers (vestíbulos) de bombordo e estibordo e dois longos e largos corredores (aos quais foi dado o apto nome de avenida ou l’avenue, em francês). Na avenida (135 metros), existiam dezenas de lojas envidraçadas, onde se podia comprar tudo o que se desejasse, verdadeiro shopping center dos anos 30.

Floricultura, livraria, loja de novidades, de roupas masculinas, de roupas femininas, de roupas infantis, de brinquedos, tabacaria, peleteria, bijuterias, loja de artigos em porcelana e cristal e até mesmo uma loja de revendedora de automóveis, com um modelo real exposto na vitrine.

Decorado em mármore branco e com pilastras em metal prateado que se alternavam com lambris de madeira de nogueira do Cáucaso, o hall tinha, em seu teto, nove metros acima do piso, um gigantesco mapa oceânico, que permitia visualizar a rota para a qual fora construído o navio. A cor predominante, além do branco, era um rosa-vermelho, provindo do gigantesco tapete-moquete, que corria em toda a extensão, e do forro das galerias laterais superpostas em dois andares ao piso principal do hall, que se situava na altura da Ponte E.

Salões - Medindo 24 metros de largura, 32 metros de comprimento e nove metros de altura, o salão de jantar de 1ª classe era todo envelopado de lambris em acaju envernizado, que dividia os espaços laterais junto a dez grandes janelas (cinco de cada lado) de vidro cristal trabalhado. Podia acomodar 460 passageiros em mesas de diferentes dimensões e formatos espalhados de maneira não uniforme no espaço. No teto, oito fileiras de grandes vitrais de iluminação elétrica difusa e, nos quatro ângulos do salão retangular, um enorme painel decorativo em tecido trabalhado e pintura.

Estes quatro painéis receberam os nomes de: o da Pantera, o dos Animais, o do Tigre e o dos Elefantes. Serviam de referência aos garçons e aos maitres ao indicar as mesas dos passageiros ou convidados: ... "Sua mesa, cavalheiro, encontra-se próxima ao painel do Tigre e o garçom lhe acompanhará até lá". Ao centro do salão, uma mesa retangular com base fixa e topo em mármore verde (onde sobressaía um enorme vaso) servia de bufê frio. Este salão encontrava-se na Ponte C do transatlântico.

Unido ao salão de jantar por uma escada monumental em desnível de um convés, o grande salão de festas de 1ª classe, retangular, possuía uma superfície total de 500 metros quadrados, repartidos em cinco semidivisões de espaço, quatro laterais e uma central.

Doze altíssimas janelas em vidro semifosco Saint Gobain davam diretamente para a ponte de passeio externa e inundavam de luz as paredes de mármore rosa claro e verde musgo. Era decorado, em seus cantos, por tronejantes vasos de cerâmica de dois metros de altura e por uma estátua de ferro, representando a caçadora Diana, que conduzia ao laço o seu cão de raça a passo célere. Mobiliado com mesas redondas de quatro lugares e poltronas em couro marrom, este grande salão podia rapidamente ser transformado, na sua parte central, em pista de dança.

O salão de estar de 1ª classe era também conhecido com o nome de Salão Oval, haja vista a forma que o caracterizava. Possuía dez colunas de mármore escuro de nove metros de altura, delimitando um espaço cultural também utilizado como pista de baile nas noites de gala. Seu acesso era feito através de esplêndida porta de ferro trabalhado e vidro cristalizado. Dezoito janelas laterais, por cima das quais havia sido montado um imenso painel decorativo (obra do artista decorador Dunant), completavam o visual deste salão, que se encontrava na parte anterior da Ponte B.


Em Bordeaux, na França, embarque de passageiros no transatlântico francês L'Atlantique, em 1900, com destino à América do Sul e escalas em Salvador, Rio de Janeiro, Santos e portos do Rio da Prata

Imagem: cartão postal no acervo do despachante aduaneiro e cartofilista Laire José Giraud

Esportes - Concebida pelos arquitetos navais Hennequin & Lardat, a piscina da 1ª classe era dotada de esplêndido piso lateral em ladrilhos azul-laqueado e frisos decorativos prateados. A piscina propriamente dita media 10 metros de comprimento por seis de largura, recebendo luz natural provinda de um grande domo envidraçado, situado sobre o retângulo da mesma piscina e que dava para o exterior do navio. Nas áreas adjacentes encontravam-se todas as salas complementares para a boa forma física dos passageiros: musculação, ginástica, massagens e hidroterapia.

Os outros ambientes eram de tal número elevado, espalhados pelo diversos espaços de quatro classes do transatlântico, que não nos é possível descrevê-los em detalhes. Para completar os aspectos relativos à primeira classe, citaremos os seguintes: salão para senhoras, salão para fumantes, biblioteca e leitura, salão de tiro ao alvo, salão de refeições e divertimentos para crianças, quadra de tênis oficial ao ar livre, três pontes-passeio, duas das quais eram cobertas.

No último convés, em torno das três chaminés, encontrava-se a gigantesca ponte dos esportes, em piso de madeira corrida, numa extensão de 150 metros por 20 de largura, que oferecia um vasto espaço totalmente livre para correr ou fazer bicicleta. Capela, enfermarias, teatros, duas salas de operação, estúdio fotográfico, salões de beleza e banheiros, gabinetes médicos e dentários, enfim, quase de tudo, formando o conceito de cidade flutuante, completavam os espaços de serviço ou lazer para as quatro classes e os seus 1.200 passageiros.

Doze bares, seis cozinhas, quatro salões-restaurante (um para cada classe) para os passageiros, quatro restaurantes, duas cozinhas para os tripulantes, consumiam numa viagem redonda quantidades impressionantes de alimentos e bebidas: 15 mil quilos de carne de vários tipos, 6 mil quilos de aves, 50 mil ovos e 30 mil quilos de batata, 40 mil quilos de legumes e produtos hortifrutícolas, 4 mil garrafas de champanhe, 10 mil de vinhos de alta qualidade, 40 mil litros de vinho de barrica, 12 mil garrafas de água mineral, 15 mil litros de cerveja. Quatrocentos homens da tripulação trabalhavam nos serviços de hotelaria e catering deste verdadeiro palácio flutuante que foi o L’Atlantique.

Construção -  O estaleiro de Penhoet empregou cerca de dez meses para construir o casco e a superestrutura do L’Atlantique. Finalizada esta fase, o navio foi lançado ao mar em abril de 1930.

Foram necessários outros 15 meses para completar a obra: máquinas, parte sanitária e elétrica, cozinhas, bares e cabinas, salões e alojamentos, móveis, decoração e apetrechos foram instalados nessa fase. Completado, o transatlântico entrou para a fase de realização de todos os testes operacionais.

Em meados de agosto de 1931, foram feitas as provas de máquinas e de navegação, ocasião em que às máquinas propulsoras foi solicitada toda força, o que correspondeu a velocidade muito próxima dos 24 nós (44,5 quilômetros horários).

Superadas satisfatoriamente todas as provas, o L’Atlantique foi colocado na doca seca de 313 metros de comprimento existente no Porto de Le Havre, para os trabalhos finais de acabamento e pintura. No dia 22 de setembro, o transatlântico entrava pela primeira vez no estuário do Rio Gironde, atracando no cais do Porto de Pauillac, para embarque dos passageiros de sua viagem inaugural na Rota de Ouro e Prata.

Viagem inaugural - Sob o comando do capitão-de-longo-curso Raul Charmasson, veterano do Atlântico Sul (tendo sido desde o início dos anos 20 comandante do Lutetia e do Massilia), o L’Atlantique largou as amarras no dia 29 com destino a Buenos Aires, via escalas intermediárias em Vigo, Lisboa, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu.

Na manhã cinzenta e chuvosa do dia 9 de outubro, uma sexta-feira, o novo orgulho da Marinha Mercante francesa chegou ao Rio de Janeiro todo engalanado, atracando no cais da estação de passageiros da Praça Mauá.

A Sud-Atlantique havia programado uma série de cerimônias, marcando a ocasião, e uma multidão de pessoas aguardava o navio dentro e fora da estação. Foram muitas as autoridades brasileiras da antiga capital do País convidadas a bordo para o almoço oferecido por Paytell e Nicolle, respectivamente presidente e diretor-geral  da armadora.

Seguiu-se a visita de praxe às instalações do navio, obviamente bastante elogiadas. Terminando o embarque dos passageiros destinados a Santos e aos portos do Rio da Prata, o L’Atlantique saiu das águas da Baía de Guanabara por volta das 22 horas desse mesmo dia.

Doze horas mais tarde, sua silhueta desfilava pela primeira vez em frente à Fortaleza da Barra Grande do Porto de Santos onde, não obstante o dia chuvoso, centenas de pessoas aguardavam a chegada do transatlântico. Por volta das 11h15, o L’Atlantique atracou de boreste ao longo do cais do Armazém 16.

Sua permanência no porto santista foi bem curta, apenas quatro horas, o tempo necessário para o desembarque de 124 passageiros, muitos dos quais haviam embarcado no Rio de Janeiro, tais como Mário Simonsen e Roberto Suplicy. Em trânsito para Buenos Aires, encontravam-se a bordo 623 passageiros.

Chaminés - No início de fevereiro de 1932, ao término de sua terceira viagem redonda, o L’Atlantique foi recolhido ao estaleiro construtor para modificação de suas chaminés.

Fora constatado que estas, sendo muito baixas, não impediam que a emissão de fumo e cinzas das caldeiras viesse a cair no deck de esportes e nas áreas de popa. Procedeu-se, em consequência, a elevação da altura das mesmas por sete metros complementares, o que também modificou de maneira positiva o aspecto visual no navio.

A carreira do L’Atlantique foi bem curta. De setembro de 1931 a dezembro de 1932, realizou no total 14 viagens redondas entre a Europa, o Brasil e o Prata.

Incêndio e fim - Ao finalizar-se a que seria a sua última viagem a após o desembarque de seus passageiros provindos da América do Sul, o transatlântico saiu do Rio Gironde com destino a Le Havre, onde seria colocado em doca seca para trabalhos de limpeza do casco e revisão de máquinas.

A bordo, nenhum passageiro e tripulação reduzida de 230 homens sob o comando provisório do Capitão Shoofs. Esta seria a derradeira viagem do grande navio e Le Havre nunca seria alcançado. Às 3h30 do dia 4 de janeiro de 1933, as sirenes de alarme soaram a bordo, quando o transatlântico navegava nas águas da entrada ocidental do Canal da Mancha. Incêndio a bordo!

Originado no circuito elétrico de uma das cabinas de primeira classe (situada na Ponte E, próxima ao corredor do shopping), o fogo espalhou-se com rapidez fulminante, alimentado pelos diversos materiais altamente inflamáveis usados na decoração de bordo. Apesar da total mobilização na luta contra o sinistro (208 postos anti-incêndio), não foi possível à tripulação consolar as chamas e assim em poucas horas o navio ardeu de ponta a ponta e em todos os decks.

Consciente de que era o fim, o comodoro Shoofs ordenou o envio de mensagens SOS. Felizmente, os socorros não tardaram a chegar, pois o Canal da Mancha sempre foi área de intensa navegação e são dezenas os navios que nele entram ou dele saem a toda hora. Diversas embarcações chegaram às coordenadas do pedido de socorro.

A primeira foi o mercante alemão Ruhr, seguido do holandês Achilles e do britânico Ford Castle. Algumas horas mais tarde, já se encontrava ao lado do transatlântico em agonia um elevado número de rebocadores especializados no salvamento de alto-mar.

Abandono - A presença destas diversas embarcações permitiu a Shoofs dar ordem de abandono do navio, visto que este já apresentava forte inclinação para bombordo, podendo afundar de um momento para outro. Como todos os botes salva-vidas haviam sido inutilizados ou destruídos pelo fogo, à tripulação não restava outra alternativa do que jogar-se à água e nadar em direção dos outros navios ou dos botes que estes haviam arriado.

Dois oficiais, cinco homens da passarela de comando e o comodoro Shoofs foram os últimos a saltar, jogando-se da extrema ponta da proa e sendo recolhidos por embarcações.

Dos 230 homens e bordo, 210 sobreviveram, os restantes pereceram a bordo, vítimas do incêndio. Completamente destruído em seu interior, apresentando acentuada adernação (o hélice de boreste estando visível fora d’água), ardendo em toda a sua extensão e vazio de homens, o L’Atlantique derivou durante 36 horas pelas águas do Canal da Mancha, deixando uma enorme fumaça branca pelos ares.

As correntes marítimas inicialmente o levaram em direção da costa Sul da Inglaterra, aproximando-se apenas sete milhas (13 quilômetros) do Portland Bill, uma ponta de terra do Condado de Dorset.

Disputa - Na manhã do dia 6, o navio – fumegante e à deriva – foi avistado da costa inglesa por centenas de pessoas, tendo a sua volta vários rebocadores britânicos, franceses e holandeses, que esperavam a melhor ocasião para apanhar com seus cabos o que restava do transatlântico.

Para estes rebocadores, o que estava em jogo era a vultosa soma que ganhariam pelo trabalho de salvamento do casco. Após uma série de peripécias e disputas pouco elegantes entre vários rebocadores, acabou por intervir o lançador de minas Pollux, da Marinha de Guerra francesa, cujo comandante passou a dar ordens oficiais no trabalho de salvamento.

Chegou-se assim finalmente a um acordo entre os diversos mestres de rebocador e o L’Atlantique, ou o que dele restava, foi rebocado até Cherbourg, porto no qual entrou na madrugada do dia 7, completamente calcinado. Curiosamente, o único ponto em que a pintura externa resistira às fortes temperaturas foi onde se encontrava o nome do navio, nos dois lados da proa.

Perda (quase) total - O que se seguiu foi uma longa batalha jurídica entre as companhias seguradoras e a Sud-Atlantique, quanto à viabilidade de reconstruir o navio ou declará-lo perda construtiva total.

Três anos após a tragédia, os tribunais competentes deram ganho de causa à armadora e o L’Atlantique foi vendido para demolição a uma empresa britânica. Foi então rebocado para Port Glasgow. Surpreendentemente, constatou-se então que as máquinas propulsoras, as caldeiras e 1.000 toneladas de óleo combustível haviam resistido ao violento incêndio, podendo assim ser recuperadas.

A Sud-Atlantique recebeu como seguro a quantia de 2 milhões de libras esterlinas, que foram utilizadas para a construção do Pasteur, sucessor do transatlântico pedido. Este novo navio, completado em agosto de 1939, deveria ser utilizado na Rota de Ouro e Prata, porém, tal qual o Andes, sua viagem inaugural para o Atlântico Sul foi cancelada com o início das hostilidades na Europa, em 3 de setembro desse mesmo ano.

Artigo publicado no jornal A Tribuna de Santos em 1, 8 e 15/12/1996