II – CAVALEIRO DA ARTE
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Goulart de Andrade era fenomenalmente prodígio, porque ninguém trabalhou tanto de todos os modos, sem descanso. Desde menino, Goulart e
Fontes iam à Biblioteca Nacional, onde passavam horas esquecidas a compulsar, a consultar, a estudar, a devorar os Poetas.
Numa dessas vezes, Martins Fontes aconselhou a Goulart de Andrade a leitura do livro Émaux et Camées (Esmaltes e Camafeus) de Teófilo Gautier. Martins Fontes sabia-o de cor porque em São Paulo o lera, um ano antes, em companhia de
Amadeu Amaral.
Goulart, em certo ponto da leitura, no vasto salão da Biblioteca, gritou, porque encontrou nesse livro uma poesia que era semelhante na ideia a outra de sua autoria, julgando-se espoliado quando se tratava antes de uma afinidade eletiva com o
divino Teo.
Depois de formado, Goulart, engenheiro da Prefeitura, e Martins Fontes, médico auxiliar de Osvaldo cruz, encontravam-se às seis horas da manhã, sem nunca faltar, a caminho dos subúrbios, iniciando a faina, já barbeados, lavados, elegantes. Desde a
alvorada ao entardecer, faziam literatura. Para eles, o domingo era o dia útil, do sono equivalente ao de uma semana.
A ninguém Martins Fontes dedicou maior admiração, do que a que consagrava ao grande e querido José Maria Goulart de Andrade. Ele foi o mestre da gaia-ciência e do raro rimar, o artista da ensinança galante, único no Brasil.
Segundo conceituou o crítico Elísio de Carvalho, Goulart de Andrade era dos artistas mais bem dotados da sua geração; tipo acabado, completo, perfeito do parnasiano, era não só um dos mais extremados cultores da forma, tendo atingido em alguns dos
seus poemas à máxima perfeição possível, como um dos de mais rica imaginação, talvez o mais fulgurante e o mais original, trazendo à poesia brasileira inauditas e extraordinárias belezas. Rejuvenesceu velhos metros, antigos gêneros poéticos, jamais
praticados em nossa literatura, poemas de forma fixa – cantos reais, baladas clássicas, pantuns, canções, vilancetes, ritornelos, rondós, rondéis -, como novas e indefiníveis morte-cores finamente diluídas e distribuídas, com palavras e frases
imortais feitas de ouro e de sol, na justa e antiga medida.
Goulart de Andrade veio a Santos em fins do ano de 1928. Procurava se convalescer de gravíssima enfermidade. Martins Fontes, no dia dezenove de outubro desse ano, avisou-me da chegada que no dia seguinte era anunciada pela imprensa. Combinamos um
encontro no Hospital do Isolamento, domingo, ao meio dia, à hora do almoço.
Muni-me de lindo ramo de cravos e rosas. Transpus os entreabertos e largos portões de ferro do Hospital. Penetrei no frondoso parque, sob os esplendores dum sol de primavera. Os sapatos rascavam no cascalho da ruazinha. Uma viração do Sul remexia o
arvoredo do jardim, entre o remurmúrio do pipilar da passarinhada. Pelos arredores, silêncio de hospital.
Quando me acerquei do pavilhão central do parque, ouvi a voz de cristal de Martins Fontes que estava na varanda, de costas, firmando-se no gradil. Subi a pequena escada e vi à minha frente, sentado numa poltrona de vime, a falar baixo e calmamente,
o poeta insigne de Região Maldita.
Martins Fontes se aproximou e me empurrou até onde estava Goulart de Andrade. Com palavras carinhosas, fizeram-se as apresentações, arrematadas com a entrega do ramo de flores à esposa do poeta de Palmares, em nome dos intelectuais de Santos
e como singela homenagem ao invulgar talento de Goulart de Andrade. Martins Fontes volveu-me reconhecido olhar pelo gesto cavalheiresco e justo que deixou Goulart comovido, insuflando-lhe ânimo para a convalescença.
Martins Fontes, agora mais alegre, num movimento rápido de quem pede licença para se retirar, sumiu-se pela porta de entrada ao lado, para dar algumas ordens lá dentro. E Goulart de Andrade, a esposa e eu trocamos delicadas amabilidades. Falei dos
seus livros de versos e dos inéditos.
Goulart de Andrade, face e calva macilentas, olhar melancólico, informou-me que havia muitos anos não editava os seus manuscritos, vinha passar alguns dias a Santos como hóspede do seu queridíssimo Fontes, numa repousada convalescença, e
esperançoso de voltar aos trabalhos literários, de criação de novos poemas, de investigação de material para conferências, de revisão de livros esgotados. Eram trabalhos imensos para as suas fraquíssimas energias cerebrais, muito abaladas com a
doença implacável.
Tudo faria, depois de melhorar o estado de saúde, atalhou a esposa de Goulart de Andrade, ao nos levantarmos das poltronas de vime, a chamado de Martins Fontes, para o almoço. Nesse dia, enquanto o cardápio simples e frugal era lentamente
consumido, Goulart de Andrade sempre falou.
Martins Fontes, embevecido e contrariando a sua transbordante imaginação, o olhar fixo em Goulart de Andrade, ouvia as divagações do eminente acadêmico sobre a balada, canção de forma fixa, que surgiu entre os trovadores provençais do século XII,
época da cavalaria, gênero literário que seduziu os parnasianos brasileiros, dando-lhe variações de métrica e de rima.
Goulart lembrou o nome dos nossos melhores baladistas – Olavo Bilac, Maria Eugénia Celso, Oscar Lopes, Leal de Sousa, Aníbal Teófilo, Filinto de Almeida e Martins Fontes. Elogiou as baladas de Martins Fontes, aproximadamente quarenta e oito, que,
como as de Goulart, eram clássicas.
Veio à baila o Canto Real, poema de sessenta versos que celebrava deuses e reis, e em que Goulart era mestre exímio. Na literatura portuguesa não se encontram esses poemas de forma fixa, conquanto tivessem cultivado todas as modalidades da poesia
provençal.
Com a introdução, na literatura brasileira, dos poemas de forma fixa, o pantum, o rondel, a balada, o canto real, o vilancete e outros, Goulart de Andrade tencionava mostrar que a língua portuguesa, apesar de solene e orquestral, conquanto pouco
sutil, inadequada às meias tintas e às morte-cores da expressão, se vai pouco a pouco espiritualizando, e se fluidifica, patenteando-se que tanto é bloco de onde se esculpe a estátua rígida, como é incenso que nimba os altares com a sua perfumada
névoa movediça.
Depois do almoço, fomos passear pelo parque do Hospital. Goulart de Andrade continuou, em tom professoral, a discorrer sobre a idade média e o ideal da cavalaria. Martins Fontes ouvia tudo em fraternal silêncio, mas, na volta de uma ruazinha,
estacou de repente, virou-se para Goulart de Andrade, interrompeu-o e recitou:
Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas…
Goulart de Andrade sorriu do gesto imprevisto de Martins Fontes, para consolá-lo da velhice, não chorando a mocidade perdida, porque ele, Goulart, como as fortes e velhas árvores, dava sombra
fagueira aos poetas novos. E lembraram-se de Olavo Bilac.
Martins Fontes servia de cicerone, e, tomando a palavra, principiou por enaltecer o eminente sanitarista dr. Guilherme Álvaro, a quem Santos deve uma glorificação pela obra que realizou no Serviço Sanitário, em cuja administração se construiu, em
1913, o Hospital do Isolamento.
O Hospital ocupa, na Rua Osvaldo Cruz, antigo Caminho Velho da Barra, um parque amplo, arborizado e ajardinado, com seis pavilhões. Os quartos individuais, as enfermarias e todos os compartimentos estão aparelhados com móveis metálicos, e são
constituídos de solo, paredes e forros impermeabilizados, em que se arredondaram os ângulos. Nas janelas, colocaram venezianas e telas metálicas movediças que defendem a parte interna dos pavilhões contra moscas e mosquitos. O Hospital dispõe de
farmácia, lavanderia, desinfetório e, no fundo do parque, o necrotério.
Martins Fontes, então delegado de saúde interino em virtude de se encontrar doente o dr. Guilherme Álvaro, explicou que o Serviço Sanitário de Santos, além do Hospital, constava da Delegacia de Saúde, com sede na Rua do Comércio, e do Desinfetório
Público, na Rua Luísa Macuco.
Nesse domingo, terminamos com um passeio pelas praias de Santos, na companhia de amigos e admiradores. Dois dias depois, acompanhei Goulart de Andrade a uma ligeira visita à Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na Rua da Constituição, que desejava
admirar pelo conhecimento recente de que possuía multicoloridas decorações e belíssimos vidrais com motivos religiosos de grande valor artístico. Vagueou os olhos de alto a baixo, em silêncio circunspecto, concentrou-se numa prece fugaz, e, então,
falou-me em voz respeitosa, com desgosto, do ateísmo incompreensível de Martins Fontes, da firmeza dos princípios de filosofia positiva com que apareceu no Rio de Janeiro quando ingressou na Faculdade de Medicina, da memória prodigiosa que
assombrou o próprio Olavo Bilac, e da adoração da Roda Literária pelo menino-prodígio.
À noite, úmida e fria, de sexta-feira, no dia vinte e seis, fomos todos a um recital de declamação no Jockey Club, atual sede do Club XV. No cassino, perto da varanda, enquanto não se iniciava o recital, Goulart de Andrade me contou de que maneira
encontrara sinais evidentes da influência de Luís de Camões, o vate máximo de Portugal, na obra do poeta inglês Milton.
Estudava o assunto há vários anos, acumulando notas originalíssimas, para, então, escrever erudita monografia. Falou-me de muitos originais inéditos que esperava a benevolência dos editores ou qualquer amabilidade da Academia Brasileira de Letras.
Este foi o nosso último encontro. Assistimos, sentados na primeira fila de cadeiras do salão nobre do Jockey Club, ao recital da ilustre declamadora argentina, Aurea Narval, e que constou de poesias de Gonzalez Marin, Salvador Miron, Santos Chocano,
Amado Nervo, Vicente Neria, Roldan, Campoamor e Ruben Dario, assim como de Martins Fontes, Olavo Bilac, Afonso Schmidt, Heitor de Morais, Raimundo Correia e Olegario Mariano.
A assistência aplaudiu a declamadora e Martins Fontes deu-lhe a honra de beijar-lhe a mão em agradecimento da impecável interpretação da sua poesia Araçás, em que empregou a técnica da arte de dizer, dando inflexão de voz, expressão
fisionômica e gesticulação sóbria, perfeita.
Goulart de Andrade voltou ao Rio de Janeiro. Os seus padecimentos se agravaram. Martins Fontes ainda foi visitá-lo, voltando com desolador acabrunhamento para, mais tarde, esperar resignado a dolorosa notícia do falecimento do seu querido amigo e
companheiro, de quem, chorando, sofreu a tortura da saudade.
No adeus da despedida, invocando Goulart de Andrade, Martins Fontes percebeu que a mocidade desaparecia. Fielmente, Martins Fontes e Goulart de Andrade se conservaram unidos na Amizade durante trinta e seis anos. Agora, Martins Fontes o seguia sem
crença na imortalidade da alma, dando-lhe o coração. Não sendo nada, o que ele tinha de bom, Goulart de Andrade levou consigo – metade do que ele foi também morreu…
E desfilam as outras abelhas que se mataram a trabalhar fabricando a cera e produzindo o mel. Oscar Lopes era o elegante requintado, o sábio vidente e poliglota, cuja formosura viril impressionou a Joaquim Nabuco, que o nomeou seu secretário de
embaixada. Emílio de Menezes era o poeta da sátira e o mestre da arte parnasiana, para quem o artista devia ser absoluto e constante senhor da sua vontade, do seu discernimento, para graduar os resultados intencionais, e, entre a inconstância do
Gênio e o domínio do Talento, ele preferia a força capaz de deificar o homem, que se sente e se sabe criador.
Guimarães Passos era espirituoso, impagável, irresistível, possuía graça espontânea e ingênua.
Augusto Maia era a delicadeza, em tudo, dono de inteligência agudíssima e sentimentos artísticos, finíssimos, saboreava os versos, adorava a música, cultiva os afetos como flores, escrevia lindas cartas, versejava em francês.
Octávio Augusto era o filósofo, o poeta, o matemático, o esteta, uma enciclopédia viva, que ofuscava e aterrava pelo saber imenso daquele cérebro prodigioso.
Leal de Sousa era o poeta do astral, um apóstolo, um Mahatma, um iluminado, uma consciência estrelada. Bastos Tigre era o príncipe dos poetas cômicos, que possui tão admirável facilidade de fazer versos como as roseiras dão rosas, e que há anos
veio a Santos trazer a Martins Fontes o seu último livro de poesias – "Entardecer" -, do qual falamos, demoradamente, os três, no recinto da Biblioteca da Humanitária, durante o habitual encontro da manhã entre mim e Martins Fontes, louvando o
Mestre da Geração Parnasiana, apesar do desgosto em que o autor se encontrava com a péssima composição tipográfica.
Raimundo Monteiro era o poeta das mãos brancas e belas, como as das virgens liriais de Botticelli, feitas de alvinitências cetinosas, em que as veias fossem azuis, lembrando o céu pela palidez rósea, de cuja alvura se vislumbrava a transparência da
alma; Martins Fontes encontrou-o durante a noite de doze de maio de 1903, depois de uma briga, em que ele, Martins Fontes, Oscar Lopes, Leal de Sousa e Goulart de Andrade se envolveram, para, em seguida, resolverem todos cear no Café da Araponga,
onde Raimundo, o poeta de Volutas, recitou um hino à França.
Tomás Lopes era um poeta-príncipe, cronista de raro brilho, o mais perfeito continuador de Eça de Queiroz, e tinha a graça imprevista; e Martins Fontes, quando via rosas em flor, se recordava dele, porque, numa linda manhã de maio, quando
atravessavam juntos certa ruazinha do Jardim Botânico, no Rio, há anos, Tomar parou, descobriu-se e sorriu diante de uma roseira, louvando em linda prosopopeia as rosas, nas quais colocou um cartão de visitas com nome e endereço.
Heitor Lima era um artista habilíssimo que Martins Fontes conheceu, por intermédio de Olavo Bilac, no dia em que aquele surgiu na Confeitaria Colombo enaltecendo os Flamejantes vermelhos e guerreiros em flor, de Paquetá e que deviam plantar-se à
porta de cada quartel, como o Ipê à porta de cada Poeta, Humberto de Campos era o poeta modelar de Poeira, livro brilhante que lembra um rosal em flor.
São versos perfeitos, em cujos metros menores ele não desprezava a mais rara minúcia, trabalhados com pertinácia, lembrando a tenuidade das gazas quando lavrava o rondó, a balada, o soneto, o rondel e o pantum. Martins Fontes aconselhava-o a que
sempre trabalhasse porque a beleza apenas perdura nas forma, e burilando-se desinteressadamente o verso ter-se-á a Glória em paga dos sofrimentos desse martírio.
Nos ouvidos de Martins Fontes, depois da morte horrorosa de Humberto de Campos, na mesa de operações do Hospital, numa louca experiência cirúrgica, ressoava constantemente a sua voz, desde quando, poucos minutos antes de aspirar o clorofórmio, lhe
disse pelo telefónio – Adeus, Fontes! – Foi indescritível a amargura de Martins Fontes depois desta conversa interurbana, em tão dolorosa despedida, na certeza da hora da morte.
Aluízio Azevedo era o conversador admirável à hora dos jantares, entretendo a todos com as suas histórias de aventuras galantes, como Artur Azevedo era o pintor incomparável de cenas brasileiras contando com graça e naturalidade; e ambos sabiam
fazer versos que encantavam a Roda.
Alcides Maia era o esteta solitário, o sábio monge, enclausurado na tela da Torre de Marfim, a quem os da Roda fizeram orgiástica festa, em Ipanema, todos coroados de roas, tangendo liras floridas.
Martins Fontes saudou-o em versos anacreônticos, revivendo os momentos líricos da Grécia, no Parnaso, onde as musas cantavam para que as naias bailassem; assim, festejando a Alcides Maia, os poetas da Roda, reunidos na praia solitária, ao som das
ondas tumultuosas, também cantavam evocando a flauta pastoril de Araújo Viana; ouvia-se o riso aristofânico de Bastos Tigre e a lira de ouro do Apolo moderno – Goulart de Andrade; brilhava a cabeça loira de Malagutti.
Oscar Lopes, o artista ourives da rima, em cuja oficina ele forjava a palavra-aventurina, o vocábulo-ametista, bebia vinho de rubis. Leal Sousa, Raimundo Monteiro, Aníbal Teófilo e Martins Fontes, sob um loureiro em flor, modulavam cantos soprando
os caniços e as flautas. Depois, todos ofereceram a Alcides Maia uma lira de rosas, a quem preferia a voz das liras.
Bruno Barbosa figura entre os poetas da geração de Martins Fontes, mas dele somente se referia quando citava os caracteres impolutos e os talentos privilegiados, os que combatem pelos nobres ideais da humanidade. Se sempre, isto o dizia Martins
Fontes, sempre um gascão vale por toda a Gasconha, como proclamava Rostand, no Cirano de Bergerac, um cearense como Bruno Barbosa vale por todo o Ceará, Coração do Brasil.
Talento polímodo, por ser cearense, talvez, condensando o sofrimento da terra mártir, quanto mais pobre mais generosa, quanto mais supliciada mais querida, Bruno Barbosa, como ninguém, tem sentido a Dor humana, tem cultivado a piedade…
Segundo Pausânias, os gregos consideravam a Misericórdia a suprema consolação da vida. E Chateaubriand evoca esta lembrança, reconstruindo o altar à Piedade que se erigia em face do Partenão.
Bruno Barbosa é nesse delubro que oficia, crente, como Confúcio, de que, quanto mais o mundo se aperfeiçoar, mais se aproximará da Piedade. Martins Fontes preferiu silenciar ante as injustiças torpes que os políticos praticaram contra um honrado
juiz do povo…. |