A marcha para a liberdade: um episódio da Abolição
Em A Marcha (romance da Abolição), Afonso Schmidt descreveu a dura vida dos
escravos, e sua contribuição para a riqueza paulista. Explicou, ainda, a organização e o trabalho dos abolicionistas, como a campanha abolicionista
chegava até as fazendas de café, de onde os escravos fugiam, aos bandos, tomando o caminho de Santos, rumo ao quilombo do Jabaquara. Era chefe desse
quilombo Quintino de Lacerda e eram os escravos apoiados pelos caifazes, termo usado para designar os que
trabalhavam para a libertação dos cativos.
Como nas suas outras obras de fundo histórico, Afonso Schmidt desenvolveu intenso
trabalho de pesquisa, lendo muito, entrevistando testemunhas e historiadores, visitando os locais das ocorrências. O livro é escrito de forma viva,
possui trama interessante que consegue reunir os diferentes aspectos da época, procurando dar uma visão global da abolição paulista.
Em 1942 recebeu o prêmio Machado de Assis, de romance, na Academia Brasileira de
Letras.
Escolhemos uma reunião abolicionista em Santos e a descida da serra pela coluna
fugitiva com a passagem pelo Cubatão até a chegada ao Jabaquara. Este trecho mostra que devido à sua posição
geográfica, Cubatão também esteve presente na história fascinante da Abolição.
SCHMIDT, Afonso. A Marcha (romance da Abolição). Editora Brasiliense Ltda.,
s/d., p. 131/135 e 153/158
Santos (área do Valongo), em
rara foto de 1868
Nessa mesma noite, houve uma sessão na Sociedade
Emancipadora. Ficou assentado que os pretos deixassem o quilombo e se recolhessem de novo nas residências, nos sítios e até mesmo nos pobres
quartos em que moravam os caifazes. Mas não foi preciso dispersar o Jabaquara.
Ali pela meia-noite, os abolicionistas ainda conversavam junto às janelas da sede,
porque o calor estava asfixiante. O céu baixo. A lua cor de açafrão, desmanchada. O ar parado. Vinha do porto um cheiro de água choca. Oprimia a
todos uma impressão de calamidade iminente. Xavier Pinheiro debruçou-se na sacada e olhou a noite. As casas estavam com as portas e janelas abertas.
Os moradores tinham transportado colchões para a rua e dormiam ao relento, suando, molhando o lençol de algodãozinho. Logo depois, entre os lampiões
que piscavam no escuro, passou uma força da polícia local. Uma voz mal-humorada gritou para as janelas da Sociedade Emancipadora, em desafio:
- Vamos esperar a negrada na serra. Não vai ficar cabeça sobre ombro.
Outros riram.
Os abolicionistas correram para a sacada a ver do que se tratava. Ficaram apreensivos.
A polícia de Santos era de maus bofes. O governo mandava-a para o alto da serra, nos desfiladeiros, a fim de dar combate à coluna. Conhecedor dos
sentimentos generosos do Exército, o Sr. Conde de Parnaíba nunca lhe confiaria tal missão. Os contingentes da cavalaria, engenharia e infantaria
acampariam, com toda certeza, nas fraldas da serra; só tomariam conhecimento da repressão aos escravos depois de haverem agido convenientemente os
policiais e os capitães-de-mato...
A cidade recaiu novamente no silêncio. Os diretores da Sociedade Emancipadora foram
saindo aos grupos. Ali pelas três horas, os últimos tomaram dos chapéus e se foram. O Tião, que fazia as vezes de porteiro e zelador, ficou a apagar
os lampiões belgas, a correr os ferrolhos das portas. Os últimos a sair foram Xavier Pinheiro, Américo Martins e Júlio Maurício. Ficaram na porta,
trocando palavras que, para falar a verdade, não eram de entusiasmo. E estavam nessa triste expectativa quando alguns dos rapazes, que haviam
deixado os trabalhos do Diário de Santos, apareceram na esquina. Gastão Bousquet anunciou logo:
- O batalhão do Major Joaquim Baltasar partiu inesperadamente na direção do
Casqueiro!
Ninguém esperava aquilo. Que seria? O fato de haver partido à noite poderia ser tomado
como um meio de evitar o calor. No entanto, poderia ter solicitado trem especial, como era de costume. Sem que houvesse motivo particular para isso,
aqueles homens afastaram-se esperançados. O céu já empalidecia para as bandas do mar. E eles, para não pisarem os que dormiam em colchões sobre a
calçada, iam caminhando bem pelo meio da rua.
De fato, o batalhão de engenheiros recebera ordem de esperar os fugitivos nas fraldas
da serra. Como àquela hora não houvesse facilidade para se fazer o transporte da tropa em trem especial, o comandante resolvera vencer a pé as duas
léguas e tanto.
Era um passeio. Algumas horas depois da partida da polícia de Santos, o batalhão de
engenheiros dirigiu-se para as bandas da Filosofia e seguiu pela estrada de rodagem. O sol veio
encontrá-lo para lá da ponte do Casqueiro. Do mangue, vinha um bafo quente de noroeste (N.E.: noroeste é a denominação
regional dada ao vento quente que na Baixada Santista costuma soprar, procedente da direção Noroeste). A raizama estava
à mostra e por ela marinhavam caranguejos. Ouviam-se estalidos do tijuco. Flores grandes, de um amarelo enjoado, acompanhavam o sol.
Quando chegaram a Cubatão, o vento já se havia desencadeado. Os fios telégrafos
cantavam como harpas. Das vendas saíram caiçaras de chapéu grande e ficaram estatelados na estrada, para ver o batalhão passar. Houve também os que
fugiram pela cerca do quintal, com medo de recrutamento.
Barreira de Cubatão e a ponte coberta em 1826, em
tela de Benedito Calixto
Quando passaram o rio, onde havia uma ponte coberta e barreira,
o calor se havia tornado insuportável. Mais adiante, numa praça de casas grandes e chatas, cheia de capim alto, riscada de caminhos, o batalhão fez
alto a fim que os soldados bebessem água da bica. Duas pretas que ali estavam ofereceram os potes cheios e canecas de latão. Vacas que pastavam no
meio do largo ergueram a cabeça e olharam desconfiadamente para a tropa, depois mergulharam o focinho no capim. Nas cercas do pasto, os anus
equilibravam-se dando gritos agudos.
Logo depois da venda do Joaquim do Pico, a força atravessou um lamaçal, onde, por
ocasião das chuvas, as boiadas levavam horas inteiras a passar; assim mesmo, não era difícil um boi ficar atolado. Os boiadeiros sangravam-no ali
mesmo, atiravam os bofes à cachorrada e a carne era dada a quem quisesse. Quando o caminho estava mau e uma boiada ia passar, havia sempre quem
ficasse nas imediações a rogar praga nos bois...
Mais adiante, o major encontrou um mensageiro, a cavalo, que lhe entregou diversos
ofícios. Soube que uma força de cavalaria comandada por Gustavo Borba, tendo como oficiais Marcondes de Brito e Olegário de Moura, outra de
infantaria, comandada por constantino Xavier e Bezerra, haviam descido de São Paulo naquela mesma noite e se encontravam acampados na descida da
serra. Todos os comandantes levavam ordem expressa de impedir a passagem para Santos da coluna de fugitivos "ainda mesmo que fosse necessário usar
as armas".
Dom Joaquim Baltasar da Silveira, vendo que a estrada
do mar estava defendida, resolveu tomar o caminho que mais adiante virava à esquerda, denominado da Serra Velha. Depois de passar pela frente de
uns casebres, onde caiçaras assustados espiavam pelo vão das cercas, chegou à ponta do morro, em que havia um riacho de águas cor de ferrugem.
Passou a chamada casa do Ribas, que era uma das melhores do lugar, e margeou o espesso
bambual. Àquela hora o noroeste soprava com maior violência. Ao passar das lufadas escaldantes, o bambual vergava todo e estralejava, como um
fogaréu. O ar cheirava a folha socada. Diante deles, a serra estendia-se de um azul escuro, uniforme. Apenas uma ferida vermelha: o rodadouro. Era
ali que os bois escorregavam para o abismo e, no dia seguinte, a população ia fazer provisão de uma carne negra, que cheirava a tétano. E a serra
crescia a seus olhos. A distância era de veludo. A mão invisível do vento esgarçava aquele azul onde passava, as folhas iam mostrando o avesso,
mudando de cor...
O bambual ia ter numas paineiras. Aí começava a cerca de pedra seca, sem
reboco, que alcançava a casa velha, com sua porteira de varas, para seguir novamente até encontrar o segundo bambual que ia perder-se nos bosques
escuros da fralda da serra. Em frente à casa velha ficava o engenho, construído em 1842. Era todo de pedra, como uma fortaleza; um teto negro, de
quatro águas, cobria-o como se fora casca de tartaruga. Os beirais largos mostravam cabeças de vigotas, grades de caibros e ripas. A porta, muito
larga, dava acesso aos carros de cana. E na direção da porta aparecia a moenda onde em dias idos a cana entrava aos feixes, jorrando garapa nos
cochos, que se alinhavam na outra banda do edifício. Ao fundo, ficava a roda d'água. Entre a casa e o engenho, via-se o rancho dos tropeiros
(1).
Mapa O Cubatão em 1852 (clique para
ampliá-lo)
A casa velha era igualmente chata, de telhado igualmente escuro, mas no vão das telhas
haviam nascido alguns pés de fumo. À passagem da tropa, os carreiros fustigaram os bois e os carros rangeram mais fortemente, desimpedindo o
caminho. O pessoal da casa correu de onde estava para ver aquilo. O dono, um caiçara de barbas louras, a esposa e a filha solteira apareceram às
janelas; o filho trepou na meia porta e ficou ali, de olhos atônitos. Mas, Dona Maria sobressaltou-se:
- Nhonhô, não saia dai... Está ouvindo?
A força seguiu em direção da serra, indo guarnecer a estrada velha, por onde já não
passavam boiadas. Era nesse tempo um caminho esbarrancado, mostrando pedras e olhos d'água, entre samambaias; por ali andavam, com dificuldade
tomando notas, alguns engenheiros, empenhados no plano de captação de águas para a cidade de Santos. Mais tarde, deviam tomar a cachoeira do
engenho, destruir a propriedade, empobrecer a família por gerações e gerações... Sumida a tropa, ficou no engenho um certo receio, mas a vida
recomeçou. A guerra do Paraguai ainda não havia terminado de todo para os caiçaras; gente fardada queria dizer recrutamento...
Ao cair da tarde, os quatro comandantes, que andavam a passeio,
aproximaram-se do engenho. "Seu" Henriquinho (2) recebeu-os à porta do
edifício silencioso. Dali a pouco, estavam velhos conhecidos. E o homem explicava:
- Esta é a primeira casa que o negro fugido encontra ao descer a serra...
- E o senhor?
- Eu lhes dou sempre o primeiro prato de feijão e a primeira cuia
de café da terra da liberdade.
...................
Ilustração de Lima de Freitas para a edição polonesa de A Marcha - 1956
Reproduzido do livrete Perfil de Afonso Schmidt, de Henrique L. Alves
(1987, Prefeitura Municipal de Cubatão/Roswitha Kempf Editores, São Paulo/SP)
Amanheceu.
Sobre Santos pairava qualquer coisa de luminoso.
Os pretos caminharam para lá. Descendo pelos barrancos, arrastavam os pés inchados.
Contavam as chagas pelos gemidos. As foices carregadas ao ombro lampejavam a claridade amarelenta da manhã. Um ar quente, com cheiro de resinas,
passou-lhes pelo rosto, agitou a folhagem prateada dos velames, queixou-se longamente nos contrafortes; era o noroeste.
Salústio, que não pretendia exercer a sua pouca influência sobre os malungos,
acompanhou-os. Mais adiante teve sede, debruçou-se num córrego, ajuntou as mãos em cuia, e pôs-se a beber com ruído. Os outros, um a um, o imitaram.
Depois seguiram, num passo leve, de caçadores, parando a cada rumor estranho que lhes chegava aos ouvidos. A onça devia andar por ali. Mas era o
caminho. A mancha dourada que se via na distância era Santos, a liberdade.
Numa volta, viram um vultinho escuro a rolar pelo chão. Arrepiaram-se. O vultinho
perguntou:
- Já acabou a serra?
Salústio respondeu:
- Quase; mais um estirão e pronto.
Era Luzia, a preta que fizera a promessa de descer de joelhos a serra de Santos; tendo
ganho o leito de uma cachoeira, acabara por chegar à estrada que ela cortava, e durante dias realizara a aventurosa descida, sobre seixos, calhaus,
por gargantas e declives, atravessando atoleiros, riachos, poças de lama. Topou alguns viajantes; julgaram-na paralítica e mendiga, não lhe deram
atenção. Já nem parecia gente. As pernas eram uma chaga. As roupas foram ficando em farrapos pelo caminho.
Ao ouvir que a serra estava para terminar, fez um novo esforço e continuou a rolar,
dolorosamente, para aquela mancha luminosa que, pouco a pouco, se ia tornando mais viva.
Antes de terminar, a estrada se fazia larga. Havia um platô todo coberto de lírios,
sobre o qual árvores esqueléticas erguiam braços aflitos.
Uma voz fez-se ouvir:
- Alto!
Olharam em redor. Entre os lírios, perceberam uma linha de soldados de bruços no chão,
em postura de combate, com os fuzis apontados para eles e o olho parado na mira...
Sentiram-se morrer de medo. As mulheres não tiveram ânimo nem ao menos para fugir. Mas
os homens, num gesto instintivo, reuniram-se num grupo apertado e levantaram as foices, em atitude de defesa. Pareciam almas penadas e estavam
dispostos a lutar à morte.
A força da cavalaria era comandada, como dissemos, pelo Major Gustavo Borba, tendo
como oficiais Marcondes de Brito e Olegário Moura; a de infantaria por Constantino Xavier e Bezerra. Entre eles, já se havia combinado a maior
clemência para os fugitivos. Deviam deixar seguir, sem nenhuma oposição, o remanescente da coluna.
Constantino Xavier, muitos anos depois, contou numa carta o desfecho do episódio:
"Ramalho Borba parlamentou com os cativos, dizendo-lhes que podiam passar, pois nada
lhes aconteceria. Aqueles homens, mulheres e crianças que já estavam em atitude de resistência, mudaram logo e se ajoelharam dizendo:
- Sum Cristo, nhonhôs!
E continuaram a arrastar-se serra abaixo, com os pés sangrando..."
Ouviu-se, então, um queixume na sombra. Era Luzia. A preta, vendo tanta gente, repetiu
a pergunta:
- A serra já acabou?
Um inferior foi ver do que se tratava e respondeu:
- Já, mea irmã.
Então, ela procurou erguer-se, mas não conseguiu, porque as rótulas se lhe haviam
tornado de pedra. Assim mesmo, pôs-se em arco, levantou os braços, e bradou:
- Bendita seja Nossa Senhora do Monte Serrat, minha
madrinha!
Parecia o resto de uma árvore queimada; seus últimos andrajos foram arrepanhados pelo
vento, mostrando chagas espantosas.
E os escravos continuaram a marcha para Santos. Quando chegaram à planície,
encontraram um homem preto montado num cavalo branco. Era Quintino de Lacerda, que lhes trazia auxílios de toda espécie.
Menos de vinte fugitivos - conta Bueno de Andrada - conseguiram chegar a Santos.
Rancho dos tropeiros em Cubatão, em meados do século
XIX
Depois da ponte, a estrada aproximava-se da via férrea e prosseguia à sua margem. A
boiada de véspera tinha pernoitado no Cubatão e seguira viagem de manhã, pouco antes dos escravos. O barro parecia pisado de fresco; os rastros dos
bois ainda estavam a encher-se de água.
Os negros seguiam mais mortos que vivos. Quintino comprou dois jacás "de cobrir
pintos" e prendeu-os de um lado e outro do animal. Neles, acomodou quatro crianças, para descansar as mães. E conduziu o animal pela rédea.
Com a tarde chegaram ao Casqueiro. Nova surpresa para os fugitivos. A ponte
encontrava-se guardada por uma força de polícia, vinda de Santos, com a ordem do costume: não deixar passar os negros, prendê-los e remetê-los para
os fazendeiros, seus legítimos senhores. Comandava essa guarda um ex-sargento do Exército, correto e bravo militar.
O comandante deixou-os aproximar-se da ponte... Ouviu-se um toque de corneta... A
tropa formou... Os soldados calaram, com ruído, as baionetas...
- Alto!
Os fugitivos dessa vez nem pensaram resistir. Era demais. Estavam desanimados. Mas
Quintino de Lacerda não se pertubou. Ficara habituado a essas coisas. Desde 1883 que o governo mandava guarnecer a ponte do Casqueiro, a fim de que
os negros fugidos não chegassem a Santos. O episódio do preto Adão é assaz conhecido: o oficial insistiu de
arma na mão, em que ninguém passaria pela ponte, sob pena de morte... "Mas (ajuntou ele, em outro tom de voz) se quiserem passar aí pelo lado, não
tenho nada a ver com isso, pois as ordens que recebi se referem exclusivamente à ponte do Casqueiro..."
Desde que essa cena se deu com o Pai Adão e seus parceiros, ficou sendo uma espécie de
praxe; repetia-se, com luxo de detalhes, sempre que uma coluna de fugitivos pretendia atravessar o Casqueiro. Por isso, Quintino de Lacerda não se
preocupou demais com aquele aparato bélico.
- Meu sargento?
- Fale...
- A ordem é apenas relativa à ponte?
- Foi o que eu disse...
- E se os nossos irmãos passarem por baixo da ponte?
- Isso não é comigo; é com Nosso Senhor Jesus Cristo.
Não foi preciso dizer mais. Quintino de Lacerda não esperou e puxou o animal pelo lado
da cabeceira da ponte, descendo para o rio. Os parceiros o acompanharam, amedrontados. Lá embaixo, disfarçados em pescadores, havia caifazes de
Santos para os receber. Era uma flotilha abolicionista composta de embarcações miúdas, de diversos tipos, gente disposta sempre a oferecer os seus
serviços aos pacíficos retirantes.
Num instante, a flotilha fez-se ao largo e tomou o lado de São Vicente. O sol batia de
viés sobre o tapete arrepiado do mangue e a placa metálica, incandescente, do rio. Já muito longe, como a fome apertasse e a flotilha navegasse num
baixo, dois caiçaras se penduraram nas bordas de uma canoa e mergulharam meio corpo no tijuco. Com os pés, catavam no fundo uns mariscos grandes
como ostras e os atiravam em quantidade para os retirantes, que os abriam com uma caxerenguengue e iam comendo com satisfação.
- Que é isto? - perguntou Terêncio.
Salústio não sabia.
Um caiçara explicou:
- Amêijoa.
O preto repetiu inutilmente a palavra. Que lhe importava, afinal de contas, o nome? O
marisco era gostoso e vinha muito a propósito...
Quando aportaram em São Vicente, era noite. Fazia um luar de leite. Entre dois morros,
onde o mar era bravo, viram a iluminação das casas da praia.
Tintino, que era sergipano, lembrou-se da infância e puxou uma reza de macumba:
Santa Bárbara do céu,
São Jerônimo do mar,
Tanta grandeza na terra
E Deus em todo o lugar!
Os parceiros repetiram o estribilho, com voz profunda.
Os remos fendiam as águas negras do Tumiaru. As
estrelas dançavam no espelho do mar.
E chegaram cantando, cantando ao porto do Morro, de onde seguiram para o Jabaquara."
Porto Tumiaru ou das Canoas, em São Vicente, retratado
em tela de Benedito Calixto
NOTAS EXPLICATIVAS:
(1) Veja no
mapa O Cubatão em 1852, publicado por Costa e Silva Sobrinho no livro Romagem pela Terra dos Andradas, S.P.,
Livraria Freitas Bastos, 1957, p. 137, a localização do engenho junto ao rio Cubatão.
(2) Era Henrique Geraldo
Muniz de Gusmão Brunckenn avô materno de Afonso Schmidt. Daí, certamente, a emoção com que Schmidt descreve esta cena carregada por um sentimento de
injustiça. |