A campanha da Abolição
[...]
Em 1882 fazia um ano que se fundara a Bohêmia
Abolicionista, valente agremiação da juventude local, imaginada e organizada por Francisco Bastos, Antonio Augusto Bastos, Guilherme e Pedro de
Melo, Antonio Couto, Artur Andrade, Antero Cintra, Luciano Pupo e Eugênio Wansuít, aos quais se juntaram, depois, Paulo Eduardo e José Vaz Pinto de
Melo Júnior, Brasílio Monteiro, Joaquim Montenegro e outros.
Com ela surgira o panfletarismo violento, a pequena imprensa incendiária do
binômio Abolição-República, cuja audácia chegava às raias do delírio, a iniciar-se por órgãos revolucionários, escritos à mão, como O Embrião,
O Porvir e O Pirata, cuja tipografia era de Jacob Schalap, um rapazinho de S. Catarina, excelente letrista, dedicadíssimo à causa, e a
continuar pelas folhas de combate já então impressas, como O Alvor, O Piratiny, O Patriota e A Idéia Nova, as duas
primeiras redigidas por Guilherme de Melo, Antonio Augusto Bastos e Artur Andrade, O Patriota por Constantino Mesquita, com a colaboração de
Cândido de Carvalho e Alberto Souza.
A Bohêmia Abolicionista reunia toda a mocidade de Santos e existiu durante oito
anos - de 1881 a 1888 - quando se extinguiu com a realização do ideal que a gerara. Nunca teve uma organização regular, para não perder o caráter de
rapaziada e de "comando abolicionista". Às vezes tinha diretoria, pelo espaço de meses, logo mais funcionava sem ela durante longo
tempo; suas reuniões, porém, eram diárias e realizavam-se ora nos bancos dos jardins, ora no prédio onde funcionou o cine
Paramount, na esquina do velho Largo do Rosário - residência, naquela época, dos pais de Guilherme e Pedro de Melo,
integrantes principais do grêmio, e por isso mesmo muitas vezes impedido pela polícia, obrigada a isso pelas ordens especiais recebidas de S. Paulo.
A Bohêmia Abolicionista foi, dentro da beleza social de Santos, um dos mais
belos aspectos naqueles oito anos históricos, batidos de pestes e epidemias que não conseguiram, com o seu manto de pavor, abafar e arrefecer os
impulsos e entusiasmos altruísticos de todo o povo santista.
Dentre aqueles moços idealistas, sobressaía um deles, mais velho, com trinta e alguns
anos, mas com aparência de vinte e poucos, pernambucano, quase preto, que falava muito, em toda parte, sem o menor rebuço ou respeito às
conveniências, fazendo um comício em cada ponto onde parava, em contínuo e absoluto desprezo à vida e à liberdade, não deixando escravocrata em paz,
fosse de elevada posição ou da classe média. Era Eugênio Wansuít, que fora Imperial Marinheiro, um dos valentes da Armada Brasileira na guerra com o
Paraguai, aos 18 anos - circunstância essa que o fizera perder a noção do perigo e do comedimento durante as duas campanhas irmãs.
Foi aí, entre essa mocidade brilhante, que apareceu Vicente de
Carvalho. Podemos hoje afirmar que foi naqueles jornais que ele escreveu seus primeiros artigos, seus primeiros panfletos políticos e sociais.
Seu trabalho foi sempre entusiástico e inflamado, exaltado como Rubim César, o orador oficial da Bohêmia Abolicionista, descendente da raça
oprimida, que arrebatadamente concitava a mocidade a exigir a abolição imediata e a promover a fuga sistemática dos escravos para o
Jabaquara.
Na imprensa, a voz que melhor se ouvia, entre os moços, era a de Vicente de Carvalho,
mas nos comícios, nas ruas, onde houvesse povo para escutar um grito de rebeldia, era a de Rubim César, que impunha de pronto a sua eloqüência.
E enquanto a Bohêmia Abolicionista organizava espetáculos artísticos e
literários para com o seu produto libertar escravos, José André do Sacramento Macuco escrevia dramas que os rapazes apresentavam com aquele fim,
havendo grande afluência às sessões, demonstrando também, daquele modo, o apoio da sociedade local à obra humanitária dos moços, que era a obra
comum. Tais peças eram sátiras vivas e vergastadas solenes às autoridades escravocratas e aos donos de carne humana, que se negavam a apoiar a obra
de redenção, principalmente em São Paulo, Campinas e outras cidades.
"A sombra da cabana" foi a última peça que Sacramento Macuco escreveu para a
agremiação, marcando sua estréia a libertação de um escravo mulato, quase branco, cujo preço fora reputado pelo valor da renda total do espetáculo.
A carta de liberdade daquele homem foi-lhe entregue em cena aberta, no Teatro Guarani, e, nessa ocasião, enquanto
Sacramento Macuco e os rapazes abolicionistas recebiam delirante ovação, Rubim César pronunciava uma das suas mais belas, patéticas e violentas
orações.
Enquanto isso acontecia com os moços, os chamados "mais velhos" trabalhavam também, e
denodadamente, para o mesmo fim. Como sinal disso, quase na mesma ocasião, Américo Martins dos Santos e Ricardo Pinto de Oliveira descobriram,
amarrada ao mastro de um patacho que passava do Sul para o Rio de Janeiro, uma escrava branca, destinada à venda na Corte. Descobri-la e comprá-la
foram atos seguidos, cabendo a vários abolicionistas, em quotas proporcionais, a despesa de 600$000, preço altíssimo então, cobrado pelo seu
resgate.
Essa mulher teve depois um marido arranjado pelos idealistas de Santos e entre seus
próprios companheiros, que, por seu falecimento, deixou-a rica. Ela viveu, posteriormente, no estado de viúva do segundo marido, cercada de muitos
netos, em sua antiga propriedade de praia de Guaiúba, em Guarujá, sítio pitoresco e feliz, que fora de seu primeiro esposo. Um caso entre os muitos
verificados naquele tempo.
Tal como acontecia em São Paulo com a Farmácia de João Cândido Martins e Antonio
Bento, também em Santos uma farmácia era um dos pontos preferidos e naturais de reunião dos próceres abolicionistas e republicanos - a de
propriedade de Teófilo de Arruda Mendes, um dos bons elementos das duas campanhas -, onde se combinavam principalmente as medidas que se
relacionavam com o porto, junto ao qual ela ficava.
Velhos e moços, afinal, porfiavam em dedicação aos míseros sofredores das senzalas,
distinguindo-se entre eles alguns médicos que, segundo já foi dito, prestavam serviços profissionais gratuitos aos que chegavam doentes ou adoeciam
aqui, em qualquer ponto da cidade, como os doutores Lobo Viana, Manoel Maria Tourinho, Silvério Fontes, Sóter de Araújo e Henrique da Cunha Moreira,
os mesmos que tantos serviços prestariam à população em 1889, na grande e desastrosa epidemia da febre amarela, que devastou a cidade; além de
outros, igualmente beneméritos, cujos nomes escaparam à pesquisa.
Nesse cômputo de grandes cidadãos e
benfeitores, não podem ser esquecidos hoje, apesar da distância, Henrique Porchat (o filho), grande figura das duas campanhas e um dos futuros
chefes da política republicana santista; José Antonio do Amaral Rocha; o inolvidável e ardoroso Júlio Maurício; o grande Silva
Jardim, paladino da Abolição e verdadeiro apóstolo da República, celebrizado em todo o Brasil e falecido em estranho acidente, nas entranhas do
Vesúvio, em 1891 [46]; Francisco Martins dos Santos Júnior, continuador da
obra de seu pai; Júlio Backeuser; Guilherme Alves Souto [47]; José Torres
Rosmann; Júlio Ribeiro, o mineiro ilustre, filósofo eminente, jornalista vivaz e destemeroso, dono de excelente colégio na cidade, autor de uma das
mais célebres gramáticas portuguesas em curso do Brasil [48]; Carlos Escobar,
o denodado professor, cuja ação se processava em Santos, São Paulo e Campinas ou Moji Mirim, atendendo aos chamados de Santos Pereira ou do próprio
Antonio Bento; Martim Francisco, o extraordinário escritor, pensador, advogado e humorista, cuja palavra respeitada, temida, sempre satírica, era o
vergaste vivo e permanente dos erros sociais e administrativos de Santos e da Província, apontado como expoente do jornalismo santista nas duas
grandes jornadas libertadoras, dos homens e da Pátria; Afonso Francisco Veridiano, batalhador persistente e quase anônimo pela modéstia de que
revestia a sua ação e o seu próprio valor; Joaquim Fernandes Pacheco, um dos fundadores do Jabaquara, serventuário da Justiça; João Guerra, o poeta
e jornalista de tão grande atividade nos dois movimentos; José Ignácio da Glória, fundador de A Imprensa com Xavier da Silveira, farmacêutico
e ex-enfermeiro, considerado chefe do abolicionismo em São Vicente, ao lado do Coronel Lopes; e finalmente José Leite da Fonseca (o Juca Leite),
ardoroso irmão de Geraldo Leite, como este um dos mais brilhantes elementos da grande página santista e brasileira.
Entre os jovens, porém, não seja isso esquecido, dois sobressaíam, não só pela
atividade e desassombro com que agiam, mas, principalmente, pela idade e pela precocidade do seu talento, ambos nascidos quase no mesmo ano. Eram
Artur Andrade e Gastão Bousquet, dois meninotes de 15 anos, cuja voz exaltada e cheia de inspiração todo o povo ouvia com prazer e respeito. Ao
primeiro chamavam "o fundibulário imberbe"; simples empregado no comércio e dedicado às letras, produzindo vibrantes artigos abolicionistas na
imprensa de combate, principalmente no Diário de Santos e no Jornal da Tarde. Como amostra do seu estilo jornalístico, aí temos
o final de um artigo por ele publicado no Alvor, de 5 de outubro de 1884:
"Ou venceremos pelo Direito, ou venceremos pela Força!"
A morte roubou-o, porém, ao convívio do seu povo, dois anos antes da
vitória - mais pela força do que pelo Direito, como ele profetizara em 1886, vitimado pela febre amarela, um dos azorragues da fatalidade, que não
conseguira amedrontar a gente santista, durante os longos anos da campanha ativa, apesar de tantas vítimas ilustres que fez, a partir de Xavier da
Silveira [49].
Gastão Bousquet, poeta inspirado e jornalista nato, santista como Artur Andrade, era
como ele uma força precoce, discursava e escrevia com elegância; foi o continuador da luta do amigo e companheiro, assinando artigos cada vez mais
violentos contra o governo provincial e contra os proprietários de escravos, que, seja dito de passagem, nada queriam com Santos e seus
panfletários. Bousquet mudou-se mais tarde para o Rio de Janeiro, onde se tornou um dos vultos da imprensa da anticga capital brasileira, ligado aos
maiores jornais da cidade.
Num dos seus discursos, como num dos seus artigos no Diário de Santos, de
janeiro de 1886, Gastão Bousquet afirmou que o Brasil seria, infelizmente, o último país do mundo a abolir a vergonha do tráfico e da exploração do
negro, e que, naquele ano, de todos os países civilizados, somente a pequena Cuba, além do próprio Brasil, conservava aquela nódoa em sua história
social.
Nós sabemos que a Lei Saraiva, de 1885, fora uma quase inutilidade e uma espécie de
embromação a juntar-se às muitas, atiradas como favor e a custo ao espírito humanitário e ingênuo do brasileiro, e sabemos também que Cuba, em
1886, no mesmo ano, portanto, em que falara Bousquet, aboliu a escravidão em seu território, e, assim, a predição do pequeno santista de 15 anos
realizou-se in totum em nosso País.
É claro que nos referimos à Abolição oficial, porque em Santos e São Vicente ela já
estava realizada pelo povo e consagrada pelas Câmaras de ambos os municípios desde aquele ano de 1886, a 27 de fevereiro, ocasião em que se fundou
uma sociedade emancipadora tendo aquela data por título, destinada a resgatar os escravos de outros lugares.
Voltando a Artur Andrade, registremos que O Piratini, a 14 de março daquele ano
de 1886, publicava um sentido artigo sobre a morte do nobre menino, reputando-a uma perda irreparável para a sociedade santista e um motivo
real de luta para a campanha em que a sua figura juvenil e entusiasta conquistava novos adeptos para ela, a cada dia que passava. É que o povo
apreciava os barulhos armados por ele e Bousquet, quando viviam às turras com certas autoridades "de encomenda" ou apupando nas ruas os
escravocratas, levando-os ao ridículo ante as senhoras que passavam e ante toda a sociedade do tempo, realizando por todos os meios, normais e
anormais, a expansão da onda libertadora, cujo triunfo definitivo apenas Bousquet assistiria.
A carga contra o governo provincial, nos últimos anos da campanha, era terrível. Todos
os jornais publicavam artigos assinados e de redação que eram verdadeiros libelos contra a escravidão e contra o governo que a mantinha contra todos
os preceitos da Razão, da Humanidade e do Direito. São do Jornal da Tarde, de 9 de janeiro de 1885, por exemplo, estas palavras, que
rematavam brilhante artigo da redação:
"Como José do Patrocínio, julgamos que o Império só
subsistirá se tiver, como Carlos Magno, uma coroa de ferro, e esta só lhe pode ser fornecida pelos grilhões desse metal, quebrados nos pulsos de um
milhão de desgraçados".
Certa vez, haviam descido do interior, disfarçados dentro de pipas, como se fora vinho
destinado a Santos, cerca de dez negros de importantíssima família campineira (é inútil dizer que, nas estradas de ferro, quase todos os
conferentes, escriturários e chefes de trens eram abolicionistas), destinados à Pensão Brandina.
Em busca desses negros que já se achavam devidamente escondidos em casa de Geraldo
Leite (a casa de morada, que era no Paquetá), chegaram a Santos, inesperadamente, dois forçudos capitães-do-mato
acompanhados de numerosa força policial, autorizada até à violência pelo chefe de Polícia de São Paulo. Por denúncia de alguém, souberam eles do
local em que se escondiam os fujões, imprevidentemente conservados fora do reduto armado do Jabaquara, por se destinarem, como se soube depois, a um
sítio dos arredores, e a serem embarcados à noite ali mesmo, junto a um dos trapiches do bairro. A força surpreendeu a
Geraldo Leite e capturou os escravos em mira.
Na impossibilidade de uma reação a bala, que seria duplamente criminosa nas ruas da
cidade, formulou-se imediatamente, entre o povo e os chefes abolicionistas acorridos, um plano de fuga para os negros, e, quando a pequena carroça
que conduzia os escravos ia chegando à estação da estrada de ferro, cerca de quinhentos populares simularam um tremendo
motim, à frente da carroça.
O cidadão Fortes, um santista de Sergipe e excelente capoeira, como dezenas de outros
que existiam entre os abolicionistas da linha de frente, entrou de repente em tremendas rasteiras, rápidas e certas, secundado por outros em redor,
derrubando os soldados da captura e os capitães-do-mato, que já sorriam vitoriosos, enquanto a multidão confundia-se com eles, aos gritos, e Geraldo
Leite saltava para cima da carroça tocando os animais a galope, para junto do velho Porto do Bispo, onde uma embarcação,
já preparada, logo recebia os negros, carregando-os, à força de remos ágeis, para um dos navios franceses fundeados ao largo. Estavam livres sob a
bandeira da França; não havia mais remédio; o navio estava de partida e, que se saiba, não houve protestos diplomáticos... Os fugitivos desceriam
num porto do Norte do País, sob a proteção do consulado francês!
Quem poderia com tal gente? Em conseqüência desta e de outras evasões proporcionadas
por Geraldo Leite, em vapores franceses, a Companhia de Navegação, que sua firma representava, chegou a receber do Governo severas reclamações,
sempre inúteis, apesar das promessas sempre feitas de próximas e certas providências...
Foi nessa ocasião, mais ou menos, que o cidadão V.T.L., escravocrata de triste
memória, português, que já uma vez fora expulso do Brasil em processo regular, por transgressão à Lei do Tráfico, em seu sítio do Perequê, na ilha
de Santo Amaro, e que ainda vendia escravos pelas estradas do interior, organizados em filas ou "varas", sofreu novo vexame lá mesmo em
Guarujá, quando tentava receber novos escravos, clandestinamente chegados à costa paulista.
O caso é conhecido: o traficante correu quilômetros para não ser apanhado, indo
refugiar-se, aterrorizado, na velha chácara de Higino Botelho de Carvalho, pai de Vicente de Carvalho, no "Guarujá-Guaçu", que o recebeu de pena,
aconselhando-o a "mudar de vida" e a regenerar-se. Data daí, dessa última aventura escravista, a reabilitação do conhecido português, que tinha o
espírito do negócio e até com o diabo negociaria (como ele próprio afirmava). Encurtando a história dessa custosa regeneração, diremos que, hoje,
Guarujá, a cidade balneária por excelência, da Ilha de Santo Amaro, consagra-lhe uma rua.
De outra feita, em busca de alguns escravos da família Penteado, fugidos de São Paulo,
desceu o próprio delegado da capital, o dr. Lopes dos Anjos, chegando a Santos pelo trem das dez horas, acompanhado de quatro ou cinco policiais
escolhidos. Respeitável multidão de populares abolicionistas esperava-os na "gare" santista, e, quando a autoridade paulistana pretendeu
descer do vagão em que viera, uma enorme assuada fez-se ouvir, composta de xingações e assovios fortíssimos e "foras!" tremendos. Formava o
povo uma parede compacta, dentro da estação, havendo inúmeros populares armados de grandes cacetes, paus, pedras, bodoques e estilingues,
denunciando a vontade de uma reação violenta, caso o delegado insistisse em descer.
A polícia de Santos, a cuja testa estava um abolicionista disfarçado,
embora conservador [50], não teve coragem para fazer valer a sua autoridade;
os próprios soldados se negaram a praticar violências contra o povo. A decepção e o abatimento do dr. Lopes dos Anjos foi tamanha, que voltou para
dentro do carro, resolvido a esperar pelo trem das duas horas, com o qual realmente tornou a São Paulo, acabrunhado e sem ter podido cumprir a sua
missão.
Tal era o espírito abolicionista dos santistas e tal era a sua resolução no sentido da
liberdade dos pobres negros.
Refere ainda Castan [51]
que um dia chegou a Santos certo capitão-do-mato, chamado João do Carmo, em busca de um negro reputado precioso pelo senhor - o negro Terêncio, que
já se achava a bom abrigo, no Jabaquara. Resolveu o capitão pegador de escravo tratar dois carroceiros que encontrou e que diziam conhecer o
Terêncio, para atraí-lo para fora do quilombo, a um botequim de certa esquina, onde eles mesmos o amarrariam, recebendo, então, uma gorda quantia.
Tudo assente, na noite combinada estava o capitão-do-mato semi-oculto nas
proximidades, quando viu entrarem na locanda fronteira o Terêncio e os dois carroceiros portugueses, dirigindo-se então para o mesmo botequim. Assim
que ele entrou, o negro Terêncio fitou-o com altivez, e os dois portugueses, ao invés de agarrarem o escravo, agarraram-no, a ele, capitão, atando-o
de pés e mãos a um pau roliço que ali já estava guardado, apesar dos gritos e palavrões do homem. E lá se foi o capitão-do-mato, cercado de
acompanhantes cada vez mais numerosos, que o apupavam a cada instante, a caminho do Jabaquara, tangido com uma vara pelo próprio Terêncio, ouvindo
dos dois carroceiros estas palavras:
- Se quiser, pode gritar à vontade. Já estamos chegando ao Jabaquara.
Aqui, os que não são negros fugidos, são abolicionistas, como nós que o estamos carregando [52].
João do Carmo passou uns dias no Jabaquara, tomando algumas sovas, nem de longe
semelhantes àqueles que ele costumava aplicar aos seus capturados, mas suficientes para que nenhum capitão-do-mato se abalançasse mais a vir a
Santos, atrás de negros fugidos.
São do mesmo Castan, obra referida, as seguintes palavras:
"O bairro do Jabaquara, situado por detrás do morro da Santa Casa, era o refúgio dos
míseros negros escapos às fazendas. Eles trabalhavam na cidade, como carroceiros, ensacadores de café etc. etc., sendo protegidos até por alguns
filhos de fazendeiros, escravocratas, que, influenciados pelo meio, vivendo em Santos como caixeiros no grande comércio do café, se tornaram
abolicionistas.
"No Jabaquara era chefe o negro Quintino de Lacerda,
filho do Ceará [53], ex-escravo da família Lacerda Franco, da qual, parece,
tomou o sobrenome, e que, nos primeiros tempos da República, quando o voto ainda era respeitado, foi pelos brancos eleito vereador à Câmara
Municipal de Santos."
Voltemos porém aos acontecimentos da rotina abolicionista. Três elementos se
distinguiam bastante, nas providências da Abolição: Joaquim Fernandes Pacheco, um dos fundadores do Jabaquara, Afonso Veridiano e
Júlio Conceição - este um dos financiadores do quilombo, em cujo escritório comercial tinha assento e base de operações o
notável Santos Garrafão, quer trabalhando pela colocação dos novos negros chegados, quer provendo suas necessidades ou ainda concorrendo para
os resgates amiudados que se efetuavam, sendo que Júlio Conceição, depois Presidente da última Câmara do Império e grande benemérito da cidade por
ocasião da epidemia de febre amarela de 1889, fazia parte da famosa Confraria de Nossa Senhora dos Remédios, a suprema instituição abolicionista de
Antonio Bento, de que restam hoje, guardados como relíquias pelos raros possuidores, os diplomas conferidos e assinados pelo chefe supremo do
movimento a todas as suas figuras eminentes.
Júlio Conceição, nascido em Piracicaba a 12 de março de 1864, filho dos
barões de Serra Negra, viera para Santos aos 18 anos, exatamente em 1882, quando se acabava de fundar o Jabaquara. Filho de fazendeiros de café,
natural seria que fosse um escravocrata; no entanto, aderira de pronto ao movimento libertador dos cativos, logo aparecendo como um dos bons valores
da causa, apoiando pessoalmente e com a sua bolsa bem nutrida, os passos dos principais abolicionistas, especialmente o Santos Garrafão, a
quem deu mesa e estabelecimento em seu próprio escritório comercial de café [54],
apesar de conservador.
Sua importância social, mercê das razões financeiras e genealógicas que apresentava,
cresceu muito depressa em Santos, e em 1887, era eleito vereador, com apenas 23 anos; em 1889, com 25, já era Presidente da Câmara Municipal,
assistindo nesse alto cargo à Proclamação da República e à funesta invasão da febre amarela, naquele mesmo ano, a maior de todas as pestes que
assolaram Santos até então. Tão grandes foram naquele transe sua coragem e sua dedicação à causa pública, ao lado de outros vereadores, chegando a
ir com eles para o cemitério a abrir valas para os enterramentos em massa, que os republicanos passaram a respeitá-lo e a estimá-lo, a ponto de
parecer também ele um republicano.
[...]
Notas:
[46] A grande ação de
Silva Jardim está melhor descrita adiante, quando tratamos objetivamente do movimento da República. Os amigos do grande republicano nunca aceitaram
a casualidade do acidente trágico que o vitimou, dando-lhe, aliás, uma invejável e monumental sepultura, que a República decerto não lhe daria no
Brasil...
[47] Guilherme Souto foi
com Américo Martins dos Santos vereador republicano eleito para a Câmara Municipal de Santos, na última legislatura do Império (1887/1889). Logo ao
princípio da mesma legislatura entrou mais um republicano: o padre Francisco Gonçalves Barroso, que era suplente, e ao fim dela um quarto
representante republicano, que foi Antônio Carlos da Silva Teles, eleito na vaga de João Manoel Alfaia Rodrigues Júnior (conservador).
[48] Júlio Ribeiro morreu
tuberculoso e em extrema miséria, sob o vexame moral de se ver sustentado pelos amigos. Sua sepultura, na necrópole do Paquetá, sem dúvida imponente
e também custeada pelos mesmos amigos, nunca foi cuidada pelo Poder Público. É triste ser realmente grande e realmente sábio neste país... onde a
ordem natural dos valores se acha total e criminosamente invertida, numa inadvertência dos governos que há de custar, decerto, o caos ao Brasil.
[49] Guilherme Álvaro, o
notável higienista, sacrificado ao dever e ao apostolado em que transformou esse dever de chefe sanitarista de Santos, em seu importante livro A
Campanha Sanitária de Santos, e Carlos Victorino, em seu já citado trabalho Reminiscências, mostram bem o que era Santos nesta época e
até muito tempo depois, descrevendo ao vivo o ambiente urbanístico-sanitário da cidade dos lamarões, batido de pestes, sacudido de epidemias
devastadoras, que afugentavam os estrangeiros pela violência e pela constância, levando-os a residir em S. Vicente e pelos arredores, até na praia
do Góis e na ilha das Palmas, outros ainda em São Paulo, sendo por isso ainda mais admiráveis, esses dois movimentos conjugados - da Abolição e da
República -, aqui descritos, quase inacreditáveis num tal meio, numa tal época e em tais circunstâncias.
[50] Era Manoel Galeão
Carvalhal, que logo depois se tornaria também republicano, abandonando o Partido Conservador.
[51] Os fatos relatados
por Castan foram confirmados ao autor desta obra, não só por seu pai - Américo Martins dos Santos - falecido em 1931 aos 80 anos, como também por
Júlio Conceição, Feliciano Bicudo, João Salerno e outros contemporâneos, falecidos muito depois.
[52] É evidente que as
palavras ouvidas eram outras, bem mais portuguesas, e bem mais fortes. Todos os antigos as conheciam.
[53] Já vimos que Quintino
era sergipano. Américo Martins dos Santos, que era seu compadre e seu melhor amigo, o afirmava. Aliás, os sergipanos sempre foram muito mais
numerosos e comuns em Santos.
[54] Júlio Conceição foi
nosso companheiro na fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, em 19/1/1938. Nesse mesmo ano, poucos meses mais tarde faleceria, aos
74 anos de idade. É desse grande homem, figura histórica de Santos, o maior elogio que possuímos a este Capítulo da nossa obra, elogio escrito,
longo e bem pensado, em que Júlio Conceição se declara absolutamente fiel àquela época e naquele meio descrito. É um dos grandes confortos
recebidos. |