O memorialista Ayres Coutinho conta que a história da capela começou no século 19. As procissões, entretanto, só começaram na década de 1920
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
PROGRESSO
Cidade viveu drama religioso igual ao da novela Desejo Proibido
Como na fictícia cidade da novela, Cubatão também viveu o conflito entre o progresso e a religiosidade
Flávio Leal
Da Redação
Um dos temas centrais da novela Desejo Proibido, exibida pela TV Tribuna, é a oposição na cidade à destruição da gruta onde fica a Virgem de Pedra, santa
que tem a devoção dos moradores de Passaperto, cidade fictícia criada pelo autor Walther Negrão. A destruição do local onde a Virgem de Pedra surgiu para a passagem de uma linha férrea permeia toda a trama e o conflito entre os personagens.
Em Cubatão, a chegada do progresso também afetou a fé da comunidade. Foi com a construção da primeira unidade que deu origem ao pólo industrial local: a Refinaria Presidente
Bernardes de Cubatão, da Petrobrás, que encampou um trecho de pé-de-serra onde ficava a Capela de São Lázaro, surgida de um cruzeiro nos anos de 1850, construída na década de 1950 e que ficou quase sem visitas de fiéis até 1971, quando foi
totalmente demolida e a imagem do santo sumiu.
As coincidências entre a fictícia Passatempo (N.E.: SIC: Passaperto) e Cubatão, no
entanto, param no conflito entre religiosidade e progresso. Ao contrário do que acontece na cidade da novela, não houve muita resistência entre os moradores de Cubatão à época ao empreendimento, acolhido como a oportunidade do recém-nascido
município sair do ostracismo econômico.
Em meados do século passado, apenas três empresas importantes estavam na cidade, a Santista de Papel, a Fabril e a
Anilinas, além da hidrelétrica Henry Borden. O restante da população vivia de um minúsculo comércio e de uma produção de banana decadente em
qualidade e quantidade.
Memória - O memorialista Ayres Araújo Coutinho, de 84 anos, português de nascimento, mas morador da cidade há 80 anos, lembra que a procissão de São Lázaro, da qual participou desde a
infância, era uma grande festa da cidade. A imagem do santo deixava a pequena capela na Raiz da Serra e seguia em procissão até a Igreja Matriz, na Avenida Nove de Abril. "Formavam-se filas, de
dois em dois, com os fiéis carregando velas, que chegavam a ter dois quilômetros de extensão pela Estrada Velha", lembrou Coutinho.
José Gouveia, memorialista já falecido e parceiro de Ayres nos registros sobre Cubatão, contava que dias antes da festa "saía uma banda de música de porta em porta,
recolhendo esmolas dos portugueses para a compra das prendas. Colávamos bandeirinhas de Cubatão até a Raiz da Serra, ao longo da Estrada Velha", conforme escreveu.
A história da capela, real para muitos, e lenda para outros, remonta ao século XIX. Um casal de leprosos teria se instalado no pé-de-serra e, já muito debilitado, não conseguia coletar frutas ou
outros alimentos para a subsistência. Cambaleantes, conseguiram chegar à Fonte do Sapo, o centro do povoado. Comovido, Francisco Miguel Couto, membro da família mais influente da localidade, deu porções de arroz, carne seca e farinha aos doentes e
mandou que voltassem outras vezes para pegar alimentos.
"Como o casal não retornava, Francisco decidiu conferir se ainda vivia. Adentrou à mata e encontrou o homem morto, já seco, sobre o túmulo da mulher, que teria morrido primeiro", contou Coutinho. O
mesmo Francisco teria ficado gravemente doente e prometeu que, caso o casal conseguisse a sua cura junto a São Lázaro, que a tradição ligou à lepra - daí o termo lazarento - iria construir a capela no local onde já havia o cruzeiro e velas eram
acesas pelos moradores do povoado.
Curado, Francisco cumpriu a sua promessa e ergueu no local uma pequena capela na qual instalou uma imagem do santo vinda de Portugal. Coube à filha dele, Brasília, trazer a imagem da Europa, onde
desembarcou no porto-geral de Cubatão de uma canoa com o santo no colo num dia de grande festa para Cubatão, conforme conta a tradição oral do município, hoje representada por Ayres Coutinho. As grandes procissões teriam tido início somente na
década de 1920, partindo de uma capela também construída pelos Couto. |
Ayres Araújo Coutinho Ayres Araújo Coutinho veio de Portugal com a mãe e do porto de Santos foi direto para Cubatão. casado, com três filhos
e uma neta. "A vida aqui era muito dura. Só havia mangues, muitos mosquitos e a malária, que chamávamos de maleita, atingia a todos", lembrou o aposentado, que foi acometido pela doença "várias vezes".
Em 1940, ingressou como funcionário da Anilinas, fábrica de produtos químicos onde hoje fica o parque de mesmo nome. Saiu em 1965, quando a empresa estava prestes a falir. Exibe com
orgulho a carteira de atleta dos Jogos Abertos do Interior, de 1951, disputados em Santos, quando integrou o time de voleibol, a primeira equipe esportiva do recém-nascido município (1949).
Memorialista e historiador por vocação e oportunidade ("vi tudo o que aconteceu aqui nos últimos 80 anos"), Coutinho cuidou da réplica da capela de São Lázaro erguida no Parque Anilinas no início dos anos de 1990,
mas que ficou sem santo até 2003, quando uma nova imagem foi trazida de Portugal, com a ajuda de Maria Albertina, conhecida como Dona Nenê, que providenciou a vinda de um novo santo, como exigiram as autoridades
católicas locais.
A festa foi realizada, desde então, no domingo mais próximo do dia 17 de maio, mas já não foi realizada neste ano. Coutinho foi demitido da Cursan, empresa da Prefeitura, da sua função de zelador da capela e
memorialista que contava esta e outras histórias aos visitantes.
A antiga imagem, ainda segundo Coutinho, foi encontrada por moradores das Cotas próximo ao que sobrou da capela demolida, sem cabeça, mas acabou desaparecendo novamente na Raiz da Serra.
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria |
Lázaro São Lázaro é um personagem bíblico descrito no Evangelho segundo João como um grande amigo de Jesus, que o ressuscitou quatro dias
depois da sua morte, quando Jesus chegou à localidade de Betânia. Era irmão de Marta e de Maria, que escreveram a Jesus contando da doença do irmão.
O nome Lázaro corresponde ao hebraico Eleazar e significa literalmente "Deus ajudou". Depois de ressuscitado, Lázaro teria se dirigido para a Provença, na França, onde se tornou bispo de Marselha.
Foi só na Idade Média que ele se tornou, possivelmente por equívoco histórico, padroeiro dos leprosos, por associação à parábola "O homem rico e Lázaro", do Evangelho de Lucas (16, 19-31). Este sim, um homem
maltrapilho e associado a doenças. |