Eleito Intelectual de 1963, Afonso Schmidt tem nas mãos a estatueta Juca Pato, ladeado
por José Luiz Pasin e Henrique L. Alves, em 1964
Foto da capa posterior do livrete Perfil de Afonso Schmidt, de Henrique L. Alves
(1987, Prefeitura Municipal de Cubatão/Roswitha Kempf Editores, São Paulo/SP)
Cubatão do futuro
A geografia do vale de Zanzalá - Frei Gaspar descreve Martim Afonso subindo para São
Paulo Pelo "Porto de Cima" de Piaçagüera, através do Caminho de Índios depois mandado fechar por Mem de Sá (N.A.:
Memórias de Frei Gaspar, pág. 175-176). A propósito, "porto abandonado" é exatamente o que quer dizer Piaçagüera.
E Afonso Schmidt, como vimos, relata João Ramalho
atravessando a serra de Paranapiacaba pelo caminho supra-citado. Trata-se da antiquíssima trilha dos Tupiniquins, que sobe pelo vale do rio Mogi,
posteriormente utilizada pela estrada de Ferro Santos-Jundiaí, e que também se constitui no vértice mais alto da região focalizada pelo escritor
nesta outra obra: é o extremo de Zanzalá.
Vejamos a descrição do vale do Zanzalá, sintetizando uma passagem que integrará
possivelmente uma das primeiras grandes obras de ficção científica da literatura brasileira. Zanzalá teve o
primeiro capítulo publicado no ano de 1928 (N.A.: "O Homem Silencioso" foi publicado no jornal Estado de São
Paulo em 28 de fevereiro de 1928). Em 1936, fez-se uma primeira edição, que ficou quase desconhecida
(N.A.: publicada no Suplemento em rotogravura com ilustrações de Moura). Em 1949,
adicionando-lhe algumas partes, Schmidt veio a publicar, em edição popular, outra vez Zanzalá. Esta última edição,
talvez a preferida pelo autor, está aqui em minhas mãos. Como descreve Afonso Schmidt esse Vale de Zanzalá, porém?
O vale de Zanzalá - "hoje é um imenso funil... A parte central é constituída por uma
planície triangular que, espremida entre montanhas, vai afilando e subindo à proporção que penetra pela serra dentro. Esse vale, há cem anos" - no
caso, Schmidt faz referência a 1928, pois Zanzalá se passa entre 2026 e 2030 - "era coberto de bananais. Quando o
Zanzalá chega - sempre num leve aclive ao alto da serra, já não passa de um simples valo com o seu fio de água no centro, sobre o qual florescem em
todas as estações os últimos lírios do brejo". (Atentem para a freqüência com que o lírio aparece nos trabalhos de Afonso Schmidt, e, da mesma
forma, as flores em geral). "Mas quem dali olha para baixo vê as duas muralhas fugirem uma de cada lado, deixando no meio aquela planície azul na
qual caberia uma série de cidades" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 32).
Na parte mais baixa do vale, teríamos uma extensão aproximadamente de duas a três dezenas de quilômetros.
Reprodução de poema de 1910 de Afonso Schmidt,
na capa posterior do livrete Perfil de Afonso Schmidt, de Henrique L. Alves
(1987, Prefeitura Municipal de Cubatão/Roswitha Kempf Editores, São Paulo/SP).
Significação de Zanzalá, ou de Zanzalá como Cubatão do futuro - Que quer dizer
Zanzalá? Diz o escritor, em Menino Felipe, que "o nome lembra Zahar-alah, flor de Deus, ou Zahar Zelá, flor de altura
(N.A.: Menino Felipe, Afonso Schmidt, pág. 59), devendo ser a expressão com que os pretos
muçulmanos, que vieram como escravos para o Brasil, designaram a aleluia (recordem que a aleluia aparece igualmente naquele
outro poema em que Afonso Schmidt canta como era seu berço, Cubatão), "árvore que viceja nos pontos mais altos da serra e que, no mês de março,
pela Quaresma, pode ser vista de longe, como pincelada de ouro" (N.A.: Menino Felipe, Afonso Schmidt, pág. 59).
A grande metrópole cubatense - Todavia, o Zanzalá que aparece na obra do mesmo
nome é, inequivocamente, como já concluímos ao descrever-lhe a geografia, Cubatão. O Cubatão do futuro, é evidente. O Cubatão do futuro é um vale,
uma grande metrópole, uma comunidade dominada pela ciência e pela técnica, mas que, com a música e a arte, não se deixou absorver pela máquina -
isso no final do milênio e a partir do ano 2000.
Aspectos urbanísticos de Zanzalá-Cubatão, ou de Cubatão-Zanzalá - Afonso
Schmidt, em Zanzalá, enumera grandes avenidas, longas artérias como a extensa e magnífica Avenida Jabaquara, com
seu "asfalto negro e luzente" e inúmeras ruas. Sete estradas sobem a serra. As praças são descritas regurgitando
de povo, "duras de gente". Tem-se a impressão imediata de uma grande e bem desenvolvida metrópole.
Quanto a transporte, Cubatão está bem dotada, já que possui duas rodoviárias, uma no
Parque Ângelo Souza e outra no Parque Fábio Montenegro. Aeroportos, também tem dois: o Xavier da Silveira e o João Guerra, onde, em ocasiões
extraordinárias da vida da cidade, chegaram a pousar ônibus, galeras e comboios aéreos cheios de turistas. Entre os palácios e monumentos, descreve
Afonso Schmidt o do Instituto Sanitário, que com 76 andares e a sua cúpula característica, "parecia mais alto do
que a serra".
Em grande número avultam também outros estabelecimentos públicos, cujas silhuetas se
erguem sobre o "costão de barro vidrado". Há uma pirâmide gigantesca, com "200 metros de altura"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 34), acabada de construir "no primeiro
minuto do ano 2000" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 34), onde
se encontra instalado um museu geológico, de "salões retilíneos, providos de uma iluminação que lembra a do sol, mas que não produz sombras"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 34).
Chama a atenção do observador a série de edifícios de apartamentos, com "70 andares,
espalhados pelos recessos da serra", que "assinalam outros tantos núcleos de população" (N.A.: Zanzalá e Reino do
Céu, Afonso Schmidt, pág. 34).
A maioria das casas, no entanto, são pequenas, indicando "inteligente conciliação
entre a cabana rudimentar e o apartamento ultra-confortável" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág.
12), sendo constituídos de "papelão especial, montáveis com a maior facilidade, mediante encaixes e parafusos
numerados" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 35). Zanzalá
apresenta, assim, o quadro de um formigueiro humano, de uma metrópole densamente povoada.
Aspectos administrativos de Zanzalá-Cubatão, ou Cubatão-Zanzalá - Falemos,
agora, da Prefeitura. Como será a Prefeitura de Cubatão no milênio vindouro (N.E.: 3º milênio)?
Conforme Afonso Schmidt, a Prefeitura de Cubatão mantinha a mais vasta e desenvolvida rede de "serviços municipais que se desdobravam ao infinito"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 35).
Por sinal, ao referir-se a tais serviços, só menciona os que atualmente estão sob a
responsabilidade da Coordenadoria de Educação, Cultura, Esportes e Turismo, e, para alegria do coordenador de Saúde e Promoção Social, os que estão
na sua área.
Perdoem-me, nesta altura, por deter a atenção exatamente no setor que ora me
corresponde em Cubatão: "das mais originais e extensas era a organização das escolas municipais. Com seus 50 pavilhões rústicos, eram de fato
estabelecimentos de grandes proporções. Existia uma escola municipal em cada distrito". Nos fundos de cada pavilhão escolar havia um outro, de
residência dos alunos, "contando numerosos vigilantes e demais auxiliares" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso
Schmidt, pág. 40). As refeições eram servidas em largos alpendres, "floridos de jasmins do Imperador"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 40), percebem que detalhe curioso?!
A prática da educação física fora igualmente prevista. Logo "à primeira hora do dia"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 40), - (pois as escolas
funcionavam em horário integral, aspiração que temos e talvez algum dia possamos realizar em Cubatão) - ao toque da sineta, os alunos deveriam
atravessar a nado a piscina existente no próprio pavilhão.
A parte da manhã, os alunos passavam-na no trabalho da terra ou na agricultura,
provendo assim o Entreposto da Escola, que se encarregava do "fornecimento de verduras e legumes à população" (N.A.:
Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 38). Que interessante! Neste Zanzalá schmidtiano, a escola não dá
apenas o alimento educativo e cultural, mas ainda o material.
À tarde, "as crianças tinham duas horas de descanso e estudos, findas as quais iam
para as classes estudar nos livros. As professoras sucediam-se de acordo com as matérias e, ali pelo entardecer, todos saíam num tumulto de festa"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 41).
Voltaremos a enfocar brevemente outras áreas da Coordenadoria, mas, para levar mais um
tanto de contentamento ao nosso Dr. Pedro Tosta de Sá, veremos como está a Saúde.
Já mencionamos o Instituto, com seus numerosos andares e cúpula característica.
Trataremos agora do Departamento de Saúde, instalado num edifício de oito andares e parecendo "fincado no pendor de um morro"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 39). Os médicos de serviço, depois de
feito rápido exame nos pacientes, encaminhavam-nos aos especialistas. "A Medicina havia-se especializado ao infinito" (N.A.:
Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 51), segundo Schmidt. Os professores de Medicina, no entanto, não
serviam em nenhuma clínica do distrito.
Regressemos à Coordenadoria de Educação, Cultura, Esportes e Turismo. "Quando se fazia
mister pesquisar sobre novos vocábulos" - vale a pena registrar - a tarefa era entregue "ao Departamento de Artes e Cultura, onde 140 poetas
ganhavam o pão nosso de cada dia" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 46).
Existiria um Instituto de Cultura, que promovia espetáculos e festas populares,
notadamente teatro ao ar livre. Como era este teatro? O teatro de Zanzalá era um verdadeiro estádio, "com lotação de 40.000 espectadores"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 42) situado na parte mais estreita do
vale. Era nesse local que se realizavam as grandes reuniões culturais do "distrito" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu,
Afonso Schmidt, pág. 42) de Cubatão. (Anotem esta contradição do livro). "Geralmente, o espetáculo começava por uma das
numerosas competições esportivas que sacudiam o entusiasmo dos moços... Seguia-se uma conferência sobre arte, ciência, religião etc. Terminava a
reunião com uma peça clássica, bailados e assim por diante" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág.
42).
Os nossos vereadores, com freqüência que muito tem alegrado ao Dr. Zadir Castelo
Branco (N.E.: nesse e em outros pontos de sua conferência, são feitas referências a autoridades municipais em exercício
de suas funções em 1972, neste caso, o prefeito) e a mim, particularmente, vêm solicitando que se estimulem e se criem
bandas no Município. A seguir o exemplo de Afonso Schmidt e - a funcionar a sua previsão - como estaremos nesta época em que ocorrem os episódios
narrados em Zanzalá? O número de bandas era "catorze" e as orquestras "vinte e sete" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu,
Afonso Schmidt, pág. 42), empenhadas em renhida competição da qual todo o povo participava.
O Instituto de Música de Zanzalá tinha funções muito importantes, já que a música
"adoça os costumes" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 12). As
transmissões dos concertos de Cubatão - e o romance narra, numa página admirável, o concerto Cariçuma - esses
concertos realizados aqui eram retransmitidos para Nova Iorque, Londres, Moscou e Singapura. Neste campo, criou-se até uma oposição ao Instituto,
das correntes mais modernas contra as mais tradicionalistas. Exatamente a corrente moderna é que veio a compor a Comissão dos Artistas Independentes
de Zanzalá (C.A.I.Z.), que promoveu o concerto Cariçuma, já mencionado. Resisto ao encanto que teria em fazê-lo e deixo aos presentes o
prazer de ler este capítulo.
Capa do primeiro livro de versos de Afonso Schmidt. Exemplar raríssimo.
Reproduzido do livrete Perfil de Afonso Schmidt, de Henrique L. Alves
(1987, Prefeitura Municipal de Cubatão/Roswitha Kempf Editores, São Paulo/SP)
Aspectos sociais de Zanzalá-Cubatão, ou de Cubatão-Zanzalá
a) A vida, a morte e o amor - Tratemos agora da vida, da morte e do amor em
Zanzalá. Em Zanzalá, a morte está praticamente superada e, dentro de pouco tempo, até a utopia será realidade. Chegar-se-á à eliminação pelo menos
da data da morte: "Morreremos quando bem entendermos" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág.
52). Mas nos tempos de Zanzalá, a morte não é fúnebre e nem é a desmancha-prazeres que acaba com a satisfação e alegria
de viver.
Nas transcrições abaixo, veremos como nem mesmo um velório deixa de possuir uma certa
alegria. O texto está ao final de Zanzalá, depois da morte de Tuca (Tuca é bailarina e seu esposo Zéfiro - e Zéfiro
é o vento - também). Em Zanzalá, as pessoas têm apenas um nome, pois os sobrenomes foram eliminados.
"Pela manhã, chegou muita gente. Na maioria, eram amigos e colegas dos bailarinos.
Formaram-se grupos quase alegres diante da porta. Nas conversas foram lembradas as vitórias artísticas, as anedotas" (N.A.:
Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 104).
"Em 2030, a palavra fúnebre não quer dizer escuro, misterioso, fatal. O além está mais
aquém. Entre ambos, quase nada. Há quem tenha relações inclusive com o outro mundo. A morte não é mais o reino de onde não se volta mais.
Muitas vezes, com intuito de justiça" - para informação de nossos procuradores e membros do Foro presentes - "dão um instante de vida a cadáveres
intatos para que se pronunciem sobre o passado" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 104).
"Morrer", portanto, "tinha deixado de ser uma coisa espantosa: morria-se como se nascia. A ciência começava por dizer: Só envelhece quem quer"
(N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 52). Naqueles dias já se
anunciava, pelo silêncio austero dos laboratórios, o seguinte: "Dentro de pouco, morreremos quando bem entendermos". Mas isso era considerado, até
naquela época, "utopia pelos conservadores em Medicina" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 52).
b) A religião - E a religião? Existia um dualismo de princípios, um
maniqueísmo, um bem e um mal geradores da História, que - escreve Afonso Schmidt - estaria na base da concepção religioso-filosófica da própria
comunidade zanzaliana. Isto transparece claramente na seguinte citação, em que se inter-relacionam o demonismo e o progresso do mundo: "Nesta jaula
é que a Divindade mantém os espíritos planetários que nós ... dizemos do mal. Quando a humanidade estaciona e se torna incapaz de evoluir, de acordo
com as leis do Amor, a Divindade abre esta jaula e solta algumas das potências das Trevas. Elas precipitam-se no planeta e encarnam-se entre os
homens. São os que fazem as guerras, os que desencadeiam os baixos sentimentos, os déspotas e os perseguidores. Eles revolvem o mundo como quem meze
um tacho... Se a humanidade pára no caminho, é preciso sacudí-la, agitá-la, como se faz com um rebanho indolente. Quando estas almas torvas se
incorporam na humanidade há uma espécie de pânico universal. A evolução precipita-se, os endurecidos morrem, os capazes sofrem, e nesses rodamoinhos
espirituais a humanidade adianta-se de séculos na sua evolução" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt,
pág. 64).
c) A reeducação - A educação, como disse, merecia um tratamento especial. Mas
não se cuidava apenas de educação em Cubatão, ou em Zanzalá, se quiserem. Tratava-se também de reeducação. E por que de reeducação? Porque existiria
aqui perto de Zanzalá, num território imprecisamente definido no livro como o vale do Assungüí, um local onde viveriam os
caborés. (Mais adiante, diremos quem são os caborés). O Depósito Geral - Depósito Geral, vejam que intrigante denominação - consistia em Zanzalá
numa espécie de reformatório para os subdesenvolvidos ou culturalmente atrasados. O regime a que eram submetidos era o de tutorado. Os caborés
mencionados eram "presos", mas depois carinhosamente adotados, legalmente, e filialmente tratados pelas famílias que os acolhiam. Há várias
descrições a propósito disso.
Em Zanzalá, por outro lado, não se castigava ninguém, como se pode inferir desta
passagem: "aí chegando, desamarraram as mãos dos presos. Estes ficaram silenciosos, à espera do castigo que
esperavam receber. Mas o povo de Zanzalá não tinha (era uma tradição) a idéia de castigar ninguém".
d) A volta à simplicidade - Como se ocupava este povo de Zanzalá? Diz Afonso
Schmidt que, em Zanzalá, ocorrera uma volta à simplicidade, à cultura, especialmente à cultura musical.
Schmidt correlaciona vários séculos no prefácio de Zanzalá: o século XIX -
segundo ele - seria o das "luzes" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 12)
(Parece-me que dessa forma, fez referência ao século XVIII, porém o que aparece escrito no livro é XIX). A nossa centúria, o século XX, seria a da
"música" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 12). E diz ele que
isso se poderia provar facilmente com a sua extraordinária penetração no lar de cada um de nós e pela onipresença da música em toda parte. No século
XXI, teremos, pelo seu pensamento, o século da simplicidade.
Zanzalá-Cubatão ou Cubatão-Zanzalá estará em foco daqui por diante, muitas vezes, por
causa de sua arte e de sua música, que lhe "adoça os costumes" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt,
pág. 12). e leva à simplicidade da alma e do coração. Para satisfação do professorado do nosso Conservatório Municipal,
haveria em Zanzalá nada mais, nada menos que 80 compositores, 300 maestros e 409 críticos de arte, fazendo parte do Instituto de Música, "cujos
nomes eram conhecidos e acatados cem léguas em redor".
As casas de papelão especial, que já mencionamos, onde residiam os zanzalianos, eram
também uma prova dessa simplificação. Quanto aos caborés, moravam em "gavetas" ou "apartamentos".
e) A guerra - A guerra em Afonso Schmidt, no Afonso Schmidt de
Zanzalá, é o conflito de culturas, o entrechoque da cultura com a ignorância. O caboré
encarna a idéia do subdesenvolvimento mental. Aqui, por fim, explicaremos o que são os caborés: surpreendam-se, posto que são os europeus,
retrógrados. "A Europa", escreve Schmidt, "embora hoje não pareça, já foi um
continente civilizado". Contudo, em decorrência das guerras, regrediu, e "agora", só se aproveitaria, no máximo, como um museu vivo.
Os incultos, que seriam os caborés do Assungüí, utilizam canhões, metralhadoras, a
violência, enfim. Os zanzalianos, por sua parte, fazem uso, na luta, das armas que são as atitudes cultivadas, como o sorriso, as canções festivas,
o turismo, a alegria exterior e os dobrados! As armas dos zanzalianos são ainda outros objetos próprios da cultura: máquinas fotográficas, rolos de
filmes, blocos de papel e lápis, câmaras fotográficas, caixas de tinta para pintura, metros de celulóide cinematográfico.
Um extraordinário acontecimento ocorrido em Zanzalá foi a insurreição dos caborés.
Praticando turismo cultural, vieram 800 universidades de toda a Terra para assistir aos zanzalianos, aos cubatenses do futuro, ou seja, a cultura,
expulsando dos limites do Município a incultura, representada pelos caborés. Zanzalá, nessa ocasião, foi tomado por "incontáveis"
turistas procedentes do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste, e "encheu de curiosidade o país inteiro, as Repúblicas
vizinhas, o Continente".
f) A alimentação - Em passagens freqüentes em Zanzalá, trata Afonso
Schmidt da alimentação, afirmando, por exemplo, que a alimentação dos nossos dias - e pretende referir-se à alimentação dos dias do século XX - é
cada vez mais "envenenadora" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 11).
Talvez por esse motivo, em Zanzalá revela claras tendências para o vegetarianismo, como neste passo: Diga-se de passagem, que "a carne... havia
muito, tinha desaparecido da alimentação" (N.A.: Zanzalá e Reino do Céu, Afonso Schmidt, pág. 55),
e o próprio padre Benedito de Zanzalá colaborava com esta idéia, fornecendo mel, cenoura e mate aos alunos da Escola Municipal. Desaparecendo os
animais, houve que produzir leite vegetal e a maior parte do leite consumido era vegetal.
Numa encíclica, aproximadamente em 1987 (N.E.: refere-se
o conferencista de 1972 a um trecho - não citado - do livro Zanzalá), corroborando as idéias adotadas em Zanzalá,
a favor dos animais e contra a carne, disse o Papa que tal campanha deveria fazer-se sob a proteção de São Francisco de Assis, que era também
padroeiro do movimento vencedor contra os caborés.
g) O idioma - Que língua se falaria em Cubatão? Diz Schmidt que,
já pela época em que a obra foi escrita, 1928, 36 ou 49, como queiramos, começava a surgir um idioma, com palavras que se repetiam em cada recanto
do planeta, tais como hotel, restaurante, televisão e rádio, quase iguais em todas as línguas. Para Schmidt, o idioma criado nessa época, uma
espécie de esperanto universal, era utilizado nas transmissões dos espetáculos, que poderiam ser feitos, assim, para o estrangeiro diretamente ou
dali recebidos, sem necessidade de intérprete ou tradutor.
Ilustração de Lima de Freitas para a edição polonesa de A Marcha - 1956
Reproduzido do livrete Perfil de Afonso Schmidt, de Henrique L. Alves
(1987, Prefeitura Municipal de Cubatão/Roswitha Kempf Editores, São Paulo/SP)
Conclusão
Na presente palestra, como viram os senhores e as senhoras, detive-me quase que
exclusivamente em duas novelas do autor, por certo aquelas em que fala de Cubatão da maneira mais direta. Cubatão, entretanto, permeia toda a sua
obra. A cada passo aparecem referências à sua terra - em "São Paulo dos meus Amores", em "A Marcha", em "O Menino Felipe" e
talvez em todas as outras. Seu amor pelo berço chega a ser ousado, como vimos, fazendo-o levantar hipóteses quanto ao passado e inclusive quanto ao
futuro, como iniciar a História do Brasil no Porto do Cubatão e não em Porto Seguro ou admitir aqui uma civilização que somaria todas as utopias e
sonhos da humanidade.
Perdoem o atrevimento do orador, que não pôde fazer mais pela insuficiência do seu
instrumental e dons naturais, e que, por essa razão, não foi além das descrições e das interpretações mais óbvias, despretensiosas e sem caráter
exegético da presença de Cubatão na obra de Afonso Schmidt.
O objetivo último que tive ao aceitar o honroso convite, não para uma conferência,
como me vi obrigado a classificá-la durante todo o tempo, mas para uma modesta palestra, nada mais foi, nada mais pretendeu ser que um convite a
todos, uma provocação para a leitura ou a releitura de Afonso Schmidt.
Senhores e Senhoras, já vai adiantada a hora. E conquanto não me parecesse possível e
muito menos condigno tratar o tema e a obra do homenageado, leviana ou ligeiramente, fui obrigado a fazê-lo - e isso com que amargor e pena -
reduzindo-me a diminutas citações, a escritos poucos e a interpretações onde não foi possível aprofundar pela falta de tempo.
Perdoem-me, pois, os defeitos da palestra e particularmente se os cansei. Não era essa
a minha intenção. Muito agradecido a todos.
Frontispício da edição russa de A Marcha e Mistérios de São Paulo - Moscou,
1958
Reproduzido do livrete Perfil de Afonso Schmidt, de Henrique L. Alves
(1987, Prefeitura Municipal de Cubatão/Roswitha Kempf Editores, São Paulo/SP)
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