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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - ZANZALÁ
VII - Cariçuma                     (de Afonso Schmidt)
Muito cedo, os dois bailarinos foram passear à borda do lago que circunda a pirâmide do Pai-Sumé. As paisagens da serra e do vale estavam estranhamente nítidas, como se observa nos dias de noroeste. Admiraram as sete estradas cheias de homens e veículos, que coleiam pelas encostas, ou que riscam a planície coberta de mangue cor de azinhavre. O ar cheirava a almêcega, a lírios do brejo, a flor de cambará.

Aragens quentes, espaçadas, vindas das bandas do mar, agitavam os altos bambus, atritando levemente as varas, as folhas compridas e ásperas, tirando-lhes ruídos de fogueira. Zéfiro falou à sua gentil companheira:

- Estamos no verão. O céu amanheceu estriado de rabos-de-galo. Vamos ter vento noroeste.

Tuca pensava em outra coisa:

- Estive ontem no Instituto. O Zanzalá conta atualmente dez mil bailarinos. Acho que devemos procurar outro distrito onde a nossa arte não tenha tantos cultores.

Caminhando assim, passaram pelo marco de pedra onde os meteorologistas afixam diariamente as previsões sobre o tempo. Zéfiro leu em voz alta: "Zanzalá, 13 de janeiro de 2029 - Hoje pela manhã, vento fresco, 2 metros por segundo. À tarde, vento forte, 8 metros por segundo. Lufadas intermitentes, de 3 em 3 minutos. À noite, chuva grossa até ao alvorecer". O bailarino ficou orgulhoso de ver confirmados seus prognósticos sobre o noroeste e perguntou a Tuca:

- Eu não lhe dizia?

Ao virar a primeira curva da avenida, diante de uma aresta da pirâmide que parecia boiar sobre o lago, a moça segurou com força no braço do companheiro e mostrou um vulto, a vinte braças de distância:

- Que susto!

- Por quê?

- Olhe quem está ali...

Era Flanela, o músico. Muita gente o conhecia no Zanzalá. Nas rodas familiares, contavam-se as suas excentricidades. Os bailarinos estavam habituados a vê-lo todas as tardes, sentado na escadaria do Teatro. Era um pobre maluco, que não fazia mal a ninguém. Mas Tuca, sem saber porque, tinha medo dele.

Prosseguiram no caminho. Flanela encontrava-se, em pé, à borda da água, o rosto voltado para a serra e, com uma varinha na mão, à guisa de batuta, fingia dirigir a orquestra dos bambus, das cigarras, das avezinhas que chilreavam na folhagem. Passando-lhe ao pé, cumprimentaram-no, disseram-lhe algumas palavras, mas ele de tão entretido que estava não os viu, não os ouviu. Continuou absorvido na música dispersa.

Era um homem alto e magro, curtido pela vida ao relento. Cabelos compridos, barba emaranhada. Vestia-se ainda menos que o comum dos homens. E não usava calçado. Não tinha companheira, teto ou qualquer coisa que o prendesse ao vale, ou à vida. De seu, só possuía meia dúzia de cadernos de música, e os trazia sempre consigo.

Os bailarinos fizeram o passeio habitual e duas horas depois regressaram pelo mesmo caminho. Flanela ainda lá estava. Mas já não dirigia a orquestra imaginária. Sentara-se num banco, à sombra de um jambolão, e escrevia freneticamente no caderno, enchendo de rabiscos a pauta musical. Zéfiro parou e puxou conversa:

- Trabalhando?

O músico acordou e, dando conta da sua presença, pôs-se a rir. Tuca comoveu-se:

- Está compondo alguma coisa?

- Estou. É um concerto, grande como a serra. Mas as notas são poucas e a variedade de sons é enorme. E para lá dos sons estão as ressonâncias. E para lá das ressonâncias há as projeções abstratas...

- Que nome vai dar ao seu concerto?

- "Cariçuma".

- Que quer dizer essa palavra?

- O romper da manhã sobre a serra.

- Em que língua?

- No dialeto das rãs.

Os dois jovens sorriram. Ele, de fato, não regulava bem. Tinha ficado assim por causa de uma mulher. Uma linda história de amor. Os poetas do Zanzalá contaram-na numa canção que, por muito tempo, andou de boca em boca na música de uma valsa de Brahms. O estribilho começava assim:

Você deve deixar
(bis)
Que eu volte a ser feliz...

Flanela, durante muitos anos, fora organista da catedral de São Paulo. Dos quinze aos quarenta anos, viveu exclusivamente para o seu instrumento. Conheceu-lhe todos os mistérios. Tirava-lhe sons e silêncios que outros haviam ignorado. Mas um dia aquela moça pálida, de olhos de ouro, começou a freqüentar o templo. Parecia reunir na alma todas as delicadezas. Quando se lhe dirigia era como se o seu coração estivesse falando.

Ao entardecer, entrava no templo e ia sentar-se perto do músico. Conversava com ele. Sorria-lhe em silêncio. E, pouco a pouco, o organista foi-se deixando prender pela visitante. Certa vez, descobriram que se amavam. Fizeram largos passeios nos jardins, nos bairros velhos. Mas a vida não era aquilo. Ela resolveu casar com um patrício, montar casa, ter muitos filhos. E não voltou.

Embalde Flanela passou manhãs e tardes inteiras diante do instrumento, tirando-lhe sons velados e profundos que mais pareciam gemidos. A música transcendeu à técnica dos seus dedos. Elevou-se tanto que tocou o limiar do céu. De muitos países, vieram homens e mulheres para ouvi-lo. Uns acharam-no genial, outros julgaram-no louco.

Como não mais a encontrasse na cidade, meteu-se pelos campos e pelos matos. Desaparecia semanas inteiras. Nas festas mais pomposas da catedral o órgão permanecia mudo. Flanela? Flanela? E o instrumento não acordava na sombra, sob as rosas de luz que lhe atiravam por cima os vitrais. Os clérigos acabaram por substituí-lo diante do teclado, da floresta de tubos sonoros.

Foi então que ele apareceu no Zanzalá e ali ficou abandonado no vale, esquecido dos homens e de si mesmo. E, com o intuito de encher os seus dias, começou a compor aquele imenso concerto. Para descrevê-lo, andava à cata de harmonias. Sabia a árvore onde, todas as madrugadas, gorjeava um sabiá-coleira. Conhecia o pé de piúva que tinha mais cigarras do que folhas. E a fonte que, se o vento estava de feição, cantava com voz de mulher. A serra não escondia segredos para ele. E era com os segredos da serra que ele, havia trinta anos, compunha o seu concerto...

Os bailarinos, comovidos com a maluquice de Flanela, retomaram o caminho da casa. Decorreram dias, semanas. Certa manhã claríssima, ao abrirem a porta, encontraram o músico sentado na soleira, com os cadernos debaixo do braço. Ele estava radiante:

- Já terminei o concerto!

Os esposos fizeram-no entrar, servindo-lhe café. E enquanto ele fazia ligeira refeição, debruçaram-se no spartito, estudando-o, mas sorrindo com tristeza. E conversaram entre si, de modo que o visitante não ouvisse:

- É uma coisa fora de todas as normas!

- Irrealizável!

- Maluca!

- A menos que...

- Eu também pensei nisso...

Então a conversa mudou de tom e, dali a pouco, os três saíram, dirigindo-se ao Instituto. Pediram uma reunião de diretores, a qual foi marcada para a tarde. A ela compareceram compositores e executores, cujos nomes eram conhecidos e acatados cem léguas em redor. Mas todos conheciam de sobra o maestro Flanela, quer como organista, quer como maluco. Por isso, ao vê-lo, sorriram com tristeza. Um regente chegou a perguntar aos dois bailarinos:

- Que querem vocês que a gente faça com a composição do nosso infeliz colega?

Zéfiro tomou a defesa do maníaco.

- Por que motivo o senhor diz isso?

- Ora, porque ninguém o compreende...

- E a culpa de quem é? Naturalmente dos senhores. Ninguém o compreende porque ele é diferente!

Diante de tais palavras, houve um sussurro pela sala. O diretor, levando em conta a sua opinião, pediu-lhe que mostrasse onde estava a grande inovação de Flanela. Zéfiro abriu o caderno sobre a mesa, pôs-se a folheá-lo, a indicar aqui e ali as belezas que tinha surpreendido na obra do compositor.

O diretor não se convenceu:

- Flanela é um maluco!

Zéfiro, posto em brios, ripostou:

- Flanela é um gênio!

Nesse ponto, a controvérsia pegou fogo. Oitenta compositores, trezentos maestros, quatrocentos e nove críticos atiraram-se contra o intruso. Um deles chegou mesmo a lembrar-lhe que, na sua qualidade de bailarino, não devia subir além dos sapatos de ponta. Muitos riram da facécia. Foi marcada outra reunião para a noite. Dela só deveriam participar músicos.

Zéfiro entregou o caderno ao diretor e saiu seguido de alguns artistas que - há sempre desses casos - se colocaram a seu lado. A notícia correu pelo vale, despertando curiosidade. A população começou a discutir o concerto. Formaram-se partidos. Pró-Instituto, pró-Flanela. Duas horas depois, na Avenida Jabaquara, apareceu um grupo de populares que chamou logo a atenção dos passeantes. Um rapaz, acompanhado por violão e flauta, gorjeou:

Eu quero ouvir "Cariçuma"
Do maestro Flanela...

Dali a pouco, apareceu outro grupo. O dirigente, acompanhado por vários instrumentos, pôs-se a cantar:

Não quero ouvir "Cariçuma"
Desse maestro Flanela...

Quando os grupos se encontraram, irrompeu um conflito. Os passeantes fugiram. E quando a briga terminou, só se viam pelo chão fragmentos de violões, de flautas, de cavaquinhos. Mas foram os instrumentos os únicos a sofrer no embate; quanto aos partidários, escaparam a tempo, sem o mais leve arranhão.

À meia-noite, terminou a reunião do Instituto. Um comunicado foi afixado por todo o vale. Nele, o Instituto declarava não estar disposto a executar o concerto do conhecido maestro Flanela, por não encontrar no mesmo qualidades que o recomendassem. Esse  movimento em favor daquela partitura - insinuava o referido comunicado - era obra de alguns modernistas, descontentes com a conduta austera do grande centro coordenador e orientador dos artistas do Zanzalá.

Tal publicação despertou comentários. Uns pró, outros contra. E naquela mesma noite foi organizada uma comissão encarregada de fazer executar o discutido concerto, mesmo sem o apoio da instituição oficial. Enfim, a obra de Flanela ia ser divulgada. A boa nova espalhou-se logo pelo vale, pelo litoral, pelo planalto, pela América e pela Europa. Os rádios esgoelaram-se. De mil pontos do globo chegaram pedidos de informações sobre o maestro, sobre a sua composição, sobre a luta entre os artistas independentes e os diretores do Instituto. E o Zanzalá ficou em foco.

Depois de consultar o Instituto de Meteorologia, a Comissão de Artistas Independentes do Zanzalá (C.A.I.Z.) marcou a grande audição para o dia 7 de fevereiro. Por quê? É o que se vai saber linhas adiante. Imediatamente, começaram os trabalhos. Sim, os trabalhos, visto que aquela execução não se parecia com as outras.

Sob a direção de Flanela, que de certo modo parecia ter recobrado a razão, foram construídas 178 harpas gigantescas, de nove metros de altura. Umas eram encordoadas com arame de diversas espessuras, outras com lâminas de latão ou de vidro, dispostas obliquamente, como tabuinhas de venezianas. E ainda as havia com fieiras de guizos, de cabaças ocas ou feixes de bastões de cristal. Essas harpas foram postas, escalonadas, nas duas bandas do vale, no brejo, nos lados da pirâmide, nos desvãos dos morros, no cume dos espigões. Das suas caixas de ressonância, saíam fios que eram ligados a imenso órgão situado num pavilhão improvisado no centro do vale. A voz das harpas era difundida por alto-falantes dissimulados nos bosques, nas lapas, nos barrancos, por toda parte. Sentado diante do seu instrumento, o maestro poderia dar a voz ou fazer calar qualquer das harpas espalhadas pelo Zanzalá, e, movimentando a posição dos fios e lâminas que as encordoavam - obter delas o som que desejasse.

Aproximava-se a execução do concerto. Não se cuidava de outra coisa. Homens e mulheres rodeavam incessantemente as instalações, fazendo prognósticos. Muitos se interessavam particularmente pelas informações meteorológicas. E se o vento noroeste, pela primeira vez desejado, faltasse ao apelo? Mas os meteorologistas, também eles desejosos de ouvir a música de Flanela, começaram a apresentar as suas previsões. Diziam elas: "Dia 13 de fevereiro de 2029 - calor intenso - Ao alvorecer, iniciar-se-á o noroeste. - Ondas freqüentes, de 8 e 10 metros por segundo, soprarão sobre o vale. - Essa primeira refrega durará até ao nascer do sol, depois o vento mudará de quadrante".

Zéfiro e Flanela estavam diante do marco de pedra, vendo o funcionário afixar os avisos.

- O vento virá como você deseja? - perguntou Zéfiro.

E o maníaco:

- Sim. como se eu tivesse encomendado ao céu, sob medida...

Os homens do Instituto de Música reuniram-se todas as tardes na avenida dos bambus, próxima ao lago, e chefiavam a chusma que não acreditava no êxito do concerto. Eles mostravam as harpas espalhadas pelo vale e pela serra, vestidas com a sua túnica de pano branco, como instrumentos que ainda estivessem encapados, e diziam: o vento passará e elas permanecerão mudas. Se algum som for obtido, não se parecerá em nada com aquele que o maestro deseja. Tanta gente a trabalhar inutilmente, para chegar ao maior fracasso de que há notícia nos anais do Zanzalá...

Certa noite, ao verem Flanela trepar numa árvore para instalar ali o microfone destinado a captar a voz de um sabiá, deram-lhe ruidosa vaia. Logo depois, num bosque, onde o maestro fazia a mesma coisa para irradiar o zinido das cigarras, meninotes suspeitos de servirem à política do Instituto atiraram-lhe pedras. E Flanela, sem interromper o trabalho, riu-se deles.

Dia 12 de fevereiro - um dia claríssimo. Chegou a noite. A Comissão dos Artistas Independentes do Zanzalá (C.A.I.Z.) dobrou de atividade. Zéfiro e Tuca puseram-se à frente dos dez mil bailarinos do vale e depois de uma reunião na Praça Vicente de Carvalho, dispersaram-se pelas estradas que subiam a serra ou que desciam o vale. Eram homens e mulheres, que, a par de artistas, exerciam profissões correntes no distrito. Levaram às costas. presa por correias, a roupa com que deviam tomar parte no bailado. Como a serra estivesse escura, conduziam lanternas. Na avenida Martins Fontes, um rádio gritou:

- Lá vão os vagalumes! Lá vão os vagalumes!

E os oposicionistas do Instituto riram gostosamente daquela comparação. Mas o Zanzalá, por aquela altura, já estava tomado pelos turistas. Eles procediam do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste. Havia uma semana que as estradas, durante o dia, se apresentavam apinhadas de homens e veículos. Legiões de pedestres espalhavam-se pelas grotas, pelos desvãos de morros. Ônibus aéreos desciam de minuto em minuto nos campos Xavier da Silveira e João Guerra. Ou nos parques Ângelo Sousa e Fábio Montenegro. Deles desembarcavam chusmas de curiosos. Na esplanada Paulo Gonçalves, foi improvisado imenso barracão para abrigar os duzentos poetas estrangeiros que tinham vindo ao Zanzalá para assistir ao concerto. Na planície, ali pela altura do distrito de Areais, surgira da noite para o dia um aglomerado de tendas de campanha. Os panos eram de cor. A cidade efêmera mais parecia um canteiro de dálias.

Meia-noite. Calor intenso. Céu limpo, faulhante de estrelas. De espaço a espaço, um hálito escaldante, característico, acariciava o rosto dos espectadores, agitava levemente as varas dos bambus. Os rádios e televisores anunciavam a aproximação do concerto. Ouvia-se a voz dos locutores:

- Começará ao alvorecer, com a primeira lufada do noroeste. O maestro Flanela está no seu pavilhão, diante do instrumento, rodeado de músicos e escritores de toda a América, que lhe pedem informações. O Instituto está em sessão permanente. Entre os seus membros, até há pouco convictos do fracasso de "Cariçuma", começam a surgir vozes, discordantes. Lá mesmo há quem acredite naquilo a que ainda ontem chamavam desvario.

Duas horas depois, ouviu-se grande voz:

- O Instituto de Meteorologia confirma o prognóstico sobre a chegada do vento, a intensidade e a freqüência das lufadas.

Essa notícia foi recebida com aclamações. Pelo mar de vozes que se ergueram da noite, a assistência foi avaliada em mais de um milhão de pessoas.

Quando o céu entrou de fazer-se carmesim na direção do mar, a mesma grande voz passou de novo sobre a treva palpitante de almas;

- Dentro de vinte minutos o Zanzalá será varrido pela primeira lufada de noroeste!

Então, fez-se um pesado silêncio de expectativa. Só se ouvia, apagadamente, o sussurro dos bambuais. Um bando de pássaros gritadores atravessou o céu, do Norte para o Sul. Uma cigarra acendeu a sua lâmpada de som. Milhares de curiosos correram, batendo os pés, à procura de melhores postos de observação.

Começou a clarear, rapidamente. A paisagem tumultuosa da serra desenhou-se no fundo azul do céu. Na encosta e no vale, tornaram-se visíveis, na atitude de pernaltas meditativos, os vultos brancos das harpas. As avenidas que contornam o Zanzalá pareciam assentos de arquibancada gigantesca. Apresentavam linhas trêmulas e coloridas. Era a multidão de expectadores. Pelas encostas, as sete estradas eram como claros desenhos decorativos. De repente, subiu para o ar um rojão que, no alto, explodiu, desmanchando-se em rosas de luz.

- Vai começar! Vai começar!


Ilustração: Jean Luciano

Flanela, diante do grande órgão, teve medo. Foi a primeira vez que isso lhe aconteceu depois que anunciara "Cariçuma". Dirigiu-se ao painel elétrico instalado na parede e começou a apertar botões. A cada botão que calcava, uma harpa desnudava-se lá longe. E assim, uma a uma, elas foram despindo no vale e na serra as túnicas que vestiam. Dentro de pouco, as harpas apareceram nuas, vibráteis, expondo à claridade do alvorecer a nervatura paralela de metal e vidro. Mas permaneciam mudas.

Os que olhavam para a banda do mar viram a vegetação mudar de cor. Era o vento que embocava pela garganta do Zanzalá. A onda foi-se aproximando, aproximando... A primeira lufada chegou muito fraca. Os bambuais inclinaram-se numa vênia, como a saudar o vento. E só se ouvia pela encosta um lamento abafado e profundo, como se todos os homens da terra tivessem gemido. Flanela exaltou-se. Começou a correr de um lado para outro do órgão. Apertava pedais, martelava teclas.

Veio a segunda lufada. Os bambuais inclinaram-se novamente, as bananeiras mostraram o avesso das folhas. Guirlandas de sons, multiplicados ao infinito, arrastaram-se pelo Zanzalá. E aquele conjunto harmonioso subia, descia, perdia-se no espaço, abismava-se nas grotas, como se a serra de Santos tivesse sido transformada num grande órgão. Era uma missa cantada, em pleno céu. Depois, o vento passou, a massa musical apagou-se. Mas não se fez silêncio. No "ad libitum", um sabiá cantou. Cantou em toda a parte, como se estivesse ali mesmo. Os habitantes do Zanzalá conheciam-no; era o coleirinha que toda as manhãs gorjeava no pau d'alho, perto do rio.

Terceira lufada. Começou com sons baixos e graves, lembrando o marulho das águas nas pedras cavadas do Itaipu. Foi-se erguendo, aos poucos. Encheu o âmbito cristalino da manhã. Era como se todas as árvores, ao invés de folhas, de flores e de frutos, estivessem cobertas de guizos. De guizos de ouro. Foi-se erguendo cada vez mais. Arqueou-se sobre os abismos onde manchas de sol alternavam com aglomerados de nuvens. Acabou-se por tornar um arco-íris, onde os ouvidos distinguiam os sete sons e as almas, os sete silêncios que estão para lá da música.

As aves maravilharam-se com aquilo. Então, de cada copa subiu para o ar pelo menos um casal de pássaros. Grandes e pequenos. De todas as cores. Suas asas douradas projetaram sombras trêmulas sobre a encosta, sobre o público perplexo. Das devezas elevaram-se igualmente todos os besouros, todas as borboletas, todos os pequenos insetos. Nuvens trêmulas de abelhas ergueram-se à guisa do fumo das fogueiras. Era como se as corolas da serra tivessem criado asas e, a um chamado do sol, fugissem dos seus pedúnculos! E a terceira lufada esmoreceu, passou. Cavou-se um grande silêncio azul. E nesse silêncio ficou apenas a cigarra. Era uma nota estrídula, cristalina, maravilhosa, que enchia a terra e o céu.

Flanela, diante do órgão, dançava uma dança estrambólica. Corria de um lado para o outro, com a obsessão das teclas e dos pedais. Parecia mais esquelético, mais felpudo de barbas e de cabelos; movendo-se freneticamente, agitava andrajos escarlates. Aqui, apertava amorosamente uma tecla, ali esmurrava outra, para vencer-lhe a resistência. Esses gestos iam repercutir lá longe. Uma harpa cantava, outra calava-se.

Flanela trepava sobre pedais que afundavam lentamente com o seu peso, mudando a inclinação das fitas de latão ou de cristal que deveriam produzir determinado som à chegada do vento. A cada corrida, a cada instante de equilíbrio sobre os braços de ferro que avançavam por baixo do instrumento, a orquestra mudava de tom, abriam-se comportas de sons e novas torrentes harmônicas desaguavam no rio imenso do seu concerto.

Foi amanhecendo. Na arquibancada constituída pelas avenidas que desciam do planalto margeando a encosta da serra, nas sete estradas sinuosas que coleavam nítidas por entre os espigões cobertos de bruma, na planície do mangue com placas metálicas de águas mortas, comprimia-se a multidão que, durante a semana, chegara de todo o Continente para assistir "Cariçuma". A música tinha arrebatado as almas. Homens e mulheres permaneciam imóveis como no templo.

Entre uma lufada e outra, quando tudo silenciava para ouvir em primeiro plano o canto do sabiá, o zunido da cigarra ou o amiudar dos galos, isto é, quando o maestro virava a folha do seu caderno, passando do "andantino" para o "allegro ma non tropo", a grande voz se fazia ouvir, em tom grave, explicando com poucas palavras as intenções do compositor. Essa voz vinha da Casa dos Poetas. Eram freqüentes as expressões "concerto sobrenatural", ou "música abstrata"...

Entre o quarto e o quinto movimento da "suite", abriram-se buracos nas nuvens, apareceu o sol, torrentes de ouro fluído projetaram-se oblíquas sobre a serra. No costão de barro vidrado, onde se erguiam as silhuetas dos estabelecimentos públicos, apareceram manchas amarelas formigantes de veículos, de homens e bichos. Os sete caminhos do planalto e da palude tornaram-se resplandecentes. Foi então que, ao longo dessas vias, sinuosas e nítidas, surgiram manchas coloridas, feitas de figuras humanas, vestidas como de corolas.

Elas apareceram entre os espigões da serra, entre o azinhavre do mangue e, oscilando, aproximaram-se do centro do vale. A distância fazia-as minúsculas; suas roupagens fortemente coloridas davam-lhes aparências de flores. Todos os lírios do brejo, os jacatirões, as aleluias, as flores de São João tinham caído de suas hastes e vinham para o vale. Eram os bailarinos. Zéfiro e Tuca dirigiram o "ballet" do amanhecer na serra de Santos. Vinham vindo, vinham vindo. Quando chegaram nas imediações da pirâmide, encontraram-se, formaram largo círculo, giraram ao redor do lago, desenharam figuras geométricas e, como impelidas por nova lufada de noroeste, perderam-se na sombra dos bambuais.

A voz das águas do Itutinga tinha sido captada; era uma cachoeira maravilhosa, cascateando sons límpidos. Ela estava em toda parte. Era como se as nuvens brancas tivessem escancarado as suas comportas e chovesse cristal sobre a serra.

Depois, fez-se novo silêncio para se ouvir o conjunto das aves assustadas, voando e revoando no Zanzalá. Sobre esse fundo constituído de bater de asas, de gritos de susto e de alegres cânticos matinais, delineou-se em primeiro plano o toque do sino da capelinha de Santa Cruz.

Quando passou a derradeira lufada do noroeste, como havia sido anunciado pelos meteorologistas, a serra ergueu um novo hino. Era largo e profundo, como se todas as pedras, as árvores, as fontes, as sombras e as claridades tivessem cobrado voz e estivessem cantando. A última parte do concerto morreu afogada na luz de um cálido dia de noroeste, como se fora a "coda" daquela composição musical. Um clamor partiu dos contrafortes, subiu pelos morros, pelas encostas, galgou os espigões, demorou-se na gigantesca arquibancada das avenidas e perdeu-se no rebordo do planalto. Eram as aclamações ao maestro, aos bailarinos.

Todos os rádios falaram. Todos os quadros informativos lampejaram cenas recebidas do fim do mundo. E a multidão inteirou-se de que Nova York, Londres, Moscou e Singapura tinham interrompido o trabalho, ou o sono, a fim de correrem para as ruas e ouvirem as transmissões públicas do concerto do maestro Flanela. A multidão reunida no Zanzalá quis conhecê-lo. Houve uma corrida geral para o pavilhão em que ele dirigia o concerto, na praça Paulo Gonçalves. Foi uma demonstração alegre e ruidosa. Quando Flanela saiu e viu aquilo, mostrou-se acanhado, pôs-se a rir sem graça, como criança apanhada em travessura. Os amigos conduziram-no, muito atarantado, pelo meio da massa popular até ao Instituto, onde, dessa vez, foi recebido com todas as honras. Cada um dos membros começou o seu discurso:

- Eu sempre fui um admirador fanático do professor Flanela...

Mas o coitado tinha vindo ao mundo apenas para compor e dirigir pela primeira vez o discutido concerto. Meses depois morreu. Foi enterrado na grota, ao pé da fonte, debaixo do pé de jambolão. Daí para o futuro tem sido lembrado muitas vezes. Não só pelos músicos, mas pelo povo do Zanzalá. Nos dias de noroeste, em que a serra amanhece muito bonita, em que as aves cantam e as cigarras zinem como loucas, há sempre uma velha que sorria e diga:

- Manhã de glória nos sete caminhos!

Alguns estudiosos veem nessa frase uma alusão remota ao concerto do maestro Flanela, nos idos de fevereiro de 2029.