João
Ramalho, na conversa daquela noite, contou ao almirante coisas que o deslumbraram.
O de Vouzela, voltando a falar sua língua, deixou-se arrebatar pela
saudade. O de Vila Viçosa, a par das nobres qualidades, estava atacado
por aquela febre de ouro, que o levaria, dez anos depois, no Oriente, a
grandes desvarios. Ouvindo as informações do patrício,
deixou-se ofuscar pelas perspectivas, que se lhe abriam, e resolveu acompanhá-lo,
a fim de conhecer de perto as maravilhas do planalto.
Não
foi por acaso que, dias depois, quando Paranapiacaba dormia ao sol, como
sob uma chuva de ouro, já os dois homens e seus acompanhantes portugueses,
mamelucos e índios subiam pela trilha apenas adivinhada, realizando
a façanha homérica de grimpar pelas grotas à custa
de pernas e braços, agarrando-se a cipós, balançando-se
no ar, sobre os despenhadeiros.
Assim chegaram
lá em cima. Ramalho, habituado àquela vida, era um sexagenário
rijo, capaz de medir forças com filhos e netos varões, que
já os tinha. Martim Afonso estava afeito às surpresas do
oceano e pouco antes, nos mares do Sul, salvara-se a nado daquela tempestade,
em que a primeira nau-capitânea fora desarvorada pelo vento e tragada
pelas ondas.
Alcançando
o alto da serra, suados e arquejantes, os homens limitaram-se a sorver
um pouco da água fresca em que dessangravam os barrancos cobertos
de samambaias, à sombra das grandes árvores inclinadas. Puseram-se
logo em marcha.
Pelo caminho,
encontraram índios guaianás com quem o fronteiro do campo
se entendia. Nas suas pousadas, foram recebidos com crepitante fogueira
e caças e peixes preparados, que constituíram suculento almoço,
regado por generoso vinho trazido pelos acompanhantes do navegador. A certa
altura, Martim Afonso pegou na botija, encheu a malga do precioso néctar
da vida e ofereceu-a ao índio, que lhe passava por perto. Este aceitou-a
com vivacidade, levou-a à boca mas, ao sentir-lhe o gosto, esguichou
a bebida, assustado, como se fora veneno...
Depois de saboreadas
as frutas da terra, o anfitrião conduziu o hóspede ao tijupá,
onde, numa rede fabricada de embiras, trabalho das cunhantãs
prestimosas, ele sesteou até ao por do Sol.
Ceando, assistiram
à festa em que os índios, pintados e tatuados, com seus acangataras
de ricas plumas, se entregaram a músicas e danças até
tarde. Ainda com estrelinhas no céu, partiram rumo do Anhembi, a
fim de conhecer as minas. No percurso, o almirante não admirava
a beleza e a uberdade da terra; sua idéia fixa era uma coisa brilhante,
mas que, naquele tempo, não fazia os silvícolas perderem
o sono: o ouro!
A certa altura,
Ramalho estendeu o braço e indicou um pico que se sobrelevava aos
demais, e sisse:
- Eis ali o
Jaraguá!
- Que quer
dizer esse nome na língua dos nativos?
- Senhor do
Vale ... ou coisa parecida.
Seguiram na
direção em que o morro se erguia, batido pelo sol. Era como
gigantesco dedo de pedras, apontando o céu, a esgarçar as
nuvens. A serra do Japi, que se estende nas suas cercanias, serve de fundo
ao quadro. A floresta verde e cerrada cobre-o inteiramente. Sua riqueza
esconde-se numa espécie de cascalho.
- E há
muito ouro ali, à flor da terra?
- Os índios
vão buscá-lo e o trazem em quantidade, para seus adornos.
O navegador
não quis perder tempo. Regressou ao sítio da borda do campo
com os amigos e acompanhantes. A viagem foi apressada, quase sem palavras,
pois ele parecia absorvido em seus pensamentos. Chegando a desoras nas
pousadas do hospedeiro, como despertou das suas cogitações:
- Em que dia
estamos nós?
Ramalho correu
ao canto, pegou na porunga e entornou as pedras no chão alumiado.
- Que é
isso, homem? Que estás a fazer aí? - perguntou o hóspede.
- Consulto
o meu calendário.
Contou as pedras,
fez os cálculos e respondeu-lhe, com segurança:
- Estamos a
10 de outubro de 1532!
Martim
Afonso no Porto de Piaçagüera, a caminho de Piratininga, em
outubro de 1532 Detalhe de
pintura de Benedito Calixto existente
no Palácio São Joaquim, Rio de Janeiro
Martim Afonso
assinou a concessão de uma sesmaria a Pedro Góis, escritura
que foi lavrada por Pero Capico, escrivão d'El Rei. E determinou
que, nem mesmo para negociar, os homens do litoral tivessem contato com
os do planalto, talvez receoso de que os aventureiros trocassem o ouro
do Jaraguá por bugigangas, de que os índios tanto gostavam.
Providenciou, também, a organização de grupos de pesquisadores
e, sem esperar o resultado, na semana seguinte, desceu para São
Vicente.
Nessa localidade
marítima, já havia um começo de povoamento. Foi dali
que, seis anos antes, partira Aleixo Garcia, com cinco europeus e um exército
de índios escravizados, a fim de realizar a primeira "entrada" de
nossa História. Seguiu pelo caminho denominado Peaberu que começava
em São Vicente e percorria cerca de 200 léguas, com oito
palmos de largura, até às margens do Rio Paraná, passando
pelos Tibagi, Ivaí e Piqueri.
Chegando ao
mar, de volta do planalto, Martim Afonso fez construir sobrado para a Câmara,
igreja, estaleiro, casa-forte e um cais para desembarque, isto é,
o Porto das Naus. Criou a primeira povoação do planalto,
distante "nove léguas pelo sertan", e nomeou João
Ramalho no posto de guarda-mor dos de Piratininga, autoridade autônoma,
que nada tinha a ver com as de São Vicente.
Martim Afonso
regressou à Europa em março de 1533, deixando como seu lugar-tenente
o padre Gonçalo Monteiro. Sua esquadrilha levou para o Tejo preciosos
produtos da terra brasílica. E, dali por diante, ao longo de cerca
de vinte anos, São Vicente só deveria ser visitada por piratas
franceses e espanhóis, que andavam por estas latitudes à
cata do ibirapitanga, ou melhor, do pau-brasil, matéria-prima de
primeira ordem na fabricação das tintas.
E o senhor
de Tagarro e Alcoentre não deu grande importância à
sua capitania de São Vicente. Foi como se a tivesse esquecido. Nem
sequer, no fim da vida, a registrou em seus assentamentos! |