Os
habitantes do vale, com a execução do concerto "Cariçuma",
que tanto os agitou, esqueceram o rapto e a morte do cavalo "Guaicuru".
No entanto, logo depois, deu-se um acontecimento previsto pro velhos tidos
na conta de visionários. Refiro-me à insurreição
dos caborés.
Certa manhã,
começaram a produzir-se estrondos lá para as bandas do mar.
Que seria? Talvez a Prefeitura estivesse arrebentando pedras nos morros.
Como os estrondos continuassem, muitas pessoas saíram de casa e
foram para a rua, a fim de saber do que se tratava. Um projétil,
vindo de Piassagüera, abriu largo rombo na Avenida Atlântico.
Os rádios
começaram a anunciar coisas alarmantes e no vídeo fosco dos
televisores os repórteres projetaram cenas de uma autêntica
invasão armada, como só eram vistas nas ilustrações
antigas, que amareleciam nos museus. Aquilo divertiu muito os habitantes
do Zanzalá. Os noventa aparelhos públicos, situados nas praças
e nos pérgolas das avenidas, ficaram logo rodeados de curiosos que,
de olhos arregalados, se puseram a admirar esse espetáculo anacrônico:
uma rebelião. Sim, o que se estava passando era nada menos que uma
insurreição de europeus da pior espécie, isto é,
daqueles que ao longo dos séculos não haviam sido assimilados
pelo Zanzalá.
Os homens atrasados
apareciam nos televisores em formações compactas, com os
capacetes de aço brilhando ao sol e, na rápida avançada,
iam formando núcleos para onde eram conduzidas máquinas de
guerra. Desses núcleos, depois de fortificados, partiam outras linhas
de homens, marchando num ritmo sacudido, e mais adiante estabeleciam novas
posições. Bandeiras tremulavam no ar. Bandas de música
executavam marchas heróicas. Trogloditas de cartola arengavam às
massas:
- Polo rey
e pola grey!
Uma festa para
os zanzalianos de 2029.
Parecia que
aquela parte do vale tinha sido transformada em tabuleiro de xadrez e que
o enxadrista misterioso, colocado não se sabia onde, ia sobre ele
desenvolvendo jogo lento, com lances certos. Numerosas plantações
de cereais, dentro de algumas horas, estavam em seu poder. As densas equipes
de trabalhadores eram como raspadas dos campos, reunidas e atiradas violentamente
para o centro do vale. E a marcha dos homens uniformizados, rebrilhantes
de metais, continuava ininterrupta.
As primeiras
casas foram alcançadas e os seus habitantes, postos em fuga, começaram
a chegar arquejantes, com os filhos ao colo, no largo da Pirâmide.
A verdade é que a maioria da população não
sabia explicar aquilo.
Uns perguntavam:
- Que quererão
eles?
Outros afirmavam:
- Vingam-se
do que lhes fizemos, por causa do rapto do "Guaicuru".
E ainda havia
os que ponderavam:
- Vão
ver que que querem ficar com as terras do distrito e comer-nos moqueados,
como é seu costume...
Na altura dos
Areais, houve ligeira resistência por parte dos tiradores de folhas
de mangue, que investiram de remo em punho contra a horda de invasores.
Então, as máquinas de matar estralejaram e os homens caíram
por terra, atorados pela cintura, tão unidas eram as balas que neles
haviam acertado.
Esses fatos
foram noticiados pelo rádio, mostrados com pormenores pelos televisores.
Como era natural, sobreveio o terror. Surgiram os primeiros homens e mulheres
correndo de um lado para outro. Uma jovem pôs-se a gritar com o filho
apertado ao colo. Das pequenas ruas, o povo desembocava nas grandes avenidas
Jabaquara, América, Atlântico e Paranapiacaba. Nas largas
artérias, já àquela hora toldadas pelo crepúsculo,
a massa popular subia, descia e, por último, ia reunir-se nas praças,
duras de gente.
Um avião
negro apareceu lá para as bandas do Assunguí, pairou algum
tempo sobre o vale e depois deixou cair obuzes sobre a cúpula escura
do Instituto Sanitário que, com os seus 76 andares, parecia mais
alto do que a serra. Ouviu-se um estrondo de fim-de-mundo. Chamas violáceas
lamberam as nuvens. O bloco arquitetônico partiu-se pela altura do
30º andar; a parte superior pendeu sobre o vale e desabou num caos
de poeira avermelhada. O choque pareceu abalar as montanhas. Quando a nuvem
de pó se dissipou, só se via a parte inferior do edifício,
que havia permanecido de pé, de paredes irregulares, como um vaso
de barro desbeiçado a martelo.
Meia hora depois,
o avião reapareceu no horizonte, voou sobre o ápice da pirâmide
e desovou obuzes. A cada um deles que caia seguiam-se um clarão
lívido e um estrondo de abalar céus e terras; depois, no
quadro dourado do poente, a pirâmide apareceu deformada, com as arestas
comidas por imensos buracos.
Veio a noite.
Embalde a mão do eletricista puxou a alavanca da iluminação
pública, que fazia abrir no vale um milhão de luminosas magnólias.
Seu gesto perdeu-se inútil. A central elétrica devia estar
destruída, pois o vale permaneceu às escuras. Nos lares mais
intactos, mãos ansiosas procuraram sintonizar as lâmpadas,
mas o espaço parecia morto; as lâmpadas continuaram apagadas.
Aquela noite não se parecia com as noites do vale, tão alegres,
tão cheias de músicas e risadas. Só se ouvia a gritaria
da gente que passava pela rua numa corrida doida, e o soturno bater de
um invisível martelo que ia destruindo tudo, os palácios
e os monumentos. Em diversos pontos, subiam colunas de fumo e as nuvens
baixas pareciam lambuzadas de sangue.
Ao longo da
noite, num desejo invencível de fugir para algum lugar, o povo abandonou
as avenidas e reuniu-se nas praças da Pirâmide, do Monge,
da grota Funda. Muitas famílias haviam tomado os atalhos, perdendo-se
nas últimas florestas da serra. Zéfiro, Tuca e os sogros,
também espavoridos pelo que viam, tentaram fugir pelo Alto da Serra,
ganhando a planície. Mas, depois de algumas horas de difícil
caminho, compreenderam que seu propósito não era viável.
É que lá em cima, no ângulo do vale, estava assentado
um verdadeiro ninho de máquinas de morte, daquelas que davam tiros
tão unidos que ceifavam os homens pela cintura. Outros, antes deles,
menos felizes, haviam feito a mesma tentativa. Tinham sido mortos. À
luz de uma lanterna, viam pilhas de cadáveres, ou de feridos que
rolavam pelo pendor da serra, pedindo um pouco de água nas vascas
da agonia.
Olharam para
trás. O vale estava inteiramente amortalhado nas trevas. Lá
em baixo, só se viam clarões de incêndios. Só
se escutava a voz soturna do canhão, dessa palavra que, perdida
nos porões da história, voltara à voga da noite para
o dia. Enchendo esse compasso profundo, erguia-se o matraquear incessante
dos tiros-de-leque. Apesar disso, Zéfiro e seus companheiros de
fuga resolveram descer pelo mesmo caminho.
A cada passo,
encontrava grupos de homens enlouquecidos de pavor que procuravam, numa
última esperança, ganhar as planícies de serra acima.
Então, ele levantava a lanterna à altura da cabeça,
para ver e ser visto, e explicava a situação que era de cerco,
a proximidade inquietante das máquinas de morte instaladas à
retaguarda da população. Os fugitivos não agradeciam,
nem comentavam, mas retrocediam no mesmo pé, escondendo na noite
a sua espantosa angústia.
Já embaixo,
na grota Funda, viu compacta multidão iluminada por poderosos refletores.
Essa gente estava diante de um televisor e ansiosamente ouvia a voz do
informador paulistano:
"A notícia
da rebelião dos caborés no vale do Zanzalá encheu
de curiosidade o país inteiro, as Repúblicas vizinhas, o
Continente. É um episódio que lembra ao vivo o fim das civilizações
que precederam a nossa. Organizam-se neste momento, por toda parte, imensas
caravanas para assisti-la. O governo decretou feriado por uma semana. O
ambiente é de festas. Nada menos de 800 universidades seguem neste
momento para o Zanzalá, a fim de que seus alunos possam assistir
"in loco" a esse pitoresco espetáculo a que os antigos chamavam
de guerra. Trata-se de fazer o possível para que a insurreição
não termine até amanhã, depois do meio-dia, e que
as cenas características não se interrompam tão depressa.
O continente está com inveja do Zanzalá, terra feliz que
goza neste momento de um espetáculo que o homem moderno, organizado
por uma civilização prosaica, não mais sonhava assistir".
O locutor prosseguiu
nesse tom otimista de admirável bom humor, e os fugitivos não
quiseram mais ouvi-lo, recomeçando a atormentada viagem. Mais adiante,
procuraram orientar-se na escuridão e já não viram
a luz pálida da pirâmide, que havia meio século guiava
os viajantes da terra. Sem aquela luz, o vale parecia perdido entre a terra
e o céu, martelado pelo canhoneio, lambido pelos incêndios.
Uma angústia, uma angústia...
Andaram mais
algumas horas. Na Praça Monge, novo ajuntamento, novo televisor,
novas notícias irradiadas da capital:
"...a curiosidade
pública está no auge. A esta Capital estão chegando,
por todos os meios de transportes, incontáveis turistas que se destinam
ao Zanzalá, cuja povoação está sendo arrasada
pelos caborés. Na Estrada do Mar, movimenta-se uma quádrupla
fila de veículos em demanda do privilegiado vale. Ao amanhecer,
seguirão para lá numerosos comboios aéreos, conduzindo
famílias. Do Rio de Janeiro, de Montevidéu e de Buenos Aires
partem incessantemente aviões com turistas. O Instituto Central
de Artes está em pleno funcionamento, apesar da hora adiantada da
noite. Já foram retiradas até este momento 91.014 caixas
de tintas para pintura; 18.114 máquinas fotográficas; 128.745
rolos de filmes. O número de metros de celulóide cinematográfico
já atinge a mais de um milhão. A Capital, com o êxodo
dos veículos, começa a lutar com a falta de transportes.
O governo está reunido para tratar desse problema intercorrente.
Serão tomadas providências enérgicas..."
Os quatro fugitivos
de torna-viagem prosseguiram o seu caminho pela noite. Logo depois pararm.
No aceiro da planície, esbarraram numa espessa muralha humana que
recuava lentamente. Era toda a população que, empurrada pelos
invasores, ia pouco a pouco se encurralando ali. De quando em quando, uma
rajada de metralhadora fazia um rombo na multidão. Passada a refrega,
retirados os mortos, a vaga humana se unia de novo. Os caborés saíam
com freqüência de suas posições e imiscuiam-se
entre aquela gente, dando ordem, ameaçando com gestos coléricos.
Tuca havia
desfalecido de cansaço. Zéfiro tomou-a nos braços
e carregou-a para um canto da avenida, ao pé da grande escadaria.
Deitou-a num tufo de tanchagem e foi buscar água, nas mãos
em concha; João Antônio e Maria Balbina ficaram inclinados
sobre Tuca e não mais perceberam as coisas que se foram desenrolando
pela noite. Ao vir da madrugada, o vale inteiro já se encontrva
em poder dos caborés. Sem o sentir, seus habitantes tinham ficado
prisioneiros dos bárbaros. Ali pela segunda hora, cessou completamente
o bombardeio; só se ouviam tiros esparsos num mundo pálido
que começava a emergir lentamente das trevas. Depois cessou tudo.
A invasão estava feita e naturalmente os caborés tratavam
de assegurar as posições, preparando-se ao mesmo tempo para
resistir às forças que fatalmente, deveriam descer da banda
de cima, onde a massa escura da Serra do Mar, com seu colar de neblinas,
se recortava na lâmina luzente do céu.
À terceira
hora, alvorecia; quem estivesse postado no ângulo superior do vale
e olhasse para as bandas do mar, veria um largo cenário de devastação
sobre o qual haviam passado, num tropel, todas as fúrias do inferno.
Por cima do Zanzalá, tão alegre, tão farto, pairava
uma infinita tristeza. Foi precisamente nessa hora que começou a
segunda fase da histórica rebelião dos caborés, em
2029. E os que não a viram como nós, no salão de espelhos
do tempo, onde não há passado nem futuro, dificilmente poderão
acreditar nas coisas que se seguiram...
À primeira
claridade da manhã, um avião de passeio saiu da sombra escura
da serra e pairou docemente sobre o vale. Era o primeiro curioso que chegara.
Então, um tiro partiu lá do fundo e feriu-o de morte; o aparelho
largou-se desamparado no espaço e foi amontoar-se entre dois morros.
Logo depois, talvez ignorando a sorte do primeiro, três belos aeroplanos
apareceram no céu gris, deslizando sobre as ruínas do Instituto
Sanitário. Novo tiro e um deles, desgovernado, afocinhou em linha
reta na Avenida Jabaquara, de onde subiu uma nuvem de poeira. Os outros
continuaram no seu passeio matinal. Ainda novo tiro e outro aparelho caiu
em zigue-zague, como pássaro malferido.
Ao mesmo tempo,
numerosos bandos de asas, como uma poeira de ouro à primeira claridade
do sol, avançaram da serra sobre os abismos do vale. De minuto em
minuto, ouvia-se um tiro e um avião precipitava-se ao solo. Mas,
em seu lugar, chegavam dez, vinte, cinquenta, cem... Do lado do mar, começaram
a chegar também umas galeras aéreas de duzentos passageiros,
que voavam lentamente pelo céu, como em excursão de turismo.
Logo depois, esses aparelhos foram pousando pelos campos, pelos morros,
pelas avenidas. A cada aterrissagem, seguia-se uma cena espantosa: grupos
de caborés corriam para os aparelhos e incendiavam-nos; ao mesmo
tempo, outros bárbaros investiam contra os tripulantes e passageiros,
trucidando-os. Isso foi feito com um, com dez, com trinta aparelhos...
Mas dentro de pouco eram tantos a pousar em terra que os homens cabeludos,
bárbaros e de botas não venceram matar tanta gente.
Já dia
claro, o centro de atividade dos insurretos foi-se deslocando para a encruzilhada
do Assunguí, onde uma compacta multidão chegada de Santos,
armada de máquinas fotográficas, de câmaras, de blocos
de papel e de lápis, ameaçavam romper as suas linhas exaustas
pelo trabalho da noite. Ouvia-se novamente o pipocar dos tiros. Dentro
de pouco, o estralejar das metralhadoras, numa nuvem dourada de poeira.
A multidao desfalcada recuou. Mas foi então que, do lado de cima,
pelas névoas da Grota Funda, despenhou-se pela serra uma massa escura
de homens e carros. Ouviu-se uma gritaria infernal. E a mó de gente
e de veículos foi descendo, empurrando as linhas dos caborés.
Ainda mais adiante, já no Monge, houve uma tentativa de resistência,
com metralhadoras, mas a onda humana levou tudo de roldão, desembocando
na planície e espalhando-se nela com gritos de alegria, dobrados
pelas bandas de música e canções festivas.
Quando soaram
as badaladas de meio-dia, o quadro já tinha mudado: grupos de homens
e mulheres corriam pelos bosques à caça dos caborés.
E quando estes passavam pelas ruas, a correr, sem o cabuloso chapéu
e com as botas enlameadas, as crianças escangalhavam-se de rir.
Então, o povo segurava-os pelas barbas ruivas e arrastava-os para
o Depósito Geral, onde eram confiados às famílias
que se interessavam pela sua reeducação. Ao entregá-los,
depois de formalidades que asseguravam acolhimento paternal, com a responsabilidade
de tutores, o empregado dava instruções sobre o tratamento
que lhes devia ser preliminarmente dispensado:
- Antes de
tudo, cavalheiro, cortam-se-lhes a barba e o cabelo. Depois, substitui-se
essa roupa anacrônica por um traje simples e higiênico, que
não prive o corpo dos benefícios do sol e do oxigênio.
Mais tarde, com os devidos cuidados, descalçam-se-lhes as botas.
Quando as mesmas estiverem muito aderidas ao corpo, é recomendável
amolecê-las numa imersão de água morna. Por fim, um
banho que deve ser prolongado, pois o perigo de um golpe anafilático
em tais casos é lenda do pasado que pertence ao domínio da
História...
Nesse ponto,
um sujeito neurastênico desceu de um aeroplano e pôs-se a ameaçar
céus e terras:
- Vocês
me intrujaram! Foi para isto que me fizeram voar a noite inteira? Onde
se viu uma invasão de bárbaros que termina no dia seguinte?
E o vale entregou-se
aos trabalhos de reparação dos danos praticados pelos caborés.
Dentro de um mês, a vida já havia voltado à sua normalidade
feliz, à luz do sol, à doçura dos bambuais, ao sopro
cálido e mau conselheiro do vento noroeste...
Ilustração:
Jean Luciano
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