VI - Justiça d'El-Rei da Pérsia
Se os desconhecidos munícipes que
interpuseram seu infeliz Recurso perante o Senado Estadual deram, com isso, testemunho flagrante de seu arrojo e de sua inconsciência, não menos
atrevidos e insensatos foram os modestos advogados dos sertões do Norte que aceitaram o difícil patrocínio de uma causa tão ingrata.
A incumbência transcendia em responsabilidades os estreitos limites de suas aptidões mentais e
de seu deficientíssimo preparo profissional, porque somente a dialética de um poderoso argumentador, unida às qualidades literárias de um escritor
eloqüente, seriam capazes, não diremos de salvar de um desastre inevitável essa causa perdida, mas, ao menos, de ampará-la cuidadosamente na sua
queda fatal.
Fosse quais fossem os seus patronos, por mais autoridade de que dispusessem, mercê dos seus
talentos e das suas luzes - é certo que o Recurso cairia por carecer de fundamento legal e de base jurídica. Mas, restava ao menos aos recorrentes
o grato consolo de não caírem cobertos de ridículo na praça pública, em presença da população jovialmente amotinada com o merecido insucesso de
tão grotesca aventura.
Os patronos foram, infelizmente para os adversários da Câmara, mal escolhidos. Escrevem com
tamanha falta de correção, de elegância e de clareza, que a tarefa de lê-los, de acompanhar o seu tardonho e obscuro raciocínio, as vacilações de
seus argumentos sem lógica, sem nexo e sem firmeza - seria uma estopada de conseqüências provavelmente mortais, se as farçolices do poeta Duarte
não destemperassem, com o sal de sua graça laxante, o travor da droga, e o nosso fígado.
Os artigos anteriores aqui estampados, patentearam, aos olhos de todos, de modo irrecusável, a
absoluta incapacidade com que o patrono-mor e o patrono suplementar dos recorrentes encararam a questão e conduziram o seu debate, quer na
imprensa, como perante o Poder que vai julgá-la. Tudo quanto lhes seria talvez proveitoso e útil na defesa da ingrata causa - eles ineptamente
desprezaram, ateando-se a fatos, a matérias, a provas, a doutrinas que se voltaram contra eles, estrondamente, como numa vaia.
E não foram apenas incapazes na maneira por que conduziram o debate: mas também assim se
revelaram na falta de compostura com que, pedindo uma reparação a que não têm direito, se dirigiram aos egrégios varões senatórios que vão decidir
do pleito.
Todos sabem que os mesmos advogados e que patrocinaram, junto aos mesmos juízes, a causa da
Câmara de S. Vicente no Recurso interposto contra a lei que concedeu um privilégio nulo, por sua evidente ilegalidade, a particulares, para a
construção e arrendamento de um Matadouro Modelo naquele município.
Todos sabem, igualmente, que o Senado, bem apreciando os fundamentos jurídicos em que se baseava
inabalavelmente o Recurso, deu-lhe provimento, fulminando a Câmara vicentina com a Resolução revocatória de sua lei inconstitucional.
Pois bem: agora, ao recorrerem contra a lei santista, relembram eles ao Senado, amargamente, o
ato que este expediu contra a Municipalidade de S. Vicente. Com uma inabilidade pasmosa, queixam-se eles da descortesia e pouca polidez com que o
Executivo de Santos tratou a Câmara Municipal vizinha, insurgindo-se contra os privativos interesses desta, o que importa em admoestar o próprio
Senado, o qual, pelo provimento dado ao Recurso, foi impolido e descortês para com os representantes da terra de Martim
Affonso, não reconhecendo legítimo e legal o modo por que eles procuraram defender tais privativos interesses.
E assim, à míngua de predicados profissionais, vão eles comprometendo o êxito das questões que
lhes confiam os homens crédulos da comarca. É claro que para pleitear causas solicitadas à porta dos xadrezes não é indispensável que o advogado
saiba jurisprudência como Lafayette e escreva esplendidamente como Latino, mas, na defesa dos direitos alheios, ele precisa expor aos juízes, com
clareza, e com lógica, em linguagem, se não eloqüente, ao menos persuasiva, os fundamentos jurídicos e morais que concorrem em prol de seu
cliente.
O contrário seria pôr em perigo a liberdade ou a fortuna dos que se acolhem à sombra de sua
capacidade e de seu saber, atributos que a investidura do grau científico supõe e a fascinante lauréola do diploma oficial privilegia.
Mas a causa de que tratamos não pode ser equiparada aos processos-crimes de vagabundos sem eira
nem beira, aos quais, para alardear em público uma operosidade profissional contínua, que de fato não existe - arranca-se uma procuração a fim de
defendê-los no plenário, onde eles, afinal, ficam quase sempre indefesos e, por isso mesmo, o júri vê-se na indeclinável obrigação de absolvê-los,
com toda a justiça.
Aqui, ao contrário, trata-se de acusações feitas à administração pública de um dos mais
importantes municípios do Brasil, a homens de prol, posicionados merecidamente no alto conceito de nossa sociedade; e tais acusações precisavam,
portanto, ser levantadas por cidadãos de responsabilidades notórias e deviam ser patrocinadas por advogados de peso, de critério e de preparo, que
soubessem exprimir, clara e corretamente, aquilo que pensam, e não a mequetrefes chegados de arrebate à nossa terra, onde pretendem, com as suas
frases barulhentas e ocas como sinos badalejando no alto dos campanários, aturdir e atordoar o espírito público, que é, afinal de contas, o
supremo juiz de todas as causas, superposto soberanamente a todas as decisões e a todos os litígios. Tais processos de agir e tais patronos não se
adjetivam com os costumes e a moral de nosso povo.
O cavalheiro de Chardin, que estacionou por longo tempo na Corte de Solimão III,
(N.E.: a dinastia Otomana, na antiga Pérsia - atual Turquia - teve apenas dois governantes com esse
nome, ou Suleiman, ou ainda Süleyman. O primeiro, de 1520 a 1566; e o segundo, de 1687 a
1691, ou de 1666 a 1894 segundo outras fontes, que o indicam coroado em 1/11/1666
com o título de Xá Safi II. Já o cavalheiro seria Jean-Baptiste Chardin, ou Sir John
Cardin, francês nascido em 16/11/1643 e falecido em 5/1/1713, que de 1664 a 1670 esteve na Pérsia e na Índia, assim tendo contato com Suleiman; em
1671, publicou o relato Le Couronnement de Soleimaan, ou A Coroação de Shah Soleiman)
e escreveu a história mais exata dos costumes do povo persa, conta-nos que certa manhã alguns oficiais inferiores de artilharia, precisando fazer
uma petição ao primeiro-ministro, recorreram à sabedoria jurisprudencial de um advogado famoso.
Mas, a petição estava redigida em termos tão confusos e tão complicados, que o ministro,
indignado por não entendê-la bem, mandou aplicar duzentas vigorosas bastonadas no desventurado doutor. Depois, fê-lo conduzir à sua presença e
falou-lhe severamente, neste teor: "Um grão-vizir tem mais que fazer que penetrar no caos
dos requerimentos que tu escreves. Usa de um estilo mais claro e mais simples, ou deixa de escrever para o público: ao contrário, far-te-ei cortar
as mãos".
Se os patronos dos recorrentes santistas vivessem no tempo e na Corte de Solimão III, com toda a
certeza o primeiro-ministro ter-lhes-ia mandado cortar... os pés!
Imagem: trecho do livro O Matadouro
Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 38) |