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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Matadouro - Biblioteca NM
Histórias do Matadouro Municipal (2-e)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEscrito apenas dois anos após a entrada em funcionamento do Matadouro Municipal de Santos, este raro livro reúne uma série de editoriais publicados pelo autor, o jornalista Alberto Sousa, no jornal santista A Tribuna, em outubro de 1917. A obra foi publicada em 1918, com impressão na Typographia Piratininga, da capital paulista.

O exemplar foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela biblioteca pública que leva o nome desse jornalista, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 29 a 36):

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O Matadouro Modelo de Santos

Alberto Sousa

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V - Novas considerações sobre a questão de privilégio

Cremos ter provado exaustivamente - a ponto de não deixar a menor dúvida no espírito dos que acompanham de boa fé este debate - que o único privilégio concedido pela Municipalidade à Companhia Concessionária do Matadouro Modelo é o da matança e beneficiamento do gado para o consumo local. É este um privilégio de que a Câmara vem gozando, sem contestação alguma, desde tempos imemoriais e que agora transferiu, por tempo certo, a terceiros.

Se as Câmaras Municipais não pudessem arrendar os serviços públicos que administram, e com eles os privilégios correspondentes - a que espécie de serviços, então, se referia o legislador quando elaborou o artigo 17, n. 7, da Lei Orgânica dos Municípios?

Que serviços são esses que, exigindo o emprego de avultados capitais, podem ser objeto de privilégio outorgado pelas municipalidades? Compreende-se bem que o que o legislador pretendeu foi facilitar aos municípios, quando lutassem com falta de recursos orçamentários para a execução de obras e serviços de grande porte, os meios de realizarem tais obras e tais serviços com o auxílio dos capitais particulares que estão sempre prontos a semelhantes empreendimentos, desde que se vejam rodeados de garantias legais insofismáveis. É esse exatamente o caso de que ora nos ocupamos.

Mas o patrono suplementar dos recorrentes, o Duarte, o conhecido poeta das constitucionalidades ilegais, das pérolas de safiras e das cebolas de batatas - não o entende assim.

Para ele, que só apóia os seus incompreensíveis argumentos em fatos mentirosos, aos quais é suficiente opor-se apenas a prova singela da verdade, sem mais comentários, a nossa Municipalidade concedeu à Companhia arrendatária vários monstruosos privilégios, que enumera longamente, sem dizer em que cláusula do contrato encontrou qualquer disposição que torne real  existência desses privilégios.

A arrendatária não pediu, a Municipalidade não concedeu e o contrato não garante outro privilégio que não seja exclusivamente o de matança e beneficiamento de gado PARA O CONSUMO LOCAL, conforme as disposições da cláusula XXIX, letra E, do referido contrato.

Todavia, no Memorial que subiu ao Senado, afirma-se que a Municipalidade concedeu, fora da Constituição e das leis ordinárias, "em favor do contratante", os seguintes benefícios:

1º) o estabelecimento de indústrias anexas ao Matadouro Modelo, como seriam  exportação de carnes e a compra e tratamento dos subprodutos da matança;

2º) a exploração exclusiva (mas que grossa peta!) de frigoríficos para carnes, peixes, legumes e frutas, junto ao Mercado Municipal;

3º) o estabelecimento de taxas gradativas sobre a matança, quando nem sequer de leve a lei que autorizou a concorrência, ou mesmo outras que lhe pudessem influir (que correção gramatical, que puritanismo de linguagem!), nenhuma se referiu a semelhante circunstância.

Basta ler com ânimo desprevenido essas acusações, para concluir-se de sua completa falsidade. Os dois primeiros favores que a amara, com grande escândalo dos recorrentes, concedeu ilegalmente à arrendatária, não são favores, são ônus, ou, por outra, são favores, mas não concedidos pela Municipalidade à Companhia, e sim dispensados por esta ao Município, como passamos a demonstrar.

A exportação de carnes que, nos termos das bases para a concorrência, poderá ser explorada simultaneamente com o serviço de matança do gado necessário à alimentação do povo local, não constitui privilégio algum ou favor especial outorgado à concessionária pela Câmara. Todo e qualquer indivíduo tem o direito de estabelecer no Município quantos matadouros quiser para abater gado e exportá-lo: o que não pode é concorrer com a Companhia na matança destinada ao consumo municipal - que é o privilégio de que ela dispõe e defende legitimamente.

A exportação de carnes é uma faculdade que tem a contratante, não é uma obrigação; ela pode, ou não, explorar essa indústria e com ela podem concorrer todos que estejam dispostos a empregar capitais nesse negócio.

Explorando, pois, sem privilégio algum, ou qualquer exclusividade, a indústria da exportação de carnes, a Companhia Frigorífica, longe de receber favores, é quem presta ao Município um benefício incomparável, fomentando o desenvolvimento de suas forças econômicas pela criação de uma indústria nova e arriscando na sua exploração, em concorrência livre com outros que por acaso apareçam com o mesmo fim, os capitais sociais, empatados na construção de edifícios, na aquisição de maquinismos e mais despesas de caráter permanente.

Com a compra, ou o tratamento, dos subprodutos da matança feita no Matadouro Municipal, por motivos de ordem higiênica, ela também não usufrui o gozo de nenhum privilégio, porque os exploradores dos matadouros que, durante a vigência do contrato atual, se estabeleçam no Município para abater gado destinado à exportação, podem livremente manter o mesmo regime, comprando e tratando os subprodutos da matança a preços até mais vantajosos que os que forem fixados na sua tabela pela Companhia Frigorífica.

Quanto ao estabelecimento frigorífico que a contratante construirá, por sua conta, anexo ao Mercado Municipal - onde leu o patrono suplementar qualquer cláusula dispondo sobre o exclusivismo de sua exploração? Esse estabelecimento, cuja construção corresponde a uma das necessidades públicas mais urgentes em nossa terra, onde os ardores do clima estival expõem as aves, as carnes, os peixes, os legumes e as frutas aos processos de uma decomposição rápida, não é abrangido pelo privilégio que a Municipalidade outorgou à Companhia e que se limita - não é demais repeti-lo - à matança e beneficiamento de gado necessário ao consumo de nossa população.

Pode, quem quer que o queira, estabelecer livremente frigoríficos no Município - desde que não se destinem a beneficiar o gado abatido para o consumo local, mas à conservação dos produtos relativos às outras indústrias. A única restrição que o privilégio faz, em todos os casos, à liberdade industrial, é o que se refere à matança e beneficiamento das reses necessárias à alimentação pública municipal.

Entenderá o Duarte, na sua inópia jurídica, que a circunstância de ser localizado no Mercado Municipal o futuro frigorífico - transforma em monopólio a concessão feita à Companhia? O Mercado Municipal é um estabelecimento público, administrado pelo Poder Público, e só este é competente para permitir ali a exploração de qualquer negócio ou indústria.

A Municipalidade precisava de um frigorífico anexo ao estabelecimento; as suas atuais condições financeiras não lhe permitiam realizar agora esse melhoramento inadiável, que representa um benefício público de grande monta; permitiu pois que a concessionária do Matadouro realize essa obra com a capacidade suficiente para atender a todas as necessidades locais no decurso de trinta anos.

Não precisa, por isso, de outros frigoríficos no mesmo Mercado; e nem este possui o terreno indispensável para localizar tantos frigoríficos quantos o despeito partidário ou o interesse individual ferido quiser estabelecer naquele recinto. Ou julgará Duarte que a Câmara é obrigada a permitir que todo o mundo atravanque o Mercado Municipal com estabelecimentos frigoríficos, superiores em número às necessidades reais de nossa população?

Não tendo, pois, nenhum privilégio para explorar exclusivamente estabelecimentos de tal natureza no Município, onde livremente outros podem estabelecer-se com o mesmo negócio -, a arrendatária do Matadouro, propondo-se a executar, no Mercado, o pavilhão anexo de que fala o contratante, e que, com todos os maquinismos e benfeitorias, reverterá à Municipalidade, ao fim do contrato - teve como objetivo principal dotar a nossa terra de um melhoramento de que ela não pode prescindir, e que faça honra à sua administração e ao seu povo.

Pelos modos, porém, os estúpidos opositores às iniciativas dos nossos poderes públicos, pretendem que todas as obras e serviços, dependentes de emprego de capitais, de inteligência e de trabalho, sejam feitos sem compensação alguma para os que neles se aventuram e nem ônus para os que deles se aproveitam.

Relativamente à criação de taxas gradativas sem autorização legal, conforme reza o terceiro item de seu inepto libelo, já pulverizamos completamente em artigos anteriores essa acusação, ao mesmo tempo falsídica e ridícula.

Voltemos, porém, a ela, para que o público avalie de perto o grau de sinceridade com que os adversários da situação municipal estão discutindo este assunto. Diz o dr. Duarte que nenhuma lei autorizou a imposição dessas taxas, nem antes nem depois da concorrência aberta, e que elas, assim como os outros favores de que acabamos de falar, foram exorbitantes da lei que mandou arrendar os serviços do Matadouro.

A lei, escreve o desastrado patrono no seu Memorial desastradíssimo, apenas garantiu ao concorrente cuja proposta fosse escolhida - o arrendamento do Matadouro e a isenção de impostos municipais; e o Poder Executivo se arrogou o direito de conceder outros favores ao proponente escolhido.

Nada mais cinicamente falso. A lei que mandou abrir a concorrência dispõe, no artigo 5º: "A Municipalidade concederá, como favores principais, o arrendamento do atual Matadouro e suas dependências, e a isenção de impostos municipais".

Ora favores principais não são favores exclusivos, e implicam a promessa de favores acessórios. A cobrança de taxas gradativas nem chega a ser favor. Só mesmo por cretinice incurável pode alguém supor que a Câmara Municipal, que sempre cobrou taxas pela matança de gado no seu Matadouro, suprimisse essas taxas no próprio momento em que arrendava a terceiros os serviços executados naquele estabelecimento público! Como poderia a contratante manter tais serviços sem o pagamento das mesmas taxas cobradas pela Municipalidade? Como poderia melhorá-los gradativamente sem o aumento gradativo daquelas taxas?

Ainda, porém, que a criação das taxas fosse um favor feito à contratante e não um direito cobrado pela Municipalidade aos marchantes, o certo é que esse favor, como os outros a que se referem os recorrentes, estava previsto e autorizado pela Lei n. 579, em seu artigo 6º. Quem assegura, como favores principais, o arrendamento do Matadouro e a isenção de impostos, assegura também favores de ordem secundária que, justamente por serem secundários, não foram explicitamente discriminados na lei, ficando ao critério do Executivo fixá-los no contrato, e foi o que se fez.

Mas, além disso, o aumento das taxas foi autorizado, como já dissemos, por disposição expressa da Lei n. 585, de 31 de outubro, que no seu artigo 2º, parágrafo único, mandou que o Regulamento que a acompanhava e foi aprovado pela Câmara conjuntamente com a dita lei, entrasse em vigor desde o dia em que esta fosse publicada.

O art. 8º, do Cap. I, Título VIII, do referido Regulamento, aprovado pela Câmara como um anexo da lei, isto é, como parte integrante e substancial dela, dispõe claramente o seguinte: "Quando realizado o arrendamento do Matadouro, nos termos da Lei n. 579, de 28 de junho de 1916, o prefeito municipal poderá criar taxas adicionais à tabela abaixo, de acordo com os novos serviços que forem sendo organizados".

A lei foi publicada em 3 de novembro do ano passado, mas o Regulamento que lhe está anexo, só saiu a 24 do mesmo mês. Quer dizer que a obrigatoriedade da sua execução, em vez de começar na data da publicação da lei, como esta determinava, começou 21 dias depois, isto em obediência e respeito às prescrições positivas da Lei Orgânica, em seu art. 67. Ora, como já tivemos ocasião de dizer, só a 5 de julho do ano corrente, cerca de oito meses depois de publicado o Reg. e de nove após a promulgação da lei, é que o prefeito autorizou o aumento das taxas de matança do Matadouro.

Conclui-se, pois:

1º) que a lei que abriu a concorrência, concedendo explicitamente aos arrendatários dois favores principais, prometia implicitamente alguns favores acessórios, entre esses o de aumentar a taxa de matança;

2º) que, mesmo sem considerar esse aumento como um direito decorrente do texto da referida lei, é claro que o serviço de matança tinha que ser pago, como até então, pelos interessados, e que é o cúmulo da estupidez pretender que tal serviço deva ser feito gratuitamente, sob a falsa alegação de ter sido revogada a legislação anterior que fixava as taxas;

3º) que a Lei 585 e o seu Regulamento, aquela de 3 de novembro de 1916 e este de 24 do mesmo mês e ano, autorizavam a Prefeitura a aumentar as taxas em questão, depois de efetuado o arrendamento;

4º) que só muitos meses depois de terem sido publicados e estarem em pleno vigor a dita lei e o dito Reg., é que a concessionária requereu, e o prefeito deferiu, o malsinado aumento.

Só indivíduos despojados do mais elementar critério - e impermeáveis ao sentimento do pudor - seriam capazes, portanto, de afirmar o contrário do que avançamos, mentindo ao Egrégio Senado Estadual e mentindo ao povo de Santos.

Quer outorgando legalmente um privilégio legítimo à Companhia Frigorífica; quer concedendo-lhe favores não privilegiados; quer autorizando-a a aumentar as taxas de matança do Matadouro - a Câmara Municipal e o digno prefeito agiram escrupulosamente dentro da lei e de todos os princípios da mais perfeita moral.

Imagem: trecho do livro O Matadouro Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 36)