VII - A necessidade do arrendamento
A que ficou reduzida, afinal de contas,
a tremenda acusação feita à Câmara Municipal, de que ela, por um ato inconstitucional, outorgara a terceiros um privilégio escandaloso, imoral e
indébito? A pó sutil, a poeira impalpável, de que não resta sequer o mais insignificante vestígio no seio da opinião pública.
Efetivamente, mais do que as nossas palavras, a que apenas o calor da convicção inflama e anima,
os fatos argumentaram vitoriosamente. Aos olhos de todos os homens de boa fé ficou evidente que a Municipalidade não concedeu a Alberto Reissman,
nem, portanto, à Companhia que ele incorporou, privilégio de espécie alguma, para a matança e beneficiamento das reses destinadas ao consumo
local; ela nada mais fez que transferir ao arrendatário por trinta anos, e mediante vantagens de primeira ordem, os direitos que lhe competiam, e
que ninguém lhe pode contestar a sério, de administrar, diretamente ou por terceiros, um serviço público que está dentro das suas atribuições
autonômicas e pelo qual cobra taxas fixadas previamente em lei.
Não criou nenhum privilégio novo em favor de quem quer que seja; manteve apenas, em poder de
outrem, o privilégio de que ela mesma já gozava e que é inerente à natureza do serviço municipal que ela executava diretamente, sem contestação ou
concorrência alguma.
Poder-se-á objetar-nos que, passando a ser explorado por particulares, tal serviço perdeu o seu
caráter público para transformar-se indubitavelmente numa indústria - e indústria rendosíssima, a julgar pelos cálculos desabalados de um dos
patronos dos munícipes recorrentes.
É certo que o grande móvel da indústria é o interesse pessoal; o que a caracteriza é a
exploração visando lucro. Basta, porém, refletir levemente sobre o caso santista, para se ver que ele não está compreendido nesta hipótese.
A Companhia contratante não visa, nem pode tirar lucro nenhum, do serviço de matança e
beneficiamento de gado no Matadouro Modelo. Ela, pelo seu contrato, é obrigada a assegurar à Municipalidade, durante o tempo da concessão, uma
renda anual pelo menos igual à que o antigo Matadouro lhe proporcionava.
Com o aumento progressivo das taxas, é claro que a Companhia deve usufruir, depois das obras
totalmente executadas, e se o movimento de matança não decrescer - uma renda bruta mais alta que a que a Câmara obtinha antes, mas a despesa
também subirá proporcionalmente, à medida que se forem instalando os melhoramentos em via de execução.
Da renda bruta sairão para os cofres municipais as cotas previstas no contrato, as quais, como
já dissemos, não podem ser inferiores à arrecadação verificada até a data da concessão. O restante é para fazer face à amortização do capital
empregado; às não pequenas despesas com os novos e importantes serviços introduzidos no Matadouro, como currais, mangueiras e câmaras frigoríficas
de que os marchantes poderão fazer uso gratuitamente para o seu gado, nos termos do contrato; e aos gastos, também de caráter permanente, com a
fiscalização municipal do estabelecimento e todas as suas dependências.
É óbvio, pois, que do privilégio decorrente da concessão não vai tirar a concessionária nenhum
lucro que transforme, de fato, em exploração industrial o serviço público que lhe foi arrendado. Os lucros que a contratante objetiva são os que
ela espera obter da exploração das indústrias anexas, das quais não tem exclusividade, constituindo a exportação do gado abatido a fonte principal
dessa exploração, que será feita, aliás, com todos os riscos a que a livre concorrência pode expô-la.
Posta a questão nos seus verdadeiros termos, o que se faz mister é indagar se a Municipalidade,
arrendando o Matadouro e contratando, com terceiros, o serviço respectivo, atendeu ou não a uma necessidade pública inadiável. Não se pode negar
que sim.
O Matadouro antigo, que está sendo completamente substituído aos poucos, há muito que não
corresponde aos fins a que é destinado. Não possui as acomodações imprescindíveis ao descanso e reparadora alimentação do gado; e empregam-se nele
velhos e condenados processos de matança que, além de cruéis, comprometiam a vitalidade orgânica das carnes abatidas.
Apesar da fiscalização cotidiana, da vigilância rigorosa, mantida severamente pela Administração
Municipal, a sua higiene é, e não pode deixar de ser, deficiente, não porque os diversos funcionários sejam relaxados, mas devido à
imprestabilidade do estabelecimento, que está em contradição completa com todas as modernas conquistas sanitárias.
Era preciso substituí-lo quanto antes, dotando nossa terra com um Matadouro à altura de nosso
tempo e de nosso progresso. Como, porém, levar a cabo eficazmente uma tarefa de tamanho porte, se as rendas orçamentárias da Municipalidade já não
chegam para atender à multiplicidade crescente dos serviços públicos, num Município que se desenvolve a olhos vistos e pasmosamente?
Urgindo a solução para o caso, a Administração Municipal, de estudo em estudo, achou-a
finalmente, e foi feliz no seu achado. O arrendamento do Matadouro, e a cessão do privilégio para abater e beneficiar o gado necessário ao consumo
local, mediante favores que compensassem os capitais empregados nas obras a executar, vieram permitir ao Município - sem ônus de espécie alguma
para o Tesouro, e sem novos encargos para o contribuinte - a realização de um melhoramento que, como já demonstramos em artigo anterior, abre ao
futuro de Santos grandes perspectivas econômicas, desenvolvendo auspiciosamente o seu progresso geral.
Somente louvores, somente palmas, aplausos, palavras de entusiasmo e de solidariedade merecem,
pois, os beneméritos administradores surgidos do seio do Partido Municipal - agremiação política que, se não numerasse outros títulos a
recomendarem-na à simpatia pública, bastava-lhe a grande obra que se está executando, sob a sua responsabilidade, para perenizar o seu inabalável
prestígio em nossa terra.
Mas, já é tempo de cumprirmos a nossa promessa, examinando o Recurso dirigido pelo primeiro
patrono dos recorrentes, o dr. Corrêa Lima. Compreendemos perfeitamente que tal promessa tenha soado aos seus ouvidos como uma ameaça pouco
agradável, pondo-lhe o coração sobressaltado aos pulos. COnfessamos de antemão que é justo o seu receio, porque, tendo assacado, em termos
desrespeitosos e desaforados, as mais graves acusações à Municipalidade santista, não pode contar com a nossa benevolência. Temos que revidar aos
seus ataques com as vantagens tresdobradas que assistem aos que foram injustamente ofendidos.
Aliás, o Recurso que Corrêa interpôs, do ato da Administração local para o Senado, é um
documento como igual jamais deparamos em nossa carreira jornalística, assaz longa. Nele se estampa vivamente a mais crassa ignorância reunida à
mais despejada filáucia.
Quem se atreve a apresentar aos homens públicos de S. Paulo e aos habitantes de Santos uma obra
de tão ordinário quilate, faz um juízo afrontoso da cultura daqueles e do bom senso destes.
O poeta Duarte, no seu famoso Memorial, basta eflorescência de memoráveis asneiras, é-lhe muito
superior porque ao menos cita e transcreve com fidelidade trechos corriqueiros e banais autores.
No Recurso de Lima, nem mesmo as transcrições se salvam, como demonstraremos, para vergonha
perpétua desse charlatão audacioso que deprime a dignidade do hospitaleiro povo santista, discutindo assuntos que não conhece pela rama sequer,
agravando a honra de ilustres concidadãos nossos, com os quais nunca privou, e querendo inculcar-se como escritor de vastas letras e preparo
sólido,quando não passa de um paparreta frívolo e pedante, cuja imoderada presunção vai agora receber o merecido castigo.
Analisaremos detidamente o seu Recurso debaixo de todos os aspectos: literário, lógico,
jurídico, filosófico, histórico, humorístico e, sobretudo, asnático - que é o seu aspecto fundamental. E com essa análise final, daremos por
concluída a nossa tarefa.
Imagem: trecho do livro O Matadouro
Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 43) |