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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SAGA NIPÔNICA
Os invasores do Campo Grande

Um relato de 1914...

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Em 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, muitos dos imigrantes pioneiros haviam se estabelecido em terras baratas, semi-pantanosas, como era o bairro do Campo Grande (depois espalhando-se pelo Marapé, Macuco-Estuário e Ponta da Praia), e tal fato rendeu esta curiosa matéria na primeira página do jornal A Tribuna de 22 de março de 1914 (ortografia atualizada nesta transcrição):

 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

A invasão amarela no Campo Grande

Um pedaço do Japão em Santos - A influência benéfica dos nipões no famigerado bairro

É de recente data a chegada das primeiras levas de imigrantes japoneses neste Estado.

Um belo dia aqui aportou o Tatssú-Maru, trazendo no seu bojo algumas centenas de nipões, que logo se espalharam pelo interior do Estado, empregando-se na cultura do café, nas fazendas.

Bem depressa, porém, verificaram os bravos súditos do Mikado que o rude trabalho nas propriedades agrícolas não lhes convinha, por motivos que ainda não se acham suficientemente explicados, e abandonaram o interior, vindo para Santos, cuja vida intensa os atraía. Em menos de dois anos os colonos nipônicos estavam quase todo neste porto, trabalhando uns na Docas, empregando-se outros em casas particulares, como fâmulos.

O japonês é como a formiga: pensa no futuro, não desperdiça o que ganha, e daí as contínuas remessas de dinheiro que faz para os parentes que lá ficaram nas longínquas terras do Império do Sol Nascente.

Essas remessas, segundo informações que obtivemos há meses, atingiam a cerca de 36 contos mensais, sinal evidente de que os japoneses sabem trabalhar, sabem ganhar e sabem poupar.

Cálculos mais ou menos exatos dão hoje para Santos uma colônia nipônica superior a mil indivíduos, em sua maioria homens válidos, rapagões robustos, sóbrios e de uma resistência espantosa para os mais árduos trabalhos.

Raça exótica no Brasil, gente de hábitos e língua completamente diversos dos nossos, os amarelos vivem aqui completamente isolados do resto da população. O Campo Grande, bairro outrora habitado quase exclusivamente por vadios e desordeiros, foi pelos nipões escolhido para residência.

Em poucos meses o bairro famigerado ficou repleto de pitorescos chalés de madeira, cobertos de folha-de-Flandres, chalés que lembram, pela sua arquitetura, as confortáveis vivendas de que nos fala Loti, na sua Madame Chrysanthéme.

Verdade seja dita, porém, que essas semelhanças referem-se apenas à forma dada pelos japoneses às suas casinholas, porquanto, a respeito de conforto ou de higiene, o que existe no Campo Grande é tudo quanto há de mais primitivo.

As habitações nipônicas do Campo Grande constam apenas de um ou dois quartos de dormir, um alpendre que serve de sala de jantar e de palestra, e de uma cozinha. Uma porta dá acesso à habitação, que recebe luz solar por meio de algumas vigias estreitas abertas nas paredes e que à noite são fechadas como se fossem alçapões.

Nessas bibocas vivem, às vezes, duas e três famílias, em perfeita comunhão de idéias e de... corpos, pois as camas são largos estrados de madeira, que ocupam duas terças partes do aposento e que se elevam a cerca de meio metro do solo.

O japonês desconhece o uso do colchão. Uma simples esteirinha, trazida de sua pátria, lhe serve. Cada tarimba daquelas dá para uma família inteira. Ali vive feliz a gente nipônica, que não cuida de outra coisa senão de trabalhar e de ganhar dinheiro.

O Campo Grande lucrou muito com a invasão nipônica. A polícia pouco tem agora que fazer no bairro, pois os japoneses não brigam, não se metem com a vida dos demais habitantes do bairro.

Na visita que anteontem fizemos a esse pedaço do Japão metido em terras santistas, notamos que a falada sobriedade do japonês é pura fantasia de escritores esnobes.

Os nipões bebem à farta e já sabem que a cachaça é a melhor bebida nacional. Eram oito horas quando lá chegamos e já encontramos um pau-d'água amarelo a emborcar sucessivos cálices de caninha, de mistura com outros tantos copos de cerveja Guaraneza.

- São uns freguesões de bebidas - afirmou-nos uma simpática portuguesa proprietária de um botequim instalado à beira da estrada.

Mas esse extraordinário amor dos japoneses pela nossa bebida nacional explica-se: eles são assíduos freqüentadores dos sambas ruidosos organizados pelos brasileiros e portugueses que residem no bairro, e ninguém compreende samba sem cachaça...


Algumas famílias japonesas, residentes no Campo Grande

Foto publicada com a matéria

Numa das casas japonesas que visitamos encontramos uma jovem parturiente a amamentar um pequerrucho nascido cinco dias antes. Ninguém se lembrara de chamar parteira ou médico para assisti-la.

De resto, os japoneses do Campo Grande medicam-se eles próprios.

Se uma criança está a tremer com febre alta, se um rapaz sente dores de cabeça, o chefe da tribo vai ao samburá de vime em que guarda a roupa e o dinheiro, saca do fundo uma afiada navalha de barba e com ela faz algumas dúzias de riscos na pele do enfermo, à guisa de ventosa sagrada.

É para dar vazão ao sangue mau - dizem eles.

Os petizes amarelos, mal atingem os oito anos, são mandados à escola, para aprenderem o português. As mamãs capricham em apresentá-los muito limpos e bem calçados. Os pequenos, muito vivos e inteligentes, já falam quase todos o nosso idioma, e é com muito orgulho que nos respondem quando indagamos se são japoneses: - Eu sou brasileiro; nasci aqui em Santos.

A nossa chegada ao Campo Grande, o fotógrafo a suar em bica, com a máquina a tiracolo - pôs em alvoroço aquela boa gente. A criançada rodeou-nos, curiosa, a rir muito, muito alegre.

O pau-d'água emborcou o seu vigésimo cálice de paraty e, às guinadas, aproximou-se de nós, para nos obrigar a beber com ele. Fizemos-lhe a vontade.

Depois veio com um prato de bolos feitos de farinha de arroz e ofereceu-nos. Em troca da amabilidade, convidamo-lo a tirar o retrato. Foi um rebuliço. Todos queriam ser fotografados, mormente depois de saberem que não custava nada.

As mulheres correram logo para suas casas, a fim de fazerem a toilette; os homens foram vestir seus trajes domingueiros e fazer a barba.

Interessante o modo por que se barbeiam. Passam a navalha contra o pelo, de baixo para cima, e não usam sabão.

Pedimos a um que vestisse o quimono. Recusou-se. Preferiu o paletó saco, de casimira preta.

Indagamos o motivo da recusa.

- Brasileiro não usa quimono - disse-nos.


Uma das barcas usadas pelos japoneses para suas pescarias em alto mar

Foto publicada com a matéria

E é talvez para imitar os nossos patrícios que os japoneses são hoje encontrados em todas as profissões: cocheiros de carroças, choferes, garçons e até pescadores.

Os seus barcos de pesca são do modelo do samak, empregado como meio de transporte nas corredeiras do interior das ilhas nipônicas.

Existem dois desses barcos em Santos, nos quais os japoneses saem diariamente para o alto mar, de onde trazem sempre grande quantidade de peixe, que vendem por bom preço.

Bem hajam os bravos nipões, que sabem honrar no exterior a sua pátria, fazendo-se admirar pelo seu trabalho honrado e pelo seu amor à ordem.


Habitações de japoneses, no Campo Grande

Foto publicada com a matéria

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