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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PERSONAGENS
Tipos curiosos (22)

Nos primeiros anos do século XX, o Campo Grande era o que seu nome significa: um grande descampado, com muito mato, áreas pantanosas, quase deserto, começando a ser saneado pelos canais 1 e 2. Só durante a Primeira Guerra Mundial é que a colônia japonesa ali se estabeleceria com suas chácaras, dando ao bairro um começo de organização urbana e afastando os elementos perniciosos que por ali se acoitavam.

Esta entrevista foi publicada pelo jornal santista A Tribuna, na página 5 da edição de 15 de fevereiro de 1913 (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria original

JOÃO PASSARINHO

O terror do Campo Grande

O famigerado desordeiro, entrincheirado em um casebre, recebe a policia à bala

João Passarinho... - Não há no Campo Grande quem não trema, ao ouvir pronunciar este nome.

João Passarinho conseguiu, a poder de bordoadas e de facadas, conquistar no famoso bairro, onde reside a ralé social escorraçada da cidade, o bastão de chefe onipotente.

Ali, no meio da capadoçada feroz, é João Passarinho uma espécie de "ras", a quem pessoa alguma se atreve a desobedecer.

Ele não trabalha, não ganha vintém e vive à tripa forra. Se quer beber, entra em qualquer casa e exige cachaça. Dão-lha imediatamente e ai! do desgraçado que fizer cara feia...

É tal o terror que desperta a figura sinistra desse bandido, que os demais cafajestes sujeitam-se a ceder-lhe as respectivas companheiras se ele julgar que alguma delas merece a honra de tornar-se a sua favorita.

João Passarinho reside há muito tempo no Campo Grande. Um pardieiro, feito de restos de caixões de cebolas e de carcomidas folhas-de-Flandres, serve-lhe de toca.

Ali vegeta em companhia de uma rapariga alemã, nova, simpática, cujo coração se deixou tocar pelas façanhas do retinto desordeiro profissional.

Quem é João Passarinho - O famigerado capadócio que é hoje o terror do Campo Grande foi, em tempos, soldado do Exército, tendo estado destacado na vetusta fortaleza que defende a entrada da barra deste porto.

Conta-se dele que, quando pretendia vir à noite para a cidade, para a gandaia, burlando a vigilância dos oficiais e sentinelas da praça de guerra, atirava-se ao mar e atravessava a nado o canal, cuja correnteza vencia a largas braçadas.

Uma vez em terra, vestia a roupa que trazia à cabeça enquanto nadava, e ia espairecer no Beco da Cachaça.

Nessas noites, é claro, havia sempre desordem no famoso ponto de reunião dos desocupados.

Afinal, João Passarinho, cuja fé de ofício conta um sem-número de prisões e castigos, abandonou a farda e por aqui ficou, a dar trabalho à polícia.

Elegeu o Campo Grande para o seu quartel-general.

Ali pratica continuadamente toda casta de violências, sem que a maior parte das vezes a polícia lhe possa deitar as mãos.

Um encontro - Anteontem, à tarde, os agentes de polícia César Berri e Torres Filho foram, em diligência, ao Campo Grande.

Em caminho encontraram-se com o João Passarinho, que se dirigia ao seu casebre.

O agente César, que conhecia Passarinho, apontou-o ao seu colega. Torres Filho, não querendo perder a oportunidade de engaiolar o terrível desordeiro, a quem a polícia procurava há muito, resolveu conduzir à cadeia o João Passarinho.

O bandido recebeu a intimação para acompanhar o agente sem demonstrar a menor admiração.

Pediu, apenas, que o deixassem ir à casa, a fim de vestir o casaco.

O agente Torres Filho deu-lhe a licença pedida e ficou à espera, junto da porta da casa de João Passarinho.

O agente César Berri, que conhece perfeitamente o famigerado Passarinho, fez então ver a seu colega que seria uma temeridade prender o valentão no seu próprio reduto.

João resistiria, certamente, e teriam ambos de lançar mão dos respectivos revólveres. Tão convincentes foram as palavras de Berri, que Torres Filho desistiu da idéia de prender João Passarinho.

Voltaram os agentes para a cidade e o terror do Campo Grande lá ficou, calmo e sorridente, senhor da sua onipotência.

Mas nem por isso ele se julgou seguro no teatro das suas façanhas, e tanto assim que, mal os dois agentes lhe viraram as costas, correu à sua casa, preparou a trouxa e, fazendo-se acompanhar da amante, foi dormir em outro casebre, cujos proprietários desalojou.

O agente Torres Filho, ao regressar à cidade, narrou o que se dera no Campo Grande a seu pai, que também é funcionário da polícia paulistana e se acha atualmente prestando serviços nesta cidade.

Torres, juntamente com o investigador policial da Vila Mathias, sr. Olívio de Freitas, e os agentes Marques e Dantas, seguiu, à noite de anteontem, para o Campo Grande.

Acompanhavam-no quatro praças da Guarda Cívica.

Depois de percorrerem um grande trecho do bairro, acossados pela canzoada bravia que lhes atacava as pernas na escuridão da noite, os policiais chegaram, afinal, à residência de João Passarinho.

Cercaram a casa e bateram.

Passaram alguns minutos, começaram a surgir à porta os moradores da choça, negros desocupados, pretas quase nuas, imundas.

O pessoal foi logo interrogado sobre o paradeiro de João Passarinho. Ninguém sabia dele. Afinal, após um hábil interrogatório, conseguiu o agente Torres que um dos capadócios contasse onde se ocultava João Passarinho.

Este, escoltado por mais seis desordeiros como ele, aquartelara em um outro casebre, onde se achava alerta, disposto a vender caro a sua liberdade.

O grupo de agentes e policiais seguiu imediatamente para a toca da fera.

Recepção à bala - Após longa caminhada, chegaram à casa indicada e cercaram-na. O agente Torres, de revólver em punho, bateu à porta, ordenando que a abrissem, pois a polícia ali estava. Ouviram-se passos apressados no interior, vozes abafadas, e, repentinamente, no silêncio daquela noite tenebrosa e sinistra, rompeu cerrado tiroteio.

Os sitiantes recuaram, a fim de se abrigarem nas matas próximas, e por sua vez dispararam os seus revólveres.

Os que cercavam a casa pelos fundos, ouvindo os tiros, abandonaram seus postos, para correrem em socorro dos companheiros, que julgavam em maus lençóis, às voltas com os bandidos.

Essa manobra salvou João Passarinho.

Conheceu, seu trouxa?"... - O famigerado desordeiro, auxiliado pelos seus asseclas, continuava o tiroteio, enquanto o agente Torres e o inspetor Olívio, ousadamente, procuravam aproximar-se da porta da casa, para arrombá-la e tomar de assalto o reduto dos bandidos.

Mas João Passarinho, que já percebera achar-se desguarnecida a porta dos fundos do rancho, resolveu tentar por ali a retirada.

Formou o seu pessoal, e como uma avalanche humana, forçou a saída, desaparecendo pouco depois na escuridão da noite, depois de disparar mais alguns tiros.

Os agentes, que lhes descobriram a manobra, perseguiram-nos, mas bem depressa perderam a pista.

Quando, desanimados, iam regressar, lá ao longe, dentre as touceiras altas da samambaia, uma voz escarninha se fez ouvir, como em desafio: - Conheceu, seu trouxa?!...

Era a voz de João Passarinho.

Esta madrugada, deve ser efetuada uma nova diligência, para prender o terrível facínora.