Imagem: reprodução parcial da matéria original
"Cuántos granos de café, cuántas gotas salobres de
sudor? Talvez el mar se llenaria, pero la tierra no" - (O porto na literatura)
Adelto Gonçalves
I
"Ia o negro Doroteu com sua negra Inácia, pela beira do
cais. Era o cais de Santos, os armazéns das Docas a se perderem de vista, repletos de sacos de café, de cachos de bananas, de fardos de algodão".
Devo a Jorge Amado os primeiros passeios poéticos pelo cais de Santos. Era ainda
adolescente, conhecia quase todo o cais do porto, guiava-me por seus marcos históricos, o Cais do Valongo, o relógio da
Western Telegraph, a torre da Bolsa de Café, o prédio da Alfândega, a
imagem da santa, mas foi com Jorge Amado, ao ler Agonia da Noite da trilogia Os Subterrâneos da Liberdade,
que, de repente, descobri que daquilo se poderia arrancar poesia. Desde então, a idéia de escrever um romance sobre o cais
de Santos nunca mais me saiu da cabeça. A cada leitura, a vontade se reforçava.
Pouco depois, caiu-me nas mãos uma antologia de poetas santistas que trazia um poema
de Rui Ribeiro Couto.
"Nasci junto ao porto, ouvindo o barulho dos embarques.
Os pesados carretões de café
Sacudiam as ruas, faziam trepidar o meu berço.
Cresci junto ao porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
Deixava longas ressonâncias na minha rua.
Brinquei de pegador entre os vagões das Docas.
Os grãos de café, perdidos no lajedo
Eram pedrinhas que eu atirava nos outros meninos.
As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite
Faziam sonhar (tantas mercadorias!)
E me ensinavam a poesia do comércio
Sou bem teu filho, ó cidade marítima
Tenho no sangue o instinto da partida
O amor dos estrangeiros e das nações..."
Esses versos de Ribeiro Couto e a prosa de Jorge Amado me fascinaram durante muito
tempo e ainda hoje arrancam-me emoção, talvez pela evocação da infância que cada palavra tem o dom mágico de provocar. A aliança entre a visão dos
armazéns a se perderem de vista e o apito triste dos cargueiros que partiam produziam-me uma emoção que quase sempre terminava numa pergunta
desolada: por que não escrever um romance sobre o cais do porto de Santos? Foi assim que, depois de dez anos e indecisões, cinco ou seis cadernos
escolares totalmente escritos em letra miúda, saiu o texto final de Os Vira-latas da Madrugada, meu primeiro romance.
II
Em 1980, esse livro ganhou o Prêmio José Lins do Rego para Romances e, como
recompensa, a Livraria José Olympio Editora resolveu editá-lo. Então, em fins de abril de 1981, compareci à sede da José Olympio, no Rio, para
participar de seu lançamento.
Foi nesse dia que, sem querer, descobri que participava de uma feliz coincidência. Na
sede da José Olympio, na Praia de Botafogo, de repente, vi-me sentado ao lado de José Olympio Pereira Filho e Afonso Arinos de Melo Franco. Ao me
saber santista - e ainda mais jornalista de A Tribuna - Afonso Arinos começou a me perguntar de Álvaro Augusto Lopes,
crítico literário do tempo em que a crítica literária no Brasil era mesmo feita com rigor e maestria, de Geraldo
Ferraz, de Ribeiro Couto, de Martins Fontes.
Mas, claro, cada pergunta era só um pretexto para que mestre Arinos, com sua voz
pausada, pudesse ele mesmo contar sobre essas figuras. Foi, então, em meio a essa conversa amena de fim de tarde, entre um chá e outro, que José
Olympio, com a lucidez de seus 78 anos de então, constatou a coincidência: a sua editora completava, em 81, 50 anos de uma história que se confunde
com a história da própria literatura brasileira e, exatamente meio século depois, lançava um romance passado no cais de Santos, a exemplo do que
fizera em seus primeiros passos com Navios Iluminados, de Ranulpho Prata.
Não fora a primeira vez que eu ouvira falar de Navios Iluminados,
Roldão Mendes Rosa já me havia falado desse livro e de alguns pontos coincidentes com Os Vira-latas da
Madrugada. Mas a confissão de José Olympio surpreendeu-me: a coincidência fez-me feliz. Porque tanto José Olympio como Afonso Arinos foram
capazes de falar com intimidade de um livro que me parecia completamente esquecido no tempo.
Desde então, empreendi uma busca incessante desse livro.
Neiva da Mota e Silva, De Vaney, quem acabou por me emprestá-lo. Uma edição antiga, talvez tivesse mesmo
beirando 50 anos. Li-o com ansiedade: ali estavam os marcos do Porto de Santos, uma cidade que, no começo do século, era bem mais portuguesa,
diferente desta agora tão descaracterizada em seu lusitanismo pela incúria de seus governantes.
Hoje, o exemplar que tenho é de uma edição do Clube do Livro, de 1946, que encontrei
há algum tempo num sebo da Cidade. Abri-lo, deter-se em alguma de suas páginas é reencontrar uma cidade que não existe mais, as suas multidões
anônimas, os seus personagens humildes:
"Severino, apesar de cansado, não tinha sono. Estirou-se
no convés, acendeu um cigarro e ficou a olhar as águas escuras do canal e do outro lado, as luzes de Itapema e Guarujá. Em torno, as sombras
silenciosas dos outros batelões".
III
Há pouco mais de três anos, quando decidi partir para outra aventura literária e
escrever Barcelona Brasileira - um romance que recebeu a aprovação da Agência Literária Carmen Balcels, de Barcelona, e que trata agora de
vendê-lo para editoras do Brasil e da Espanha - o Porto de Santos foi outra vez o ponto de partida.
E, curiosamente, desta vez, era mesmo o Porto de Santos de Ranulpho Prata, pelo menos
aquele em que ele viveu como médico a cuidar de trabalhadores estropiados pelo trabalho insano. Era o cais de Santos dos anos 17, 18, 19, 20 e 21,
um tempo em que o poeta Martins Fontes, acompanhado por seu amigo também poeta Heitor de Moraes, percorreria a Cidade a fazer palestras sobre
literatura e anarquismo, enquanto o delegado Ibrahim Nobre, como um capitão-do-mato, perseguia os trabalhadores da Docas como escravos fugitivos.
Quero crer que esse também seja o tempo de Cais
de Santos, de Alberto Leal, um livro do qual já ouvi falar muito, mas que nunca consegui ter em mãos.
Um tempo de muito heroísmo em que os trabalhadores suportaram sob a mais feroz repressão uma greve de mais de 30 dias, que levou ao desemprego mais
de dois mil operários numa época em que a população da cidade não era superior a 30 mil habitantes.
Isso foi em 1919 e, para tentar reconstruir esse tempo, recorri às páginas
amarelecidas de A Tribuna e da Gazeta do Povo, num esforço de investigação que exigiu a leitura de muitos livros e documentos, até de
uma publicação impressa em Londres em 1913, pelo Lloyd's Greater Britain Publishing Company, sem contar as coleções dos jornais anarquistas
A Plebe e A Vanguarda, do Arquivo Edgard Leuhenroht, do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas. Em
todas essas fontes, lá estão pedaços da história do porto de Santos, um poço inesgotável de inspiração que já exercitou a imaginação até de
escritores estrangeiros.
IV
Um desses escritores foi o português Ferreira de Castro que, inclusive, conheceu bem o
Porto de Santos, a ponto de fazer descrições perfeitas da entrada da baía, como esta que encontramos no romance épico Emigrantes:
"O Darro detivera-se a receber piloto defronte da
Ilha das Palmas e logo tornejara a ponta da terra, entrando vagarosamente no canal. Em breve, à esquerda, estendia-se a
Praia de José Menino - orla de vistoso casario e amplas avenidas que a ligavam à Cidade. Sobre a areia molhada rodavam
automóveis e, mais acima, distinguiam-se, nitidamente, os carros elétricos, a caminho de S. Vicente,
esfumada ao fundo, num recanto da baía. Logo que o Darro se deteve em frente das docas, duas lanchas vieram encostar-se a ele..."
É com Santos que o personagem Manuel de Bouça, de Ferreira de Castro, sonha em boa
parte do livro. É um homem de meia-idade, que, iludido, larga a mulher e a filha em Portugal para desembarcar em Santos em busca de um amigo que
julgava bem-sucedido, mas o que encontra é um pobre carregador de sacos de armazém.
Com Manuel de Bouça, Ferreira de Castro abordou, na década de 30, um problema que até
então a nossa literatura não havia levado em conta: o drama do imigrante fracassado, o homem que viera em busca do paraíso e fracassara.
Outro escritor estrangeiro que registrou o Porto de Santos como cenário em um de seus
livros foi o boliviano Augusto Céspedes. No romance Trópico Enamorado - nunca publicado no Brasil -, é em Santos que um personagem de
Céspedes vive, presumivelmente nos anos 50, uma vida de notívago, vai a bailes de máscaras sempre cercado por belas mulheres, enquanto trata de
comprar armas para um possível golpe de estado na Bolívia.
"Está amaneciendo em Santos y la atmósfera reparte en
los balcones la promesa de un bello y cálido dia. Una nueva ciudad nace con su avenida costanera, su mar, sus rascacielos polícromos que aguardan al
sol".
Como Céspedes, um outro intelectual hispano-americano foi atraído pela magia do Porto
de Santos. Um poeta, o chileno Pablo Neruda. Creio que para terminar esta nota nada há melhor do que estas palavras de Neruda inspiradas pelo Porto:
"Santos! Es en Brasil, y hace ya cuatro veces diez
años. Alguien a mi lado conversa 'Pelé es un superhombre'/'No
soy un aficcionado, pero en la televisión me gusta'/Antes era selvático este puerto y olía/como una axila del Brasil
caluroso,/"Cabo de Santa Marta'. Es un barco, y es otro, mil barcos!/Ahora los
frigorificos establecieron catedrales/de bello gris, y parecen/juegos de dados de dioses los blancos edifícios./El café y el sudor crecieron hasta
crear las proas,/el pavimento, las habitaciones rectilineas./Cuántos granos de café, cuántas gotas salobres/de sudor? Talvez el mar/se llenaria,
pero la tierra no, nunca la tierra, nunca satisfecha, hambrienta siempre de café, sedienta de sudor negro! Tierra maldita espero/que rebientes un
dia, de alimentos, de sacos masticados, y de eterno sudor de hombres qe ya murieron/y fueron reemplazados para seguir sudando."
Imagem publicada com a matéria, cores modificadas por Novo Milênio
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