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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - IMPRENSA
A imprensa santista (5)

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Em 26 de março de 1944, o jornal santista A Tribuna publicou edição comemorativa de seu cinqüentenário, com esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

O jornal e a poesia em Santos

SUMÁRIO: A imprensa de outrora - Os movimentos cívicos - As lutas políticas - Poesia e prosa florida - Alguns poetas: Xavier da Silveira, Vicente de Carvalho, Alberto de Sousa, Paulo Gonçalves e outros - O jornal de hoje - A morte da Poesia

Álvaro Augusto Lopes

Talvez por haver começado quando se lutava pela nossa Independência, o jornalismo no Brasil, até a data da extinção dos partidos, em 1937, sempre teve uma existência agitada pelas questões relativas à política. Sob os céus dos Trópicos, extremavam-se as paixões; os ânimos exacerbavam-se ao calor de entusiasmos ou ao impuso de ódios ásperos; e as folhas volantes da imprensa refletiam, desde os primórdios da Nacionalidade, essa atmosfera de combate, inquietação, instabilidade de espíritos em constante alerta e em permanente estado de guerra.

Em Santos, o jornal periódico ou diário não escapou à fatalidade desa feição agressiva, peculiar a uma época de excessivo sentimentalismo, a um tempo em que a palavra oral ou escrita se dirigia mais ao coração do que ao cérebro. Desde o Diário de Santos, iniciado em 1872, em seguimento à Revista Comercial, que já circulava em meados do século XIX, os então ditos "órgãos de publicidade" - que mais tarde se arrogariam o papel de "órgãos da opinião pública" - viveram sempre em constantes batalhas e campanhas, conforme a tecnologia (N.E.: seria mais adequada a palavra "terminologia") nitidamente militar então em uso. Terminada uma, para logo se preparava outra, possivelmente mais tenaz e mais barulhenta, para manter os leitores em contínua atitude mental de interesse e expectativa pelo desfecho.

Os nomes que esses jornais ostentavam, na sua gritante ênfase, denunciavam geralmente o programa, a norma que habitualmente seguiriam para levar a termo os seus objetivos. O Raio, O Popular, O Patriota, A Tribuna do Povo, A Evolução, A Vanguarda, eram epígrafes que revelavam certo inconformismo generalizado, uma tendência pronunciada pela demagogia de voz tonitruante e melenas soltas.

Ainda quando surgiam alguns com títulos inofensivos como A Imprensa, O Comércio de Santos, A Cidade de Santos, ou até com denominações ironicamente poéticas, como O Pirilampo ou O Lírio, bastava conhecer-se o corpo redatorial para lhes perceber os intuitos políticos, as idéias socialistas bastante avançadas, naquela ocasião, o orgulhoso pannache de esgrimistas da polêmica ácida e da controvérsia contundente...

Como ocorreu nas principais cidades do país - e em especial da terra paulista - a imprensa de Santos tomou parte ponderável em todos os movimentos deflagrados no país, em prol das grandes aspirações coletivas. Com exceção da emancipação nacional, que veio quando a vila ainda estava quase isolada do planalto - a ponto de, dezessete anos mais tarde, a notícia da sua elevação à categoria de cidade aqui chegar um mês após a promulgação da Lei n. 122 - as maiores lidas cívicas de extensa vibração, pelo território brasileiro, aqui encontraram ambiente propício, propugnadores incansáveis e ardorosos, paladinos desinteressados, homens "dum só parecer", isto é, duma idéia fixa e fanática. Foi assim na guerra do Paraguai, na abolição da escravatura, na implantação do regime republicano.

No Diário de Santos, no Comércio de Santos, no Diário do Comércio, além duma palpitante chusma de pequenos periódicos de feitio leve e existência efêmera, surgiam na "estacada" clássica jornalistas como Xavier da Silveira, Vicente de Carvalho, Garcia Redondo, Isidoro de Campos, Alberto Veiga, Augusto Fomm, Sacramento Macuco, Silvério Fontes, Alberto Sousa, Gastão Bousquet, e muitos outros, todos envergando o equipamento necessário para levar a termo a missão, naquela data considerada mais de sacrifícios do que de escassas satisfações íntimas.

Essa tradição de luta perpétua - contra as situações dominantes, contra certas instituições julgadas maléficas ou perniciosas, contra vícios aceitos e abusos tolerados etc. - imprimiu ao jornalismo um acentuado matiz "amarelo", segundo uns, "vermelho", conforme outros, quando não "cor de rosa", atribuído aos que apoiavam os governos e se mostravam intransigentemente conservadores.

Depois de proclamada a República, fruto de anseios mais de minorias intelectuais e idealistas do que da massa semi-analfabeta do povo, a imprensa de Santos, como a do país inteiro, não perdeu o seu caráter combativo. É que nos primeiros anos de regime democrático, após curtíssima lua-de-mel com a figura simbólica do barrete frígio - nos moldes do figurino positivista -, voltaram as dissensões internas, as incompatibilidades domésticas, os descontentamentos inevitáveis demonstrados em surtos de rebeldia, que culminaram com a sortida de Gumercindo Saraiva.

Em 1894, quando pela primeira vez se editou a Tribuna do Povo, ainda ferviam os combates entre as facções contrárias. Sob este signo, portanto, se inaugurou o novo prelo, que, no decorrer dos anos, viria tornar-se A Tribuna, um dos órgãos mais importantes da imprensa do Estado.

Orientada por Olímpio Lima, um nortista aqui vindo, como tantos outros, à cata duma atividade à altura duma inteligência agudíssima e dum temperamento de fundibulário, esta folha encetou uma carreira ascensional debaixo do fragor de entreveros memoráveis, numa seqüência de discussões, brigas e incidentes de que, certa vez, resultou a prisão do seu corajoso chefe.

Na oposição, a princípio, com a independência de franco-atirador, ou mais tarde na trincheira do triunfante Partido Municipal, foi A Tribuna uma voz que nunca emudeceu, até o derradeiro ímpeto, nos debates mais incendiados, em torno de assuntos administrativos ou político-partidários.

Jornal sem uma ou duas colunas diárias de crítica amarga ou defesa desaforada, a respeito dum tema qualquer de interesse imediato ou longínquo para o público, estaria condenado a vegetar como papel obscuro sem eco. Por isso, ainda em 1924 aqui se travava tremendíssima polêmica, no tom feroz de tranca-ruas, através da pena acerada de Alberto de Sousa, investindo contra a redação do extinto Comércio de Santos (segundo desse nome).

Também os elementos materiais com que então contavam os órgãos da imprensa eram reduzidos e deficientes, em cotejo com os da atualidade. Não havia serviço telegráfico, nem profusa correspondência de colaboração do Exterior, como agora. O jornal tinha de ser desunhado, com o esfalfante esforço mental de cada redator.

O texto reservado à matéria editorial aparecia compacto, cerrado, nutrido, repleto de artigos - inclusive o solene "artigo de fundo" - notas, comentários, sueltos sem assinatura. Alguns nomes se liam por debaixo de extensas colunas, em tom sisudo, sobre assuntos sérios, doutrinários, rebarbativos. Salvo em se tratando de agredir ou ridicularizar adversários políticos, em estilo de panfleto ou de pasquim, jamais se conseguia sorrir ou falar em coisas leves e ligeiras. A imprensa então envergava a sobrecasaca protocolar das grandes cerimônias. Tudo ali tresandava a sala de recepções oficiais, onde as frases se apresentavam bem escovadinhas e alinhadas, cheirando a sabonete e água de Colônia...

No entanto, embora os artigos editoriais nem sempre trouxessem a responsabilidade dum nome, de sobejo se sabia quem os redigira. O autor de cada coluna era logo identificado. Adivinhava-se-lhe o estilo, a forma, a linguagem e, portanto, a personalidade das idéias aduzidas. Urbano Neves, Alberto Sousa, Alberto Veiga, João Foca, G. Bousquet, se revelavam ainda quando ocultos sob as transparentes máscaras de novos pseudônimos.

Mas, à ilharga da imprensa, agarrada ao terra-a-terra das dissensões políticas e ao noticiário miúdo dos acontecimentos sociais, sempre houve em Santos a revista, o hebdomadário ameno, despretensioso, desabafo necessário de certos recalques artísticos, obra de rapazes de comércio que nas horas de lazer requestavam as Musas, ou invadiam a selva selvaggia da sub-literatura municipal.

Muitos desses jornais fundados a título precário e de seus fundadores sumiram na voragem destruidora do esquecimento. Salvaram-se alguns recolhidos carinhosamente pela tradução, como A Sempre Viva, de A. Esquivel; A Arte, de José M. Sampaio Júnior; O Verso, de Gonçalves Leite e Custódio de Carvalho.

Apesar da intensidade exaustiva duma vida de trabalho, numa cidade retintamente comercial, e, na aparência, rebelde ao sonho e ao devaneio, a juventude em Santos, mal apontavam os primeiros sinais da puberdade, passava pela iniciação habitual, a que era obrigado todo brasileiro com tinturas de preparo intelectual: a poesia. Ser poeta, aos dezoito anos e pico, então era da praxe e ninguém de bom grado se recusava a esse agradável ordálio.

Por isto, a fauna de versejadores bons e maus aqui viçou, desde os mais recuados tempos da cidadezinha mal calçada e infestada de febres. E como não abundavam as posses pecuniárias, para a publicação de livros, a imprensa periódica servia de amplo desaguadouro aos pruridos poéticos de sucessivas gerações de rapazes letrados.

Houve escritores infatigáveis e fecundos, como esse estranho Antonio Manuel Fernandes, que produziram romances, contos, poemas transferidos das páginas aleatórias dos jornais para o bojo mais duradouro do livro - e que no entanto não lograram ressonância maior e mais dilatada, fora do círculo da cidade, além da órbita de seus amigos solícitos. Outros, porém, galgaram os degraus duma notoriedade que foi repercutir lá fora, tal o Barão de Paranapiacaba, tradutor feliz de obras-primas universais, como A Divina Comédia, de Dante; Fábulas, de La Fontaine; Jocelyn, de Lamartine, e outras, em que se mostra um tanto seco e frio, mas dono de boa cultura.

Entre a poesia ou a prosa florida desses literatos e a vida jornalística de combate, que muitos deles levavam, não se notava ligação alguma. Em Santos, como aliás se verificou em outros centros adiantados do país, não houve poeta que, à semelhança de Castro Alves, colocasse inteiramente a sua inspiração a serviço duma causa social ou humanitária, exceto em rápidas e pouco repetidas ocasiões.

É verdade que Vicente de Carvalho compõe esse maravilhoso poemeto de indignação comovida e piedade transbordante que é Fugindo ao Cativeiro, e que José do Sacramento Macuco fez representar no Teatro Guarani a peça À Sombra da Cabana, em que se enaltecia a libertação dos escravos; mas na terra onde a Abolição e a República tiveram tantos abnegados adeptos, homens de ação e de pensamento, são exíguos os rastros deixados por esses dois magníficos movimentos coletivos, nas letras santistas.

No histórico centro de resistência aos sequazes dos escravocratas, perto do rincão lendário do Jabaquara, seria de se esperar que a poesia aqui jorrada, em cataratas, das mãos de tantos vates românticos, estivesse impregnada, saturada desses ideais humanitários.

***

Paulo Gonçalves
Foto publicada com a matéria

Porém, aqui como alhures, a poesia sempre se alçou acima das contingências terrenas, pairou em elevadas regiões onde, como na célebre imagem de Hugo, o tumulto das competições humanas - guerras, terremotos, Sebastopol em chamas - apenas ressoava como quase imperceptível zumbido. Por isso, não admira que na obra poética dum Xavier da Silveira, por exemplo, abolicionista inflamado, a quem Luiz Gama e Antônio Bento renderam homenagens especiais, a silhueta do negro das senzalas não se desenhe, tendo como fundo de quadro o painel atroz dos sofrimentos infligidos a uma raça.

No volume de Poesias deste vate, publicado no Rio de Janeiro, em 1908, por iniciativa de seu filho, dr. Xavier da Silveira Júnior, em vão procuraremos composições inspiradas nesse tema, que ele desenvolveu com as galas e o clarão duma eloqüência tantas vezes enaltecida por seus contemporâneos, com Martim Francisco (III) à frente. Encontramos ali belos cantos líricos, vazados no feitio romântico da época: elegias, apóstrofes, súplicas, revoltas ou confidências, que lembram algo de Casimiro de Abreu, de Álvares de Azevedo ou de Fagundes Varela, a quem dedicou alguns dos seus mais arrebatados quartetos.

Tocado pela magia épica dos episódios do Paraguai, exaltou, certa vez, a figura heróica de Osório:

"Quando um povo de heróis, erguendo a fronte,
Entesta com a vitória no horizonte
E fita as luzes belas do Cruzeiro,
Em cada peito se ergue um baluarte,
Em cada coração um estandarte,
Que falam de heroísmo ao mundo inteiro!

Se nessa aspiração grande, infinita,
Da liberdade algum clarão palpita,
Em chamas fulgurantes, triunfais:
A barbária trêmula recua,
Do povo o pavilhão alto flutua,
Açoutado dos ventos imortais!
... ...
Semelhante da Grécia antiga ao vulto
Gigantesco, a que a História presta culto,
Leônidas, o intrépido espartano:
Do glorioso templo no zimbório,
Ergue-se agora, majestoso, Osório,
Napoleão gaúcho americano."

Aquidaban, nome dum rio famoso que uma batalha tornou indelével na História do Brasil, é o título de outra composição, em que o orador flamejante se desata em períodos candentes de fervor patriótico:

"Repousam os Heróis! Os louros do triunfo
Circundam-lhes as frontes queimadas nos combates,
Revivem as lembranças dos feitos gloriosos
Das armas aliadas, nos bélicos embates!
... ...
Bem longo ia o tormento dum povo dizimado,
Compensam as torturas as auras da vitória;
Venceu a Humanidade, baqueia a tirania
E pesem-lhe na campa as maldições da História!"

Não atinamos como esse tribuno que tinha a fama de repentista, glosando motes com a maior facilidade, não nos legasse alguns versos à maneira de Navio Negreiro, em que nos contasse a odisséia duma raça, ele que, em 1874, ao morrer, segundo o testemunho de F. Martins dos Santos, tinha mais de quarenta processos de negros cativos para defender em juízo.

Não se deve alegar, em justificativa desse silêncio, a possível aridez do assunto, para um poeta profundamente sentimental, sempre voltado para o tema eterno do amor. Sob a epígrafe A um tribuno do povo, presumidos terem sido escritos em honra do ilustre político mineiro, Teófilo Otoni, estes versos demonstram que Xavier da Silveira sabia, através da métrica e da rima, empregar a linguagem serena da reflexão, em prol dos oprimidos e dos sofredores:

"Rasga, tribuno, as sombras que condensam
Do povo a estrela santa - a liberdade;
Ensina ao povo que só somos homens
Ante a lei sacrossanta da igualdade.
Quando o fraco gemer, o despojado
Pedir justiça contra o que é mais forte,
Vós em socorro ao mísero que sofre,
Sendo tua arma a lei - a lei teu Norte!
... ...
E quando fatigada a fronte altiva,
Quiseres repousar da luta inglória,
Não te embaracem zoilos a carreira,
Que o prêmio da virtude é a luz da História."

Não enxergamos, nessas poesias, o africano a se estorcer na miséria física da sua condição social, que durante mais de vinte anos animou as penas mais valiosas do país; em troca, vemos o índio, em sua forma estilizada, pela maneira original de Gonçalves Dias. Assim deixou Xavier da Silveira falar o filho da mata brasileira, numa das páginas mais curiosas de suas Poesias:

"Sou índio: nas matas eu tive meu ninho
Das fibras das folhas eu fiz meu cocar.
Das aves as penas mais lindas, mais belas,
Vieram meu arco de bugre enfeitar.

Se a voz da tormenta de noite, alta noite,
Do sono na taba me vem despertar,
No tronco musgoso da velha figueira
Abrigo benéfico eu vou deparar.

Dormindo ao relento, no sono tranqüilo,
A virgem diviso, a quem dei troféu,
Que surge e me atira de flores silvestres
Um manto tecido com gases do céu.

É ainda mais bela, de olhares mais meigos,
Delgada no corpo, como uma palmeira,
Tem voz argentina que amansa jaguares,
E lembra uma corça veloz na carreira.

Parece formada de flocos de espuma,
De risos da aurora, da voz de Tupan,
Nasceu nas montanhas e teve por berço
A rede dos raios da luz da manhã!"

É, evidentemente, a mesma escola que buscou gestos nobres e palavras bonitas entre a gente inculta das florestas brasileiras. O poema Y-Juca-Pirama não constituiu um fato isolado, na literatura nacional, e muitos índios, como esse do eminente santista, compareceram no proscênio para declamar a sua arenga bem acabadinha.

Dissemos, há pouco, ser essa a feição da poesia da época em que viveu o talentoso advogado e abolicionista de Santos: não se imiscuir nas questiúnculas rasteiras deste mundo sem beleza, erguer-se a alturas inacessíveis ao estridor da maldade humana. Ele próprio o reconheceu, embora atribuindo a outrem essa atitude sobranceira:

"Arma voltada aos grandes infortúnios,
Veio de rojo ao pó do esquecimento,
Quis elevar-se às regiões das águias,
Inspirada aos clarões do sentimento.

Voou pelas alturas do infinito.
Onde passa ridente o rei da luz;
Teve no sono uma visão da terra,
Abriu os olhos, desperto - achou a cruz!"

Mas não se julgue que faltavam ao poeta faculdades inatas de apreciação dos aspectos agradáveis da natureza para sentir a graça pitoresca duma paisagem, o culto panteísta desse mar, junto ao qual passou sua meninice e que, sem dúvida, não deixou de o envolver no encanto perturbador de sua presença. Com efeito, lá figura, na coletânea citada, uma poesia com o dístico Vozes do Mar. Começa tranqüila e suave, num tom de contemplativo subjetivismo:

"Cerca-me o mar: a quietação das vagas
Convida o pensamento a esvoaçar:
Tenho saudades! Ai, gaivotas brancas
Dizei-me se ainda há velas sobre o mar?

Foi caminho do Sul! Era Manfredo
O louro sonhador, Byron mais moço!
Por que veio ele aqui? Quem busca a ilha
Em que percuta um grito de alvoroço?"

O resto dessa composição retumba naquele sentimentalismo personalista, que é o cunho duma época de exaltado individualismo. O poeta compreendeu a grandeza do cenário que o rodeava. Porém, o trabalho interior das suas próprias elucubrações, reminiscências de leituras, certo fatalismo pessimista, que às vezes nos lembra Antônio Nobre - impediram que prosseguisse na descrição da paisagem marítima, com o mesmo elan do início.

Outra página de Xavier da Silveira, onde também parecemos descobrir uma individualidade diferente, mais vizinha deste mundo prosaico, é a que se denomina Caçador de Perdizes, onde o homem simples e natural nos aparece, exprimindo-se num tom alegre e faceto. Foi escrita, certamente, numa hora de inspiração bem humorada, em dia venturoso, para aquele que, na tribuna, no depoimento de Martim Francisco - "era música, não era homem", explicando em seguida: "- música elevada, patriótica, verdadeiro e amplo hino de grandeza, divinamente tocado nas teclas da alma popular".

***

Vicente de Carvalho
Foto também publicada na revista Flama de 5/1944, publicada (com cortes) com esta matéria

Jornalista de outro temperamento - mais calmo e refletido, menos afeito aos lanes da oratória - Vicente de Carvalho foi, como Xavier da Silveira, um dos promotores da cruzada abolicionista, em sua terra natal. Contava apenas oito anos, quando faleceu aquele seu eloqüente conterrâneo; mas cedo entrou para as lides intrépidas da imprensa, onde logo formou entre os que se batiam pela extinção da letra escravagista, que tanto enodava a fisionomia da sociedade do seu tempo.

Estreando-se em 1885, na idade de dezenove anos ingênuos, com um livro de versos, Ardentias, e publicando, três anos depois, O Relicário, Vicente de Carvalho conquistou com merecimento as honras de poeta de bom quilate. Neste segundo livro não se nota a feição romântica da época imediatamente anterior. O lirismo toa com novas e mais delicadas inflexões. Não é mais o sentimentalismo farfalhante de pieguice, mas o poeta amoroso que mistura um pouco de filosofia sisuda com as expansões do seu afeto:

"É meu amor um antro desolado
Onde tantálico e febril, eu vivo
A olhar-te, como olham para um prado
Livre e silvestre, os olhos dum cativo.

Mas se em teus olhos virginais mergulha,
Minha alma encontra neles uma pura,
Uma doce, uma vívida fagulha
Como uma estrela numa noite escura."

Esses versos, compostos aos vinte e dois anos, encerram um pensamento sério e meio desencantado, que iríamos deparar na poesia do livro Tarde, de Bilac, onde aliás existe um soneto que principia quase no mesmo teor:

"Conheço um coração, tapera escura..."

Na obra poética de Vicente de Carvalho, não obstante a distância no tempo em relação à de Xavier da Silveira, igualmente não aparece o objeto constante da emancipação duma raça oprimida, a não ser numa única vez. E, contudo, havendo redigido artigos no Diário de Santos, e, ele próprio, fundado, em 1890, outro jornal, Diário da Manhã, foi um manejador assíduo da pena de combate, participou de muitas agitações da irrequieta vida política de então, num ambiente em que essa "vil megera" depois do café, costumava ser servida na imprensa, como "pratinho" de bom paladar.

Deputado, secretário do Interior do Estado, autor de muitas reformas administrativas de alto relevo social; advogado com banca trabalhosa e ministro do Tribunal do Estado, Vicente de Carvalho, como abolicionista e republicano da época da propaganda, vincou profundamente a história política do seu tempo. Foi um homem de jornal, na genuína acepção do termo. E poeta com direito às mais honrosas distinções, atribuídas a uma inteligência de escol, inclusive uma cadeira em duas academias de letras.

Mas, como sempre, não existe ponte visível entre essa existência mundana, duma rutilância invejável, que fazia de Vicente de Carvalho uma espécie de enfant gaté do Destino - respeitado, louvado, querido em todos os círculos sociais do país - e a vida introspectiva do parnasiano, ora pagão, ora docemente romântico, pintor amoroso da paisagem e evocador de quadros sugestivos como este:

"A loura deusa das manhãs radiosas
Que enflora o campo e sonoriza os ninhos,
Surge, espalhando à beira dos caminhos
Giestas em flor e pétalas de rosa.

Abre Amaltéa flórida as copiosas
Tetas; ondulam no ar os passarinhos;
Langues, as messes curvam-se aos carinhos
Das matutinas virações maviosas.

Ergue-se em meio do murtal virente
A voz de Pan que se escoar parece
Em catadupa trêmula e sonora;

E, como ouvindo a música dolente,
Vênus empalidece, empalidece...
E desmaia entre as púrpuras da aurora".

Apaixonado adorador do mar, em cujas proximidades passou grande parte de sua vida, Vicente de Carvalho já em 1888 denunciava o seu decidido pendor por esses aspectos característicos da natureza de Santos, por essas praias brancas e recortadas de curvas graciosas, junto da Serra azulada, propícias aos prazeres das pescarias cheias de aventuras e imprevistos. É desse tempo a composição denominada Marinha, que assim começa:

"Eis o tempo feliz das pescarias, quando
Maio aponta, a sorrir, pela boca das flores.
Derramam-se na praia as gaivotas em bando...
                         Alerta, pescadores!

Crepusculeja ainda a aurora; mas quem pesca
Deve esperar o dia entre as ondas, em quanto
Sopra enfunando a vela a matutina fresca
                         E o sol não queima tanto.

Mulheres, fazei o fogo. Ao alcance do braço,
Mesmo à porta do rancho, a maré deita lenha!
Aprontai o café... Vibra já pelo espaço
                         A buzina roufenha.

Peixe na costa! O aviso erra de frágua em frágua,
Chama de rancho em rancho os camaradas. Eia!
As canoas estão ainda fora da água,
                         Encalhadas na areia."

A descrição prossegue, num "crescendo" de intensidade dramática, transmitindo-nos as várias e bruscas reações emotivas, provocadas pelas peripécias dum "lance" de pesca movimentado. A cena foi apanhada com um vigor de colorista e com um entusiasmo de adepto desse gênero de esporte.

Este culto intimista - mais espontâneo e natural do que em outro poeta que haja abordado o mesmo tema, porque nasceu com o próprio autor - se requintaria, com o perpassar da idade, e iria exprimir-se de forma inigualável e magistral, nas tão festejadas Palavras ao mar, poesia pura, livre do artifício da rima, para melhor deixar expandir a alma do santista criado na vizinhança do Oceano, em confidências enternecidas como estas:

"                         Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...
... ...
                         Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo arriça o pêlo!
Ouço-te, às vezes, revoltado e brusco,
Escondido, fantástico, atirando
Pela sombra das noites sem estrelas
A blasfêmia colérica das ondas..."

Há, nesses versos "brancos" de eloqüência, que se aquece de momento a momento, uma exaltação dionisíaca de verdadeiro devoto. Percebe-se a força da sinceridade, nessas Palavras ao mar que exalam uma inefável musicalidade, envolvendo em atmosfera sonora a claridade dum pensamento muito lúcido. Mas Vicente de Carvalho, ao lado da paixão pelo mar, teve também o amor às causas da liberdade, pela qual se bateu desde a época sonhadora da mocidade.

Por isso, foi perfeitamente identificado com a magnitude e a beleza do tema que, sem imitar de maneira servil, o genial cantor de Cachoeira de Paulo Afonso, fixou em alexandrinos e hendecassílabos admiráveis o episódio épico de Fugindo ao cativeiro, evocação magnífica de verdade e rica de conteúdo humano:

"Vão, andrajosos, vão famintos, vão morrendo,
Incita-os o terror, alenta-os a esperança:
Fica-lhes para trás, para longe, o tremendo
Cativeiro... E através desses grotões por onde
Se arrastam, do sertão que os esmaga e esconde,
Da vasta escuridão que os cega e os ampara,
Do mato que obsta e apaga os seus passos furtivos,
Seguem, almas de hebreus, rumo do Jabaquara
                         - À Canaan dos Cativos."

Não faltam, nessa trágica retirada, que lembra outra histórica, a da Laguna, que o Visconde Taunay narrou em prosa, pormenores patéticos de angústia e desespero, como a da pobre escrava, que abandona o filho no caminho,

"...arrancando-o do seio, de repente
Larga-o no chão e foge como louca."

Poema escrito provavelmente depois da vitória do movimento, que culminou em 1888 com a promulgação da Lei Áurea - unindo a arte e o sentimento num elo de ouro indissolúvel, que cintila em cada estrofe e em cada verso, essa obra-prima foi talvez o derradeiro encontro da poesia com este assunto nacional verdadeiramente empolgante. Nos outros livros do vate esta centelha de inspiração divina jamais reapareceu, com tanta incandescência.

Em Vicente de Carvalho, como em Xavier da Silveira, a criação poética ficou portanto dissociada do torvelinho estéril do jornalismo; e embora a terra santista transpareça, mais vemos, na mensagem do lírico de Rosa, rosa de amor - ambos procuraram, no derivativo estético, uma evasão espiritual às mesquinharias e tristezas duma profissão, que, na época, se exercia em meio de atritos e aborrecimentos morais intoleráveis.

***

Outra figura santense de jornal que também cortejou a poesia, mas nunca mesclou as suaves alegrias desta com as prosaicas e materiais contingências da vida real, os rapazes da geração que atingiram a maioridade há vinte anos certamente conheceram muito bem e reverenciaram com a unção devida a um genuíno mestre da imprensa.

Alberto Sousa, tipo autêntico do jornalista da velha guarda - franco, inteligente, doido por uma polêmica assanhada, sem abusar do calão, mas ferino em suas arremetidas cruéis - foi poeta pouco freqüentador do altar das nove Deidades, manas olímpicas: versejava com elegância e desenvoltura, ao sabor duma idéia mais ou menos erótica ou filosófica; mas jamais fez praça desse feito dum alento ágil, plástico e robusto.

Amigo de Vicente de Carvalho, de quem foi colaborador no governo de Bernardino de Campos, depois de ter sido colega de redação no Diário de Santos, este nosso conterrâneo tem o nome ligado à vida da imprensa do período, que vai de 1887, em plena efervescência da campanha abolicionista e vésperas da implantação da República, até os últimos tempos do antigo Partido Municipal, de Santos.

Companheiro de Gastão Bousquet, Júlio Ribeiro, o gramático e autor desse romance incriminado de escândalo, A Carne; de Fernandes Pacheco, Américo Martins dos Santos, Ricardo Pinto de Oliveira, Júlio Conceição e outros políticos locais; mais tarde, em S. Paulo, redator efetivo do Correio Paulistano, com Carlos de Campos, Herculano de Freitas e Antonio Godói - foi o autor de muitos panfletos, em debate aceso, em torno de algumas teses palpitantes, mormente de doutrina positivista, que defendeu com ardor de um crente convicto.

Seu raciocínio era lento, frio, calculado, enrodilhando o adversário numa argumentação cerrada e desconcertante, aqui e ali pintalgada por uma imagem inesperada, um conceito irônico ou mordaz mais agudo. Ainda quando agredindo com violência, raramente descia ao porão escuso da linguagem plebéia.

Seu primeiro e único volume de versos foi publicado em 1914, com o título singelo de Livro dos Amores, bastante significativo e muito adequado, pois realmente o amor é o tema obsedante e constante. Justificando tal publicação "no momento em que transpõe melancolicamente o liminar da madureza" - disse o poeta, que então contava 44 anos de idade - "deve confessar ainda que não foi a pura preocupação de arte que o levou enfim a essa resolução sempre adiada".

Reconhece-se desta maneira um modesto amador literário, nesse gênero, que lhe servia de refúgio no intervalo de seus torneios jornalísticos sobre outros motivos mais práticos.

Vicente de Carvalho, que o poeta estimava e de quem transcreveu alguns conceitos no rosto desse livro, apontava-lhe essa feição amadorista, ao lhe traçar um breve mas exato perfil intelectual: "- Além de magnífica prosa, Alberto Sousa escreve belos versos, corretos e brilhantes sempre, muitas vezes com grande felicidade de imagens e de expressão. É pena que ele não se dedique ao verso, com a assiduidade e o amor que o verso merece aos que o cultivam com talento. Alberto Sousa é um diletante. Entretanto, tem, em versos espalhados por jornais e revistas, material para um livro que promete há anos e deve até hoje".

Dedicado, no frontispício, à memória de Angelo de Sousa, "meu irmão pelo sangue e pelos ideais", este livro consegue ferir a tecla melódica do amor, tal um monocórdio, sem se repetir e sem fatigar o leitor. Sonho de amor, Canção dos namorados, Amor que é vário, Ama!, - as epígrafes sugestivas falam por si mesmas, no seu laconismo inevitável. E não contente de cantar os seus próprios amores lascivos, o vate se compraz às vezes em descrever os dos seus amigos caros. Tal o soneto que segue:

"Com tamanho vigor e precisão de traços
Descreves o perfil de tua excelsa amante,
Que eu julgo vê-la e cuido ouvir, a cada instante,
O assustado rumor dos seus ligeiros passos...

Vejo-a, cauta, seguir para o parque distante;
Vejo-a, presa do amor nos apertados laços,
O alvo corpo entregar aos teus nervosos braços
E aos teus beijos sem par a boca palpitante.

Vejo-a depois, à hora extrema da partida...
Tu, num gesto ancestral de cortesão perfeito,
Vens trazer-lhe num verso o adeus da despedida...

Tu lhe apertas a mão, tu lhe fitas o olhar...
E na bruma se esvai, como um sonho desfeito,
O vulto senhoril de Dona Guiomar..."

Mas o trovador galante, à maneira antiga, sempre à conquista dum novo afeto, "como o judeu da lenda, anda de dor em dor, bate de porta em porta, erra de tenda em tenda, - de um amor a outro amor" - tinha também seus instantes de dolorosa imersão nos recantos mais recatados da alma, para chorar em versos sentidos, embora sem exageros lamechas, sofrimentos como o desta poesia:

"Morta, dormes aí nesse caixão estreito,
Sobre o seio mimoso as mãos entrecruzadas.
E ao contemplar sem vida o teu corpo bem feito,
Vêm-me aos olhos, a flux, lágrimas desvairadas..

Não mais verei, por entre as pálpebras inchadas,
O azul do teu olhar - céu de outono perfeito.
Nessas faces, que encontro agora desbotadas,
Não vêm mais rosas por o sangue já desfeito.

Pegam nas alças... Vão levar-te para a cova...
Da cadeia do amor partiu-se mais um elo,
E minha dor floriu numa saudade nova!

Teu peito inanimado é o funéreo jazigo
Onde, em negro ataúde, orlado de amarelo,
Meu pobre coração vai a enterrar contigo!"

Jornalista como seu irmão, Ângelo de Sousa, falecido em 1901 no viço dos trinta anos, Alberto Sousa foi sempre votado a estudos sobre história, ciências naturais, crítica literária, filosofia. Em sua pequena mas escolhida biblioteca, afortunadamente salva de dispersão, pela Câmara Municipal de Santos, que a adquiriu dos seus herdeiros, figuram livros relativos aos mais variados assuntos, inclusive a Medicina e a Religião.

Assim, acertou em cheio a nossa antiga Edilidade, quando o incumbiu de escrever um trabalho histórico alusivo à primeira comemoração do centenário da Independência Nacional. Fruto de alguns poucos mas bem aproveitados anos de investigações minuciosas e pacientes, nos arquivos, anais e na bibliografia especializada, os dois volumes de Os Andradas, editados em 1922 (N.E.: na verdade, são três volumes), constituem esplêndido monumento erguido à memória dos três irmãos santistas, que tanto fizeram pela substituição do regime colonial em nosso país.

Nesta monografia, levada a termo com um escrúpulo, uma probidade literária irrepreensível, através dum estilo sem o ar enfadonho, a monotonia enxuta de outras obras do gênero, às vezes aponta o vulto inconfundível do polemista, o voluptuoso espadachim das idéias em antagonismo, como se verifica na elucidação de alguns pontos obscuros dos primeiros tempos da povoação santista; no destrinçamento duma data duvidosa, como acontece com a morte de Braz Cubas, que Alberto Sousa opinou ser em 1597 e não em 1592, como geralmente é aceita. É o jornalista, afinal, quem sopra o discurso para o historiador, na sua faina de contar os fatos passados com a vivacidade duma reportagem interessante dos nossos dias...

***

Martins Fontes
Foto publicada com a matéria

Depois de Alberto Sousa e de seu irmão, Ângelo Sousa, cuja obra poética ficou esparsa pelos jornais da época e nunca apareceu, em livro que deveria denominar-se Campânulas, Santos ainda contou com alguns jornalistas que passaram pela estrada probatória da poesia. Paulo Gonçalves, Afonso Schmidt e Ribeiro Couto são os mais recentes, estando vivos - Deus o permita ainda por alongados anos - os dois últimos.

Martins Fontes, embora na mocidade, quando residiu na capital do país, tenha trabalhado na imprensa carioca e assiduamente colaborado em revistas literárias dali e de S. Paulo, na sua terra natal, para onde se trasladou mais tarde, até a sua morte, em 1937, não precisou ganhar a vida nesse mister árduo e esterilizante.

O cantor de A Floresta de Águas Negras, o mavioso aedo de Paulistânia, foi sempre um enamorado de Santos, à semelhança de Vicente de Carvalho. São inúmeras as composições, em que explue, exaltada e frenética, essa adoração pelas praias santistas, sua gente rústica e boa, os frutos agrestes que amadurecem junto dessas enseadas acolhedoras. Lembra, pela obstinação com que viveu fazendo versos, alarmando amigos e admiradores sinceros, a imagem vaporosa de Ariel, naquela comédia de Shakespeare, pairando sempre acima da terra escura, onde rasteja a animalidade bronca de Caliban...

Mais artista do que poeta, demasiado atreito à forma parnasiana, com prejuízo da substância espiritual da inspiração, Martins Fontes deveria ter vivido mais algum tempo, a fim de atingir a plenitude filosófica dum pensamento bem refletido, que já se denunciava em Calendário Positivista e No jardim de Auguste Comte, de sua derradeira fase.

Paulo Gonçalves foi poeta sensibilíssimo, mas não deve ser considerado jornalista da têmpera adequada para a sua época. Alma simples, coração bondoso, caráter duma timidez que às vezes parecia orgulho ou hostilidade, o autor de Iara não tinha envergadura para polemizar ou expor doutrinas atrevidas. Sua ação no jornalismo - onde tive ensejo de ser seu companheiro de redação - conservou-se em penumbra discreta e silenciosa. Tomou parte na fundação dum vespertino paulistano e na criação dum Partido da Mocidade, que lhe valeu bastante notoriedade em rodas de rapazes da Paulicéia. E foi só.

Poeta, sim, ele se revelou, tão logo conseguiu libertar-se da torturante "preocupação da forma", que lhe ensinaram, aqui, Fábio Montengro e Martins Fontes. Depois duma brigazinha sem conseqüências, como arrufos entre amantes, em que Fábio desancou, pela A Tribuna, os chamados "bárbaros", que pretendiam fazer versos sem rigoroso respeito às regrinhas consagradas Paulo Gonçalves achou seu verdadeiro caminho, indo poetar em S. Paulo, nas vésperas da reação modernista de 1924.

Como Ângelo Sousa, houve em Santos um poeta-jornalista que não deixou bagagem bibliográfica, mas de quem seus contemporâneos guardam indelével lembrança: Valentim de Morais, pertencente a família tradicional da cidade, que militou na imprensa e derramou, pelas colunas volantes do periodismo de então, sonetos e poemas que tiveram o mesmo destino reservado à publicidade, em veículo de idéias de existência tão transitória.

Ultimamente, o jornal evoluiu de maneira assombrosa, no que se refere aos recursos materiais, para trazer o público bem informado sobre o que ocorre nos quatro cantos da terra; a personalidade do jornalista se dilui, no anonimato do emprego, sem necessidade premente de vir à tona exibir-se, por isto que não é mais o prestígio pessoal do redator que valoriza hoje o pensamento do articulado.

Embora alhures, como na França, ainda há pouco se glorificasse essa estranha fauna de mata-mouros da pena, à feição de Léon Bloyh, com numerosos continuadores da marca de Léon Daudet e Charles Maurras, no Brasil não se concebe mais a imprensa explosiva do tempo de João Lage e Mário Andrade, o malogrado "campeão de xadrez". O epíteto gritante, a "frase candente", da chapa, o estilo arrepiado e arrasador, tal um moderno bombardeio da "RAF" (N.E.: Royal Air Force, Força Aérea Real da Inglaterra), já não se coadunam mais com mansidão dos costumes, adoçados pela educação e amaciados por certas leis tônicas e emolientes.

Enquanto que o panfletário de catadura capaz de assustar criancinhas de peito, com a pena da grossura dum cacete de Hércules, sumiu como raridade anacrônica de museu - os poetas igualmente foram minguando, por crescente carência da procura das suas amenas elocubrações. A poesia, nestes feios tempos de "poemas livres", humanizou-se, deixou de ser "arte pela arte", para se aperfeiçoar em "arte pelo bem".

O homem de negócios, empregado no comércio, ou pilar obscuro da burocracia, matou o homem das Musas, naquele fatalismo do "poéte mort jeune que l'homme survit". À semelhança do jornal doutrinário, à propaganda - que não seja retintamente comercial - o livro de versos estará condenado a desaparecer, duma vez, com o andar dos tempos. A época é da prosa plástica, flexível e simples, para expor fatos concretos e imediatos, sem tropos exaltados e floreios ociosos - bem ao alcance da inteligência das multidões.

O jornal da atualidade, para não perecer por falta de leitores, teve de seguir o modelo norte-americano - na sua rígida e árida feitura de mostruário de vida sem poesia, deste quartel de século... O jornalismo romântico, alimentador de rapazes voltados para o exercício mental de metrificar e rimar imagens belas, a esta altura, lembra o vulto espectral dum monstro ante-diluviano...

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