Imagem: reprodução parcial da matéria original
A metamorfose de Santos
Panorama santista do último quartel do século passado
(N.E.: século XIX) - O flagelo das epidemias que dizimavam a população adventícia - Obras de
melhoramento urbano - Vultos notáveis que muito contribuíram para o saneamento e aformoseamento da atual "Cidade-Ninféia"
Guedes Coelho
(Especial para a edição do Cinqüentenário da A Tribuna)
[...]
"Patriam libertatem et charitatem docui"
Modelo de concisão e expressão, a se condensarem nestas quatro simples palavras três séculos
da existência de Santos, à nossa legenda faltariam, contudo, para maior latitude, amplitude da significação procurada, mais duas bem curtas: "et
Redemptionem". Nela, lacônica e sintética evocação: relembra-se a germinação, plantada por Braz Cubas, da árvore da Caridade, de conseqüente
frondejamento pelo Brasil afora nas primitivas capitanias.
Recorda-se a partida, serra acima, do príncipe galante, e na imediata materialização
no Ipiranga, do patriótico objetivo dos Andradas, daqui, seu berço, partidos para, ou em Lisboa, no Parlamento, ou no Rio, quer nos Paços
Regenciais, quer no seio do povo carioca, tecer a trama patriótica e sagrada, que se epilogaria na radiosa manhã de 7 de setembro de 1822.
Para completar-lhe, integrar-lhe mais a ampla e justa comemoração, se ao dístico
cívico, já consagrado pelo Tempo, e identificado na própria consciência nacional, se pudesse modificar ao sabor das conveniências eventuais ou
inesperados sucessos, impor-se-lhe-ia o acréscimo de mais duas reminiscências - do movimento abolicionista e da propaganda republicana. Porque, se
aquele se estendeu, com intensidades diversas, segundo os climas regional-sociais, como no Ceará, terra de João Cordeiro, já redenta antes de 13 de
maio de 1888, em Santos é que o ideal libertário conseguiu, a completar teóricas, retóricas e platônicas incursões manifestas alhures, o ambiente de
verdadeira e eficiente praticidade.
No seio da adiantada sociedade santista formou-se uma legião de abnegados, de moços
animados de nobres pensamentos e varonis energias, a "Boemia Abolicionista", que fazia coletas, subscrições, a fim de comprar cartas de alforria ou
organizar espetáculos beneficentes, como aquele célebre, da representação de "A sombra da cabana", de José André do Sacramento Macuco, para com o
seu produto possibilitar a entrega, em cena aberta, do documento redentor a um escravo mulato claro, quase tão branco como seus protetores.
O faro sherlockiano dos igualitaristas santistas indicou-lhes, malgrado o sigilo
mantido pelos interessados, a passagem num pequeno barco procedente do Sul, e amarrada ao mastro principal do navio, de uma jovem escrava, branca de
cor, a vender-se na praça do Rio.
...E Santos libertou-a!
E eles, num largo gesto de abnegação, cotizaram-se para o seu resgate ao preço de
seiscentos mil réis, bem alto para tal "mercadoria", inferior na valia a um bom cavalo de corrida.
Quis o Destino, cumulando-a de bens, que a moça alforriada, não destituída de graças
físicas, se casasse vantajosamente com um bom esposo, abonado de fortuna.
Em Santos, mais do que em São Paulo, aprazia aos dois grandes próceres da Abolição, já
lendários hoje, Luiz Gama, primeiro, Antônio Bento depois, pronunciar as famosas conferências no Teatro Guarani, assistidas e aplaudidas por Geraldo
Leite da Fonseca, João Otávio dos Santos, Xavier Pinheiro, dr. Alexandre Martins Rodrigues, Luiz de Matos, Américo e Francisco Martins dos Santos,
José Teodoro dos Santos Pereira (Santos Garrafão), Henrique Porchat, dr. Vicente de Carvalho, dr. Rubim César, João Guerra, Júlio Conceição,
Júlio Maurício, Eugênio Wansuit, ex-imperial marinheiro, bravo agitador em comícios públicos...
A dois santistas, dr. Joaquim Xavier da Silveira e o farmacêutico José Inácio da
Glória, na "Imprensa", órgão de combate fundado em 1871, pôde-se atribuir o início da campanha abolicionista intensiva.
A súbita morte, vitimado por varíola, de Xavier da Silveira, geralmente estimado,
filho estremecido de Santos, adorável poeta, bom advogado, eloqüente tribuno, forrado de extremada bondade e simpatia, comoveu tanto a população de
Santos que, exaltados os ânimos políticos na população de seu bairro, os Quartéis, de idéias conservadoras, e a do Valongo, o mais rico e
valorizado, liberal na convicção, ressurgiu a velha rivalidade com pleno recrudescimento do antigo ódio, latente de muito tempo, em pacífico
rescaldo.
E as hostilidades, platônicas de início, constantes de remoques, indiretas, versos
sarcásticos nos jornais, serenatas provocadoras, logo descambaram para o terreno da desforra pessoal, em choques de capoeiragem - a degradante luta
física tão da época -, e em sangrentos conflitos, dificilmente contidos pela polícia, mantida sempre em permanente e previdente alerta. Com a lenta
infiltração do ideal republicano nos dois grupos, a harmonia e a mútua aproximação foram se estabelecendo entre ambos, e quando a Abolição e a
República eclodiram em bem da Pátria, Quarteleiros e Valongueiros, os velhos e rancorosos "inimigos", fraternizaram afinal.
A Palmares santista
Quando o mísero negro fugido, vindo do interior, atingia o alto da Serra de
Paranapiacaba, e divisava o Mar, ajoelhava-se e rendia graças a Deus, porque também via a liberdade, o remate de tormentos cruéis...
É que então, através as névoas da distância, ele percebia a Canaã dos oprimidos,
aquele novo Palmares incruento, inacessível à sanha truculenta do "capitão do mato", reduto do pacífico "Zumbi",
Quintino de Lacerda, o negro analfabeto que um dia ascenderia à curul de vereador da Municipalidade Santista. Preto de alma
branca - o largo coração transbordante de bondade e caridade padecente das mesmas dores que torturavam seus irmãos de raça, de cuja triste sorte
compartilhava antes - não só entre estes, como no seio da população inteira, estimado e admirado pela sua cívica coragem toda dedicada à luta contra
o escravagismo - era ele, antigo cozinheiro dos irmãos Lacerda Franco, e ex-ensacador de café de meu pai, quando comissário e exportador.
José Guedes Coelho, jovem ainda, aos 30 anos de idade, logo empobrecia em 1887, quando
do grande "crack" financeiro produzido pela súbita, inesperada, imprevista depreciação do café nos grandes mercados importadores de
Liverpool, Rotterdam, Havre, Bremen, Hamburgo, Antuérpia, e só determinada e conhecida bem tarde, pouco antes da entrega do café já em adiantada
viagem e, a pagar-se ao preço do dia, o que importou na falência dele, de Matias Costa, de Simão da Silveira e de muitas outras firmas prestigiosas.
Fato bem interessante, demonstrativo da dedicada afeição granjeada por Quintino,
deu-se no instante de sua posse como camarista municipal, após legítimo pleito. Depois de assinada a ata por seus colegas, quando em último lugar
lhe coube a vez, ele se quedou perplexo ante o livro, pois não sabia escrever. O presidente da sessão, ante este fato inédito, único, ia suspendê-la
quando, a "una voce", todos os muitos espectadores, inúmeros amigos de Quintino, se lhe opuseram; e, à vista da pacificidade tolerante da
força policial, fiscal e garantia da mesma, e da resoluta decisão de Quintino em se apossar "à outrance", o digno chefe da Edilidade
renunciou à vereança e à presidência da corporação. Sendo empossado como edil, o suplente Antônio Dias Pina e Melo, elevado à presidência da Câmara,
investiu-o em sua nova dignidade municipal.
A política federal, na infância da República, foi agitadíssima, e, rota a hemi-secular
paz que nos envolveu durante a fase monárquica, não só na própria Nação, como nos Estados e nos Municípios, sob o influxo de ambiciosas paixões, ao
desvario de espíritos desorientados, golpes de Estado, revoluções, dissoluções de assembléias, rupturas de cartas constitucionais se sucediam,
anarquisando a Pátria.
E aquela Câmara, perturbada por acesa politicagem, recheou-se de incidentes
tumultuários e deselegantes, culminados na renúncia coletiva de seus membros, à exceção dele, Quintino, único a se manter firme em seu posto. Saídos
seus pares, vendo-se só, ele fechou a sala das sessões e, enfiando a chave no bolso, as retirou, se retirou, dizendo: "Agora sô vereadô municipá e
gerá..."
Do antigo presidente da Municipalidade, Antônio Dias Pina e Melo, durante curto
período, nortista de origem, morto há cerca de 20 anos, e com quem entretive relações de amizade, eu soube ter sido uma das maiores vítimas da grave
crise financeira do Estado do Amazonas. Atingido pela ruidosa "débâcle" econômica, conseqüente à queda da exportação da borracha, vencida na
competição comercial pela vantajosa superioridade da concorrente malaia, procedente dos seringais de Java e Sumatra.
Despachante aduaneiro, e moço ainda, indo para o Amazonas, em pleno fastígio então -
quando em Manaus, modelarmente urbanizada, se construía o melhor teatro do Brasil - o pequeno capital que levou, multiplicando-se, creditou-lhe uma
fortuna de vários milhares de contos de réis, possuidor que se fez de importantes e produtivos seringais e de muitos barcos de navegação fluvial.
E a Fatalidade que a tantos arruinou, despenhando-os dos píncaros da Fortuna ao abismo
da Miséria, arrancou-lhe o produto legítimo de inteligentes esforços.
E, mais pobre que antes, ele, superiormente conformado, voltou para reencetar aqui
suas atividades aduaneiras interrompidas pela miragem amazônica, colocando-se na casa A. Freire e Cia.
A exemplo de idêntico procedimento da província do Ceará, Santos dera ao Brasil
esplêndida lição de Fraternidade no dia 14 de março de 1886, com a redenção do último escravo residente em seu âmbito, e promovida pela Sociedade 27
de Fevereiro.
As grandes batalhas de Santos
Pela última década da monarquia, no Brasil inteiro, vindos desde 1872, da célebre
convenção de Itu, republicanos havia e muitos, mas, comodistas, sossegados, teóricos, platônicos, e que ao Tempo, numa paciente fé de indolente
beduíno, confiava o desenvolvimento e a eclosão feliz de seu ideal. Mister se fazia, entretanto, para a vitória da propaganda audaz, destemerosa, a
afrontar revides traiçoeiros, reações violentas, em desprezo da própria vida, com o objetivo de infiltrar o credo democrático na consciência do
exército e das massas populares.
E então, predestinados, surgiram a arriscar a
existência através perigos e insídias, Lopes Trovão, na Corte, e Silva Jardim em Santos e São Paulo. E este, onde amadureceu suas convicções, urdiu
seu audacioso plano, senão na silenciosa Santos, enquanto iluminava cérebros infantis na histórica Escola José Bonifácio? Santos, pois, no concerto
das grandes cidades brasileiras, sagrou-se pioneira e campeã de quatro grandes campanhas: da Caridade, da Independência, da Liberdade do Negro
escravo, da República.
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