Imagem: reprodução parcial da matéria original
A metamorfose de Santos
Panorama santista do último quartel do século passado
(N.E.: século XIX) - O flagelo das epidemias que dizimavam a população adventícia - Obras de
melhoramento urbano - Vultos notáveis que muito contribuíram para o saneamento e aformoseamento da atual "Cidade-Ninféia"
Guedes Coelho
(Especial para a edição do Cinqüentenário da A Tribuna)
[...]
Cruzados do Bem
Dr. Manoel Maria Tourinho - Dr. Raimundo Soter de Araújo - Dr. Silvério Martins Fontes -
Dr. Tomas Catunda
No vertiginoso rolamento deste caleidoscópio evocativo, em suas expressivas miniaturas
de sucessos pretéritos, alegres ou tristes, propícios ou nefastos; neste geral "Memorandum do Passado", deve-se render reconhecida vassalagem aos
grandes vultos, credores de nossa gratidão.
E esse débito moral, astronômico nas proporções, absorveria toda a nossa possibilidade
saldante, insolvabilizando-nos, se possível fosse retribuir-se devidamente a imensurável benemerência, toda votada a Santos, durante quase meio
século, por esses quatro grandes cruzados que se chamaram dr. Manoel Maria Tourinho, dr. Raimundo Soter de Araújo, dr.
Silvério Fontes e dr. Tomas Catunda.
Santos lhes deve mais do que o aformoseamento, a sanidade, o elevado teor econômico
que a superiorizaram entre suas congêneres, porque lhes deve a saúde de seus filhos porfiadamente defendida, arriscadamente buscada por eles,
incólumes e impávidos, através a agressividade letal e apavorante de múltiplas epidemias, qual a salamandra, destemerosa e incombusta, a pisar o
braseiro rubro.
Deles, não só no caráter profissional, mas noutras modalidades de seus talentos e
capacidades múltiplas, Santos muito se aproveitou. Vindos contemporaneamente da Bahia, o grande celeiro das celebridades brasileiras, dois da
pequena Sergipe, donde emergiu para a imortalidade Tobias Barreto de Menezes, o outro; aqui no Sul é que seu valor se manifestou, granjeando-lhes a
gloriosa apreciação da Posteridade. Equivalentes nos méritos científicos, paralelos no porte profissional, a se evadirem de nossa análise pelo
conceito público que os sagrou grandes clínicos, no raro desinteresse, na sublimada caridade, na competência, na desvelada assistência prestadas ao
enfermo, jamais colega algum os superou.
Produto de esmerada ancestralidade - descendente daquele prestimoso donatário da
Capitania de Porto Seguro, Pero de Campos Tourinho, cuja diligente ação, equânime, cordata, suasória, a suavizar as asperezas da colonização
incipiente, na cata da amizade indígena, muito contribuiu para o desenvolvimento da Pátria, nos primórdios de sua formação; e neto ainda do
conselheiro Demétrio Cyriaco Tourinho, celebridade médica, ex-diretor da Faculdade de Medicina da Bahia -, e. por isso, de dons e qualidades
realmente atávicos, o dr. Tourinho foi também grande administrador e digno político.
De sua atuação na direção de Santos, como presidente da Câmara Municipal de 1893 a
1894, e como primeiro prefeito eleito pelo voto popular, de 1895 a 1896 -, naqueles negregados tempos em que, entre Seyla e Carybdes, se se escapava
às fauces da Febre Amarela, era para se cair nas garras da Varíola - fale ele próprio em dois candentes períodos do relatório apresentado pelo
prefeito à Assembléia Municipal (que assim se chamava a Câmara Municipal), a 15 de janeiro de 1894:
"Na seção de higiene pus logo em campo todo o pessoal
médico (quatro clínicos, dr. Adolfo Porchat de Assis, dr. Benedito de Moura Ribeiro, dr. Ernesto Moreira, dr. José Astério Tourinho), obrigando-os a
visitas domiciliares em prédios particulares, armazéns de gêneros alimentícios, padarias, tavernas, hospedarias, casas de pasto, cocheiras,
estábulos, cortiços etc.
"Tanto o corpo médico desta Prefeitura como o da Comissão do Serviço Sanitário, com
quem estou perfeitamente ligado para a guerra de extermínio, sem tréguas nem piedade, contra o abuso da porcaria e do envenenamento de alimento e
bebidas espirituosas de má qualidade e falsificadas, têm prestado relevantíssimos serviços, e creio poder afirmar-vos que os miseráveis
envenenadores mudarão de rumo".
Bastam essas palavras, que não foram apenas retórica loquela, porque se realizaram
materialmente, para se aquilatar dos méritos e da extensão da ação administrativa do dr. Tourinho.
Couberam-lhe a iniciativa da construção do Mercado Novo, da melhoria do rudimentar
Corpo de Bombeiros, do calçamento e da abertura de novas ruas, do aterramento e dessecamento do Cemitério do Saboó, das constantes imposições à Cia.
Melhoramentos para o aperfeiçoamento do péssimo serviço de esgotos, e de muitas outras obras. Retilínio da estatura moral e política, ele jamais se
curvou em zumbaias aos poderosos do momento, nem se arrastou ante o mandonismo eventual.
Durante a revolução de 1893, quando o marechal
Floriano dominava vitoriosa e discricionariamente em terra, não escondeu suas simpatias pela causa de Custódio de Melo e Saldanha da Gama,
deixando de reunir a Assembléia Municipal de que era presidente por estar a nação em estado de sítio, e por isso suspensas as garantias
constitucionais e individuais. E o intemerato político de franco caráter e claro proceder foi preso, e no cárcere se manteve até a volta da paz.
Assim, entre amargos dissabores e a remover agros
percalços na estrada profissional e pública, viveu o dr. Manoel Maria Tourinho.
***
O dr. Raimundo Soter de Araújo também exerceu com
brilho invulgar cargos administrativos na Municipalidade, tendo sido durante muito tempo inspetor literário, e por isso fundador de muitas escolas
públicas. De sua diligência se enriqueceu a nossa cidade com inúmeros melhoramentos, reclamados nas constantes indicações que apresentava em sessão,
como eu observei, seu colega de vereança que fui.
Pai da pobreza de Santos, na Santa Casa ele se dedicou durante
muitos anos à luta contra a tuberculose, na cuidadosa assistência prestada aos internados do Pavilhão. Dedicado homem público, médico caridoso, a
Bondade era o traço predominante do seu caráter - todo ternura e sensibilidade. E, para medir-lhe a extensão, para temperar o aço damantino de sua
alma, quis o Destino, como a um novo Job, experimentá-lo em duras provações, em cruciantes torturas morais, na perda de duas filhas queridas, moças
gentis, vítimas daquele mesmo mal que ele guerreava no hospital.
Chefe de família exemplar, desvelado esposo e pai, de quanto ele sofreu durante largos
anos, em perene recordação, a todos os instantes presente, de suas filhas infortunadas e do triste quadro de seu sofrimento, eu fui testemunha
porque, médico como ele da Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos, quase diariamente nos encontrávamos em conferências clínicas.
Muitas e muitas vezes eu o vi, debruçado sobre o
dorso do doente, que escutava atentamente, perladas lágrimas lhe penderem dos cílios para, num pranto silencioso e recalcado, logo tombarem sobre o
leito. A pungir-lhe a dolorosa saudade das filhas, a sofrer amargamente, mesmo assim, a atenção prestada a seu exame clínico não esmorecia, nem se
turvava a clareza de suas frases em nossos diálogos profissionais. Ante mim então ele se elevava a descomunais alturas, não de um homem, mas de um
semi-Deus. E nem por lhe ferir a graça divina naqueles transes cruéis, se lhe estiolou a crença religiosa intensa, nem feneceu a fé em Deus,
profunda, mais afervoradas ainda, sublimadas que foram no crisol do sofrimento. Esse foi o dr. Raimundo Soter de Araújo.
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O dr. Silvério Martins Fontes foi talvez o maior
erudito que pisou nestes chãos. Verdadeiro sábio, sua cultura era ilimitada; e aqui, meio ainda acanhado, e cujos horizontes restritos não permitiam
largos remígios intelectuais, ele foi o pioneiro do Livre Pensamento e do Marxismo. Denodado defensor de grandes ideais, muito pugnou pela extinção
da escravidão, pela palavra ou pela pena, na "Evolução", revista da qual existem alguns números na Biblioteca Municipal.
Em prol de suas convicções, renhidas polêmicas entreteve na imprensa com adversários
valorosos.
E aí, por outros títulos ele não merecesse de nós
reverente admiração e ilimitada gratidão, um só, maior do que todos, para tanto lhe bastara - ter sido pai de
Martins Fontes.
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Do dr. Tomas Catunda que se pode dizer, tão recente
é o seu desaparecimento, tão viva é ainda na saudosa retentiva de toda Santos a sua figura simpática e bondosa? Que ele, aqui chegado quando já
desaparecera a febre amarela, tanto quanto os colegas que a esta assistiram, trabalhou, multiplicando-se, como se ubíquo fora, a todos assistindo,
confortando, curando, na grande pandemia de 1918. Poucos foram os médicos que não se acamaram então, como eu, também assistido por ele na minha
congestão pulmonar.
Provecto clínico, era a um tempo bom cirurgião e ótimo médico; de grande competência,
extensa ilustração e profundo conhecedor de Literatura e História, sua palestra era encantadora.
O maior título de seu valor é ter sido, durante muitos anos, o médico dos médicos de
Santos. Afinal, cansado da estrênua luta profissional, durante muitas décadas exercida sem compensadora retribuição, pois sempre foi desinteressado
e desambicioso, ele, batalhador incessante e infatigável, para quem o trabalho era uma necessidade fisiológica, dedicou os requintes de sua bondade,
a energia ainda supérstite, malgrado seu perdulário gasto em atuação clínica, à difusão da instrução primária por meio das aulas mantidas pela
Sociedade Amiga da Instrução Popular, a cuja incorporação, ciclópico trabalho, todo se devotou.
E a sua obra surge hoje esplêndida nessas muitas
escolas onde se redimem da ignorância as crianças pobres, grandes homens de Amanhã, que em homenagem ao dr. Tomás Catunda honrarão o Brasil.
***
E hoje, que é Santos?
Qual, desatada crisálida, a libélula grácil, a esplender no espaço, em adejos graciosos, a
louçania de seu talho mínimo, o colorido maravilhoso de suas asas policrômicas, Santos também desperta de longa hibernação no Atraso, na Ignorância,
impelida por patente surto de constante progresso, é esta magnífica cidade, dotada de todo o conforto da civilização, higiênica e urbanisticamente.
E, como a grande metrópole ianque, a crescer vertiginosamente na sua Manhattan de São
Vicente, já se lhe delineiam, dentre as brumas de próximo futuro, os contornos da esplêndida "urbe" que vai ser. Onde outrora era um vasto pantanal,
cruzam-se boas ruas apojadas de extenso tráfego; e erguem-se os vastos armazéns portuários de suas docas modelares, donde partem, rumo ao
estrangeiro, atestados os porões de preciosa rubiácea, os transatlânticos imensos.
Através corte das matas espessas, percorrido antes pelos vetustos bondinhos, e hoje
largas avenidas, esteticamente arborizadas, perdulariamente iluminadas, marginadas de belos edifícios, deslizam, céleres, autos confortáveis e "tramways"
(N.E.: = bondes) elétricos.
Às baixas, rasteiras casas do Passado, substituem-se agora, em ousados arremessos para
as alturas, na previsão dos futuros arranha-céus, monumentais, graníticas construções de oito a dez andares. Em suas praias pitorescas, lindamente
recortadas pela Natureza e enfeitadas pelo Homem, avultam hotéis tão suntuosos que honrariam Miami, Trouville, Pocitos, Mar del Plata; e
pisando-lhes o asfalto lustroso em pós das ondas sedantes e estimulantes, correm, a surgirem dos estilizados e garridos "shorts", cavalheiros
finos e damas elegantes.
A monótona sensaborona cavaqueira noturna das farmácias d'antanho, conseqüente à
ausência de diversões e entretenimentos, troca-se agora pela freqüentação de luxuosos cinemas, do Atlântico, do Roxy, do
Coliseu, do Miramar, donde se ouve a deleitosa música de Fantasia, delírio deslumbrante de sons e cores, se aprimora a Cultura, viajando-se
mundo afora, na visão do "Tapete Mágico", se regalam os olhos maravilhados pelas revistas aparatosas, recheadas de chiste e de formosas mulheres.
E eis, palidamente descrita, a Santos atual, nosso berço
estremecido, donde se escoa para os mercados consumidores, e enriquecendo o Brasil -, produto da maior organização agrícola do mundo - o Café de São
Paulo!
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