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QUINZE ANOS DEPOIS, A COMUNIDADE COMEMORA 15 ANOS DA INTERVENÇÃO NO ANCHIETA, EM DEFESA DA DIGNIDADE HUMANA
A comemoração de uma década e meia da intervenção municipal no Anchieta foi realizada no dia 27 de
maio de 2004 no Campus D. Idílio José Soares, o mais novo espaço da Universidade Católica de Santos, a Unisantos, no
auditório 310 do prédio da Avenida Conselheiro Nébias 300, bairro da Vila Mathias.
Era o mesmo bairro em que nasceu 53 anos antes o Anchieta - e a mobilização para o encontro que marcou
década e meia da revolucionária intervenção que marcou época reuniu centenas de pessoas, confirmando a principal característica da iniciativa, que
foi a de envolvimento e mobilização popular em torno de medidas técnicas com objetivos sociais.
Para promover mudanças de fato e não apenas reformar, mas extinguir o manicômio e seu sofrimento, era
necessária uma ampla mobilização popular de todos os setores envolvidos direta e indiretamente, ou seja, neste caso, a cidade como um todo e mesmo o
partido político que comandava o processo e especialistas internacionais.
O resultado disso é que os resultados foram tão positivos e conquistados por uma ampla rede humana,
com direito a um luau – festa na lua, em uma barraca de praia - no sábado 29. No dia 28, seria elaborada uma Carta de Santos para construção
de uma agenda local para a saúde e cidadania, que ficou para um próximo encontro no dia 3 de junho. "A carta não tem nenhum valor legal, disse
Carla, mas é um compromisso ético", esclareceu.
Dia 27, duas mesas de debatedores falaram do Anchieta no tema Desdobramentos da intervenção na
atualidade e teve lugar uma mesa-redonda que falou sobre o tema Por que e o quê eu estudei, criei, escrevi e falei sobre a Saúde Mental de
Santos. Era dia de jogo do Santos na Libertadores, mas nem isso - e nem pelo fato da programação não ter merecido espaço no único jornal
local diário - reduziu suas proporções.
Adélia, junto com a mãe Aidée, viúva de David, fala ao público presente como filha do impulsionador da
intervenção no Anchieta, o então secretário de Saúde de Telma, David Capistrano, então
homenageado. Ela está estagiando no Charcot como estudante de Psicologia. Presentes lideranças nacionais do movimento antimanicomial, psiquiatras,
parentes, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais. Talvez daí tenha nascido o questionamento de David a estas instituições.
No dia 28, das dez da manhã às cinco da tarde, a programação do CRP Baixada Santista e Vale do Ribeira
teve Oficinas de Convivência e das dez ao meio-dia Oficina de Pintura, coordenada pela psicóloga Carla Sartorelli e Mirella Chaves Laragnoit. Das 14
às 16 horas, Oficina de Ikebana sob a coordenação de Haroldo Sato e, às 19 horas, no Campus D. Idílio, depoimentos. Às 20 horas, foi a vez dos
coordenadores de Saúde Mental da região e a presença da articuladora regional do DIR-19 Paula Covas Calipo, debatendo Temas e agendas locais para
a Saúde Mental e cidadania. Carta dos 15 anos da intervenção na Casa de Saúde Anchieta.
No dia 29, sábado, ocorreu a confraternização de encerramento com um luau- uma festa à
luz da lua - na barraca de praia da Unisantos, no Boqueirão. A promoção deste encontro comemorativo foi do Conselho Regional de Psicologia/Subsede
da Baixada Santista e Vale do Ribeira, Conselho Federal de Psicologia, Curso de Psicologia da Unisantos, associações Franco Rottelli, Franco
Basaglia, Maluco Beleza e Diferente Cidadão.
A primeira mesa, no dia 27, foi coordenada pela psicóloga Carla Bertuol, do Conselho Regional de
Psicologia–CRP e da Unisantos, aberta com uma homenagem ao ex-prefeito David Capistrano. E a tônica dos discursos variou pouco entre as saudações à
primeira concretização dos ideais da Reforma Psiquiátrica no país e ao papel desempenhado pelo ex-prefeito como articulador de uma lei que seria
aprovada quase uma dúzia de anos depois.
Florianita e Cida: mais louco é quem me diz!
"Foi um casamento perfeito, diria, sem deixar ciúmes na sua esposa Aideé, esse entre David e a Saúde
Mental", disse a psicóloga Florianita Coelho Braga Campos, integrante da intervenção e professora de Psicologia da IPF/PUCC de Campinas,
coordenadora da sub-sede do CRP aquela cidade, membro do movimento Antimanicomial, em seu depoimento no dia 27. Aberto "com carinho e emoção" pela
psicóloga Carla Bertuol, coordenadora da sub-sede do CRP de Santos, houve apresentação musical da doce voz de Cida e do violão de Moisés – "mais
louco é quem me diz..."
"Eu juro que é melhor não ser normal, se posso pensar que Deus sou eu... Se eles rezam muito eu já
estou no céu...". Moisés falou da fábula grega da mitologia, contando que a loucura ficou com medo do amor e o deixou cego e foi condenada por Zeus
a conduzi-la pela eternidade, por isso andam de mãos dadas. Foi feita uma homenagem a Cybele Barreiros, uma terapeuta ocupacional, e uma salva de
palmas "para os trabalhadores da Saúde Mental".
No saite Reforma Manicomial, Florianita escreve idéias como o que explica que todos os projetos na
área desde a Portaria 224/92, o projeto de lei de Paulo Delgado, além da lei do deputado estadual Roberto Gouvêa, não visam apenas "reformar" o
manicômio – "e sim extinguir a instituição total que o manicômio representa", escreve, a "instituição total" como denomina Goffmam os
institutos de internação manicômios. O que se há de reformar é a assistência psiquiátrica.
"A psiquiatria, diz, que foi por séculos
usada para contenção geográfica e medicamentosa de pessoas indesejáveis e difíceis, pois 'diferentes' da norma -, a sociedade não conseguiu nesse
tempo resolver a vida de quem estava sob seus cuidados..."
Jacaré, reagindo ao eletrochoque: "Vai dar na família dele!
No mesmo dia 28, em que o dia fora das Oficinas de Convivência, de Pintura e de Ikebana, fizeram
depoimentos o militante antimanicomial e familiar de um paciente Geraldo Peixoto – que teve seu filho internado - e um ex-paciente como o Jacaré,
José Gonçalo Araújo, que fez também uma apresentação musical com o que Geraldo chamou de "um clássico" do tema, chamado "Borracha prá quê",
que fala sobre a repressão. Jacaré Gullarstone, seu nome artístico, disse que a intervenção devolveu a vida, a honra e a dignidade de muita
gente" e que David "é o pai da Saúde Mental", que por causa dele "há 15 anos estou livre daquele marasmo, daquela coisa horrível que aniquilava
pessoas.
"O Dr. Paniza dizia que o eletrochoque fazia bem para as pessoas, que era para
acalmar. Por que ele não aplicava na família dele?" Jacaré discursou com sua linguagem típica, dizendo que "Saúde Mental não é pasto e nem
corrupção nem escravos humanos que tem que acabar, que fez uma calamidade humana, não é para amarrar nem para dar choque", disse, sob palmas. E
cantou "Borracha prá que": "Estamos na corrupção/borracha e o governo achando legal/não respeitam o direito de ninguém/estamos na democracia e o
povo quer total liberdade/manicômio não é feito para pessoas humanas: qualquer coisinha de depressão vamos dar borracha nele!"
Geraldo Peixoto, militante de pele
Professor de Educação Física, pai de um paciente, em seu depoimento no dia 28 saudou as pessoas da
Saúde Mental que continuam fortes mesmo quando sofrem, que amam o novo e que não tem medo dele". Diz que não conheceu a intervenção municipal, mas
que conviveu com ela depois de 1992, "e hoje minha vida tem dois momentos, um antes e um depois do Anchieta.
Lembrou de Silvio Assi, hoje professor em Assis, e de Erotides Leal, psiquiatra, psicanalista e que
participou por 3 anos da experiência local, desde 1989, acreditando que "uma outra psiquiatria é possível" e que o Anchieta "foi um feito valioso
para a reforma Psiquiátrica brasileira".
O poema de Luiz Fernando
Os antigos pacientes presentes, os loucos de outrora, ao invés de incomodar, ilustraram o
ambiente de festa, com o Radir Rodrigues Coelho, um ex-paciente, lembrando o nome dos agentes transformadores, mostrando a capacidade de integração
daquelas pessoas antes amarradas e eletrocutadas com toda espécie de doenças que, na primeira noite cantaram e tocaram na voz suave de Cida, ao som
do violão de Moisés.
Luiz Fernando Barbosa recita seu poema As perdas, que distribuiu no luau do sábado na
praia, na barraca da Unisantos. Com 38 anos, ex-paciente, de São Vicente, faz poemas em profusão, tem material, diz, para três livros, tendo feito
várias peças e filmes como ator – inclusive O rapto de Perséfone, montado no NAPS vicentino.
"Trabalhar as perdas, diga-se de passagem, requer paciência e sabedoria/nem
sempre perder é uma coisa boa, pois requer sacrifício para quem perde/há que entender quem pede, ganha um tempo para compreender sua perda, mesmo
que isso seja doloroso.../a perda é sempre uma coisa positiva e negativa, por que será que o perdedor vem se questionando sua perda? Acho que a
perda é pobre ou rica por natureza. Portanto, parei para avaliar a perda e fiquei a contar por quanto tempo ela fará mal a mim/A perda é terrível
para todos, é o mal maior, sem dó, sem dor. Por fim, a perda é mesmo dolorosa..."
Ele recitou também seu outro poema A loucura, que pergunta...
"Que loucura é esta que não chega a lugar nenhum? Como e onde a loucura está?
Por onde posso ser sadio e louco ao mesmo tempo? Até que ponto somos loucos? Os loucos são sadios ou os sadios são loucos? Por onde a loucura
conhece a verdade plena? Aonde e quando a loucura pode ser acreditada? Qual a definição da loucura? A loucura é mesmo a loucura? Ou a loucura é um
tempo transitório? Rodei por todos os cantos e encontrei um louco varrido, mas ele me dizia as coisas mais maravilhosas possíveis – e cheguei a
conclusão que a loucura é um tempo temporário de pensamento contrário à sociedade..."
Pedro Delgado, militante secular
O coordenador nacional de Saúde Mental, Pedro Gabriel Delgado, militante histórico do movimento
antimanicomial e irmão do deputado federal autor da lei de reforma psiquiátrica, Paulo Delgado, estava lá no dia 27 – e em face dos pronunciamentos
exigindo avanços nos tratamentos alternativos e fim dos manicômios, fez uma análise real dizendo do encontro que teve em Brasília e pelo que temia
essas pressões, mas as que recebeu "foram dos empresários do setor que pressionaram para que tudo ficasse como está. Há um lobby poderoso do
setor", disse.
Pedro milita na área desde 1974, quando era estudante de Medicina em Barbacena e tomou contato com a
questão manicomial, voluntário que atuava no manicômio daquela cidade mineira. Em 1985 esteve no Tribunal Basaglia, realizado no Centro
Cultural Rebouças, no julgamento público dos manicômios.
Coordenador nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Pedro foi integrante da Comissão
Organizadora do 2º Congresso da ARTSAM em 1987 ("na verdade o 1º, porque o de Camboriú em 1978 não foi um congresso, foi um encontro", lembrou, ao
que acrescentou Stamato que o grupo antimanicomial tomou a direção dos trabalhos), membro da Rede Nacional Internúcleos da luta
antimanicomial.
Conforme ele se manifestou no encontro comemorativo dos 15 anos da intervenção municipal na Casa de
Saúde Anchieta, "Em defesa da dignidade humana", esta foi uma "experiência épica": "Após as vicissitudes políticas para se manter as conquistas,
Santos é uma experiência forte que conseguiu se manter, embora diante de mudanças políticas desfavoráveis a que a democracia nos obriga", disse.
"Foram mudanças que impressionaram o País como um todo, a cidade fincou o pé na história, é o exemplo de David".
Delgado disse que ao tempo do Anchieta existiam 25 mil leitos psiquiátricos a mais do que hoje,
"muitos Anchietas foram fechados depois desse", exemplificou. "Existiam 13 NAPS, hoje existem 530, são 12 mil trabalhadores da Saúde Mental
que não precisam trabalhar em manicômios, mas sim em uma rede alternativa que está se enraizando.
Falando das comemorações do Dia da Luta Antimanicomial em 18 de maio, lembrou estar temeroso das
pressões como aquelas que se faziam no ato para fechar os manicômios ainda existentes, "mas o que aconteceu foi o inverso, pressões do lobby
para se manter tudo como está, o que é preciso rejeitar pois não podemos admitir o retorno aos tempos de barbárie".
O coordenador nacional lembrou David – "a Psiquiatria oficial é uma Psiquiatria sem manicômio" - e
frisou que hoje a "Psiquiatria oficial" é esta que estamos construindo. "O exemplo de Santos se expandiu pelo país e internacionalmente", garantiu,
"vale a pena correr o risco em busca de utopias", disse, "esse Norte ético de inclusão social".
Pedro Delgado falou do encontro de 190 países em que o Brasil fez o único pronunciamento sobre Saúde
Mental, que quem fez o pronunciamento foi o ministro Humberto Costa, "que é um psiquiatra", que entre a alternativa da tortura de um lado e da
terapia do outro o Brasil adotou a segunda alternativa.
Tykanori
O comandante do processo falou sobre o desenho que ilustrou o prospecto e o cartaz do encontro,
que mostra um raio de luz entrando por uma porta e três pessoas como que saudando aquele momento: "Isto é uma visão de um paciente – disse -, que
contou que jamais saiu de sua memória o momento em que entraram pela porta adentro os interventores naquele 3 de maio de 1989, 'um raio de luz que
entrava e invadia o Anchieta, esta a imagem que eu tenho', ilustrou. Era o espírito da intervenção".
Tykanori falou do momento pós-constitucional que vivia o país, quando os municípios recebiam novas
incumbências e poderes, "um momento particular, de intensa mobilização social não só no governo como na sociedade. Me lembro como hoje daquele
momento da intervenção com duas ou três rádios transmitindo ao vivo, fazendo 'flashes', entrevistando pacientes sobre as torturas a que eram
submetidos, às suas precárias condições de vida ali. 'Por que esse médico não vai fazer isso com a mãe dele?', perguntavam no ar os pacientes.
Santos marcou a história da psiquiatria na Carta de Caracas que participamos com este ato fundamental no resgate de direitos", enfatizou.
Melhado
O também ex-interventor Luiz Antonio Melhado contou alguns episódios como a morte de um rapaz que
havia sido pego na praia com roupas estranhas e, sem mais nem menos, mandado para o Anchieta – onde foi colocado em uma cela-forte junto com um
etilista.
Falou sobre a noite em que foram ao Anchieta ele, David Capistrano e o médico Sérgio Zanetta diante de
uma denúncia de internação em cela-forte e o "louco perigoso" saiu da cela e sentou-se calmamente em frente, sem nada que justificasse o ato. "Alguém
tinha que ficar de plantão o resto da madrugada e foi escolhido o Zanetta", lembrou.
E também do dia em que fugiram 14 pacientes, tento o citado médico respondido à imprensa que
eles não haviam fugido, "eles se deram alta", contou, sob risos. Se tiveram condições de articular a fuga, estavam em plenas condições de enfrentar
a rua, isso era um fato.
Lancetti, criador
"A primeira nota que me vem a mente neste ato determinante do ponto de vista institucional que foi a
intervenção no Anchieta, é que em 1921, quando começaram a ser publicadas as descobertas da psicologia por Sigmund Freud, ele era acusado de
pan-sexualismo, que ele incentivava as relações sexuais entre os pacientes, o que respondia dizendo que não poderia ceder à pusilamidade" -
fraqueza de ânimo, covardia -, pois não era esse o objetivo.
"Quando nos preparávamos para iniciar o processo, ninguém conhecia ninguém, Telma (a então prefeita)
não sabia quem éramos nós", disse o psicólogo Antonio Lancetti, com seu sotaque característico de Buenos Aires.
"Então Telma disse: gostei do gringo, vamos lá!. Temos que render a ela nossa homenagem e
também o nosso protesto, porque ela deveria estar aqui e não na China", brincou, sob risos, pois a ex-prefeita havia viajado com o presidente Lula e
comitiva para aquele país.
Psicólogo, psicanalista e analista institucional, Antonio Lancetti contou desde as acusações do uso de
erotização no Anchieta, sob risos, já que isso implicava no retorno à vida dos pacientes antes dopados e/ou massacrados, falou de Felix
Guattari para quem estava acontecendo em Santos a "quarta revolução da psiquiatria".
Para Lancetti, todo o programa posteriormente desenvolvido nos projetos Meninas de Santos e
Moleque, entre outros, eram reproduções do Anchieta, o que havia percebido David. "Fomos processados por causa dessa erotização e quando
fomos falar dela diante do delegado, David me chutava por baixo da mesa para não tentar explicá-la", contou Lancetti.
"Uma das coisas mais maravilhosas que aconteceram com estes métodos que envolviam o Renato di Renzo e
sua ação terapêutica com danças e brincadeiras é que os meninos paravam de usar crack. Foi esse o método da escola de verão, uma
segunda época para todas as crianças que não haviam conseguido aprender: os burros e bagunceiros da classe faziam uma nova escola.
E a cada escola em que era lançado o programa, David soletrava a letra daquela canção que dizia "é
muito mais..." ("que os homens não conseguem entender, e as mãos não ousam tocar" - Paulinho da Viola, N.R.). Ninguém fica igual após esse caráter
revolucionário de uma transformação permanente, como lembrou Guattari, "mudanças que não tinham donos ou patentes nem reservas e que aconteciam a
cada instante", continuou Lancetti.
O psicólogo lembrou que "o triste dessa história é que esse método, uma das razões para que a gente
fique contente, é que apenas David – que escreveu uma das páginas da história brasileira – podia fazer e isso o fez insubstituível", completou.
Marcus Vinicius, radical
O incêndio ficou por conta de Marcus Vinicius de Oliveira, da Comissão de Direitos Humanos do
Conselho Federal de Psicologia, um militante antimanicomial antigo que lembrou a "conjunção astrológica muito particular de Santos naquele momento
há 15 anos, no resgate de uma idéia de uma sociedade sem manicômios, como dizia Franco Basaglia", disse.
Mineiro mas com forte sotaque nordestino ("Estou há 15 anos em Salvador", contou), para Marcus o
Anchieta provou que era falsa a chamada "impossibilidade técnica" de se atender psicóticos em um regime de liberdade, uma idéia dos subversivos
da luta antimanicomial que se espalhou pelo Brasil, provando que podiam sim ser tratados em liberdade.
"Essa experiência iluminou muito o cenário brasileiro", ressaltou Marcus. "E isso aponta para o
projeto pelo fim dos 50 mil leitos psiquiátricos que ainda existem no Brasil, que reproduzem o tratamento que antes existia no Anchieta, é preciso
outro David para um enfrentamento radical, não podemos enfrentar mais duas décadas" - ressaltando que "é preciso pressionar o Governo Lula,
terminando definitivamente com os leitos psiquiátricos no segundo governo, resgatando o ímpeto do movimento social para alcançar uma sociedade sem
manicômios", disse.
A segunda mesa da noite
Na primeira mesa de debates, no dia 27, coordenada por Carla Alessandra Sartorelli,
estava Fernanda Nicácio, que narrou o que chamou de "os dias mais belos da minha vida" no NAPS da Zona Noroeste, "construindo as redes de afeto
com prazer", disse. "Santos foi a primeira cidade sem manicômios do País", disse, divulgando a idéia de uma sociedade sem manicômios, na utopia em
que contribuíram Franco e Franca Basaglia – enumerando as 4 questões mestras do processo:
1. O processo coletivo na prática da experiência;
2. Tykanori, o que é Saúde Mental? É poder, afeto e
liberdade;
3. Rotteli e a experiência de Trieste, a nossa
experiência: se nos resta o desejo da proximidade, importante é descobrir que os defeitos não são vazios, mas podem ser preenchidos por nossas
ações;
4. David Capistrano: para o sucesso da saúde é preciso
paixão e indignação.
Além de Fernanda, que atuou na coordenação do processo desenvolvido em Santos, a terapeuta ocupacional
Stela Maris disse da radicalidade da experiência de Santos em 1989, o ano que não terminou, disse, parafraseando o titulo do livro que
historiou a revolução estudantil mundial de 1968 contestando todas as estruturas herdadas do positivismo. "Com um trabalho de profissionais e
militantes, Santos se fez inédita, garantindo o direito de ir e vir do usuário, o encontro dos diferentes – lembrando a "Casa Manequinho" dos
ex-pacientes caminhando para a cidadania plena. E a frase de Mario Tommasini: a vida sempre vence!
Fátima Micheletti, carinho e eficiência
Ela passou horas com um paciente com "transtorno bipolar", que alterna estados de euforia e depressão
– falando carinhosamente ao seu ouvido, um exemplo típico da atitude no Anchieta -, narrou sua experiência em que nunca havia entrado em um
manicômio. "Fui convidada para trabalhar com a equipe de intervenção, entrei e não quis ficar, assustada, mas fui levada para conversar e tomar
um café com o Tykanori".
Ela continuou dizendo "Bendito café aquele, porque aprendi, junto com a equipe que devolveu a vida
aquele ambiente, o desejo de mudar e sentir a dignidade humana, tudo inusitado" e lembrou o que disse Tykanori: "Não é preciso entender de
Psiquiatria, mas ter o coração aberto". E Shakespeare: "É loucura, mas há método".
Florianita Braga Campos disse que não participou diretamente da internação, só torceu – e do
"casamento feliz" de David com a Saúde Mental, fazendo crescer a luta pela Reforma Psiquiátrica brasileira e não admitiu o recuo na área, "o
hospital não voltou, apesar das dificuldades" E isso é uma vitória", concluiu.
Silvia Tagé
A professora da Unisantos Silvia Tagé lembrou David, que dizia que - da reconstrução de laços entre os
pacientes e suas famílias - todos podem participar. "Eu estava em casa e recebi um telefonema de David, que estava precisando de assistentes
sociais, uma equipe que amplie para 9 integrantes entre muitos outros técnicos e profissionais - criando uma dependência com a Saúde Mental.
Ela fez uma dissertação sobre o tema e lembrou frases-princípio da ação como "gente é prá brilhar" e
"a liberdade é terapêutica", falando sobre a aglutinação da cidade em torno da Saúde Mental, artistas, profissionais, cidadãos.
Mestre Stamato e Raul Seixas
O psiquiatra Domingos Antonio Stamato, de longa e antológica história de participação na luta
antimanicomial, foi saudado como mestre por numerosas figuras que trabalharam no programa de Saúde Mental em Santos e em São Vicente.
Ele, única personalidade masculina na mesa em que participou, disse que iria falar de um tema "que
ninguém havia falado" - as festas e seus lemas musicais baseados em Raul Seixas e sua "sociedade alternativa" ("Viva! Viva! Viva a sociedade
alternativa!") – o que foi a base do processo de reintegração social daqueles seres que dançaram, cantaram e pintaram, representaram e se
expressaram após tanto tempo reprimidos.
Disse que eles, os pacientes, são "intuitivos" e se fez uma "construção coletiva."
Stamato falou das tradições libertárias de Santos, dos quilombos e do porto vermelho sobre o que escreveu Ingrid Sarti, na história dos estivadores,
falou sobre o Anchieta - símbolo da tortura e da violência, mas foi mais fundo e disse sobre o próprio processo interno "em que perdemos muito em
brigas pessoais as oportunidades", lembrando a própria perda da Prefeitura – narrando uma fase em que ele próprio foi afastado da equipe junto
com sua mulher, atuante na área, a psicóloga Isabel Calil. "Santos não voltou atrás porque resistimos, porque queriam sim acabar com os NAPS",
lembrou.
Falando dos tempos da intervenção, Stamato recordou a iniciativa sua e de um grupo que saiu pelas
faculdades falando nas classes durante o processo, contatando as famílias e engajando-as na atitude revolucionária. Para Stamato, a experiência foi
um "rito de passagem", quando uma de suas filhas (tem 4), que hoje tem 15 anos, estava nascendo, "trazendo hoje toda a doçura daquele momento".
Comentou as lições dos velhos anarquistas da ação direta, das ações imediatas, espontâneas e na raiz tomadas naquele momento, na luta "por
uma sociedade sem manicômios".
Na parede, o texto de Domingos Stamato falava do Anchieta, localizado "no círculo da Vila mais
famosa do mundo, o estádio Urbano Caldeira, do Santos Futebol Clube, próximo à primeira Santa Casa
do Brasil e ao lado do Hospital Beneficência Portuguesa".
Explicou que o Anchieta era um modelo hospitalocêntrico financiado pelo SUS e que o desdobramento
maior da intervenção foi a criação da Unidade de Reabilitação Psico-Social – a URPS -, substituindo a internação asilar. "Era um manicômio despojado
de recursos e compromissos sociais", relata, "e a intervenção foi a introdução de uma peça necessária ao exercício da cidadania com inserção na
trama social".
"Concepções, reflexões e contribuições da psiquiatria basagliana alteraram o modelo gerador de
segregação, discriminação, estigmatização e cronificação", segue Stamato, que lembra o congresso de 1980 da ARTSAM e as primeiras conquistas do
movimento que foram a desativação do chiqueirinho no 1º DP e a implantação do ambulatório de Saúde Mental na Zona Noroeste.
"O paciente deixou de ser um objeto e um rótulo, um diagnóstico, e passou a ser tratado como sujeito,
protagonista de sua vida de sua história", escreveu. "A cidade absorveu seus loucos, foi percebendo a importância do respeito às
diferenças com apoio dos profissionais e da cidade, conquistando sua expressão e construindo sua identidade".
Suzana Robortela: "Eletrochoque só para assar frango"
A frase é de Suzana no luau na praia, ela que no segundo dia
do seminário, diante dos relatos burocráticos dos responsáveis pela Saúde Mental nas cidades da região botou fogo nas deficiências
encontradas, "onde falta tudo desde o papel higiênico", disse sobre os núcleos de atendimento à Saúde Mental hoje. Ela declarou que após 1996,
quando acabou a administração David Capistrano, "corações e mentes foram abortados".
"Todo nosso trabalho é mostrar que o manicômio
não tem razão de existir. É o convívio social que traz as pessoas de volta. e respeitando o modo de ver o mundo das pessoas, mesmo com delírios, que
se pode ajudá-las".
Suzana fez dissertação de mestrado sobre o tema (Relatos de
usuários de Saúde Mental em liberdade – o direito de existir), Unicamp, 2000), para ela um método de fazer a "digestão"de tanto aprendizado
acumulado, falando de Edgar Morin e da Mitologia da ordem, da "utopia de uma sociedade transparente, sem conflitos e sem desordem". Ela disse
que para escrever o trabalho tentou aplicar "a dor com a razão".
Outra grande liderança desse processo e mestre em Saúde Coletiva, a
psiquiatra Suzana Robortela narrou em seu trabalho a experiência única que conseguiu em 5 anos acabar com um manicômio de 50 anos, "superando até o
exemplo da Itália, uma atuação em que o fio condutor eram os próprios pacientes", disse. A segunda mesa do segundo dia do seminário, no
dia 28, foi coordenada por Berta Esteves, presidente do Conselho Municipal de Saúde. E entre os integrantes estava Paula Covas Borges Calipo, do DIR-19/Direção
Regional de Saúde da Baixada Santista, articuladora regional do setor.
Ela falou do Dia da Luta Antimanicomial e do que se fez na área "a
partir do movimento da Reforma Psiquiátrica na década de 80, marcando a presença de uma nova consciência dos profissionais da área, exigindo uma
ampliação da luta técnica até então realizada dentro dos manicômios para os campos político, ideológico e cultural".
Dizendo sobre a "experiência pioneira de Santos na região da
Baixada Santista", Paula comentou a realidade dos CAPS II implantados em Cubatão e
Praia Grande e sobre a "participação real" de entidades representativas de controle social como o Conselho Municipal de Saúde, o Conselho Gestor
e as associações de usuários, familiares e funcionários.
Paula lembrou dados como o que 3% da população sofre com transtornos
mentais graves decorrentes de drogas e álcool e que 12% necessita de algum atendimento no setor, seja ele contínuo ou eventual – tendo discorrido
sobre a estrutura estadual da área, "que funciona em consonância com as políticas estadual e nacional".
Mirsa Delossi, a coordenadora estadual de Saúde Mental...
...rebateu as críticas à estrutura dos CAPS, dizendo que era melhor
mantê-los com suas deficiências do que extingui-los, "o que jamais seria feito". Disse ainda sobre a estrutura estadual no setor e que os 15 anos
comemorados coincidem com a abertura do primeiro CAPS do Brasil em Cerqueira César, introduzindo um novo modelo de atendimento, "o que permite
comemorar hoje a oferta de uma nova rede alternativa".
Disse dos 8 mil leitos fechados em 8 anos, "discretamente", dizendo
existir ainda 58 hospitais, 15 mil leitos e, 127 CAPS no Estado, respondendo às críticas – hoje 140, conforme dados do Ministério da Saúde.
Fizeram relatos ainda Maria de Fátima Luz, coordenadora de Saúde
Mental de Cubatão, Raimundo Macedo (que é cirurgião infantil, mas ocupa o cargo) em Guarujá, Daniela Stazak, de
Itanhaém, José André K. Marins, de São Vicente, Alberto Vasquez, de Praia Grande e
Sidney Gaspar, de Santos.
Berta, que coordenou a mesa, membro da equipe de intervenção, contou
que o primeiro dia foi de angústia, mas depois desenvolveu a "capacidade de indignação", citando David, com a "emoção de devolver a cada
um o que é seu". A representante de Cubatão, que não atuou na intervenção do Anchieta mas em S.Vicente, disse ter que "agradecer aos
pioneiros, aos que tiveram a coragem de mudar".
O representante de Guarujá falou da falta de médicos e dos dois CAPS
existentes na cidade, com 3 psicólogos e 4 assistentes sociais. E Daniela, representando Itanhaém, disse do "momento mítico" que foi a
intervenção construindo "o mito de Santos", ela que iniciou a faculdade quando estavam intervindo no Anchieta: "É como se estivéssemos adolescendo,
disse, construindo a nossa história". Daniela falou do CAPS de sua cidade, "com os pés na areia", ressaltando a importância da praia "onde todos são
iguais, um espaço privilegiado da Saúde Mental".
O representante de São Vicente fez um relato breve da história da
Psiquiatria desde Pinel e da lobotomia nos anos 30, e Dorian Rojas, psicóloga e representante de Praia Grande, antiga militante do movimento
estudantil na cidade de Santos, falou dos que foram capazes de tratar pessoas com "técnica e emoção". Sidney Gaspar, representante de Santos,
ressaltou o papel dos trabalhadores da Saúde Mental e previu que "em 150 anos não haverão mais manicômios" – não faltando gente que considerou
elástico demais este prazo -, ressaltando que a cidade tem mais CAPS do que preconiza a OMS.
A assistente social e professora Silvia Tagé cobrou da coordenação
estadual um programa de aprimoramento profissional em Saúde Mental, "um instrumento importante na formação dos estudantes". Ela abriu espaço para
várias contestações ao oficialismo dos depoimentos até ali, como de Carla Bertuol que perguntou se "o Guilherme Álvaro pode ser considerado um
manicômio", pois ali eram feitas internações, da desinstitucionalização e dos "muros que ainda precisam ser derrubados". E Geraldo Peixoto
lembrou que seu filho começou a melhorar "quando ele deixou de ser um número", alinhando críticas contra os relatos feitos pelos representantes das
coordenações de Saúde Mental, fazendo denúncias sobre as deficiências do CAPS em São Vicente.
O psiquiatra Alex, do PS da Zona Noroeste, explanou sobre o caos
do atendimento atual naquele lugar. Suzana Robortela falou da precariedade dos CAPS e perguntou: "quem fiscaliza as verbas que vão para os CAPS".
Lembrou que o SUS foi implantado nesta cidade "à força" e que antes das policlínicas de 1989 "não havia nada".
A psicóloga Isabel Calil também desferiu duras críticas à estrutura
de atendimento, "em que falta tudo, até bebedouros e banheiros", disse. "Adolescente não é só álcool e drogas", seguiu Bel, "não há políticas em
nenhuma área, não há como se falar em dignidade humana para os pacientes se não há dignidade humana para os profissionais da Saúde Mental. Dissemos
que estamos adolescendo: que tipo de adulto queremos com estas condições em que falta tudo? Um adulto depressivo?", completou, na crítica
necessária. |