Dr.Guilherme Álvaro
II - 1800-1854
Ao começar o século 19, não se haviam modificado as condições mesológicas de Santos, que tendiam antes a se agravar pelo crescimento da população na mesma
área de terreno disponível, entre os morros e a praia lodosa. O tipo do santista não era sadio; pequeno, débil, descorado, já era o resultante das condições precárias do meio criado pelas habitações baixas, escuras, úmidas e abafadas, que
constituíam a grande maioria das da vila de Braz Cubas. Em 1814 foi feito o segundo recenseamento do povoado, que apareceu com a população dupla do que possuía 42 anos antes. Os 5.128 habitantes da vila e arredores dividiam-se em 1.319 homens e
1.674 mulheres, livres, e 2.135 escravizados. Dos livres, 748 eram solteiros, 2.083 casados e 12 viúvos.
{1816}
Dois anos depois, em 1816, um outro recenseamento é feito, fornecendo, porém, cifras inferiores, menos 248 pessoas livres, menos 82 escravizadas. Por mais que pesquisássemos, não pudemos apurar
perturbação da saúde pública local explicativa de tal diminuição; antes, julgamos que ela provém da partida de moradores para o interior da província, com escravos, para abertura de novas lavouras, que já prosperavam pouco em Santos.
{1822}
No ano da nossa independência foi feito um recenseamento bem detalhado e completo em toda a província. Foram encontrados em Santos 4.781 habitantes, dos quais 2.489 homens e 2.292 mulheres; 2.696
eram livres e 2.085 eram escravizados. Os brancos eram 1.344, os pretos 1.990, subindo o número dos mestiços, mulatos, cafusos e caboclos, a 1.447. O elemento masculino predominava de novo e o número dos escravizados era menor do que o das pessoas
livres.
Neste ano de 1822 foram sepultadas 205 pessoas e batizadas 237, havendo um saldo de 32 vidas. O número de casamentos foi de 22. Os coeficientes de nupcialidade, de natalidade e de mortalidade
foram, respectivamente, de 4, 49 e 42 por mil. Em extensão, pouco a vila havia crescido, tendo havido aumento de casas principalmente no núcleo do Valongo, para a Rua Direita, a Rua S. Antonio, a Rua de S. Bento e a Rua Vermelha, que veio a ser
depois S. Leopoldo, isto apesar do censo acusar diminuição da população, tão pequeno aliás, que não podia ter tido influência no caso.
"Porto do Consulado em 1888"
Imagem publicada com esta legenda no livro A Campanha Sanitária...
{1828}
Seis anos depois, em 1828, ainda outro recenseamento foi realizado em Santos, que aparece com 5.142 habitantes. Os pretos e mestiços eram mais numerosos do que os brancos, 1.454 para 3.692,
havendo 2.348 escravizados. Os homens eram 2.779, as mulheres 2.367, menos numerosas, portanto. Deste ano não encontramos obituário certo, mas no seguinte faleceram 167 pessoas e nasceram 218. Houve menos falecimentos do que em 1822, mas os
batizados foram também em menor número. Foi uma época agitada da vida santista, em que as lutas políticas se intensificaram, perturbando o seu desenvolvimento.
{1839}
Quando a terra dos Andradas foi elevada à categoria de cidade, em 1839, propondo-se-lhe, na Assembléia Legislativa, o nome de Bonifácio, não dispunha ainda do menor conforto, estando mesmo
o tipo das edificações e dos arruamentos em completo desacordo com a riqueza local no tempo existente. O porto já era bem movimentado, a ele vindo ter todas as mercadorias destinadas ao interior da província, que subiam a serra pela estrada antiga
dos colonizadores, depois beneficiada e denominada de Vergueiro.
Nenhum edifício de vulto ou de gosto possuía a nova cidade; a Matriz, sempre ruinosa; a Cadeia, disforme, onde a Câmara Municipal funcionava; a Alfândega, antigo Convento dos Jesuítas;
eram casarões primitivos. O próprio hospital da Misericórdia, fundado por Braz Cubas em 1543, ao lado da igreja que veio a ser a Matriz e transportado depois para a encosta de S. Jerônimo onde ainda está, nada de interessante apresentava, além da
sua capela pitoresca.
O calçamento da cidade resumia-se em simples empedramento de algumas ruas e travessas centrais, sujeitas todas a inundações freqüentes, por falta de sarjetas e de bueiros.
Os ribeirões do Carmo, de S. Jerônimo e de S. Bento, cujas nascentes eram aproveitadas como mananciais, nas encostas dos morros, atravessavam a descoberto o coração urbano, servindo de
receptáculo para imundícies de todas as espécies.
Não se fazia a remoção do lixo, que ficava nas praças para aterro, ou permanecia nas praias e nos quintais, ou nos leitos dos ribeirões, perturbando o curso das águas.
Não havia água canalizada e a população abastada fazia buscá-la nas fontes pelos seus escravizados, comprando-a os remediados aos aguadeiros ambulantes. A pobreza consumia a água salobra
dos poços abertos nos quintaletes, ao lado das fossas.
Esgotos, mesmo rudimentares, não existiam; as casas próximas aos ribeiros atiravam neles as águas servidas e demais impurezas, despejando-se nas praias, à noite, os resíduos das demais,
quando não tinham fossas.
A iluminação pública, de azeite, era constante de raros lampiões nas esquinas das ruas principais, cessando de funcionar às 20 horas, ao toque de recolher soado na Cadeia, ou quando
devia haver luar.
Os enterramentos eram feitos nas igrejas, nos pátios para a pobreza, ou os grandes humildes, ficando as naves reservadas para as sepulturas dos ricos e considerados.
Se a vida comercial já era intensa, o meio social era mais do que tranqüilo, não havendo diversões, não havendo teatros. Apesar de ser o empório da província, Santos era o tipo apurado
duma povoação colonial sem fortuna e as praias lodosas do porto, só limpas por ocasião das grandes marés, e freqüentadas por bandos de urubus, davam a nota característica local. As belas praias marítimas eram despovoadas, existindo apenas algumas
casas na chamada de Embaré, do Boqueirão até a entrada da Barra, para onde se ia pelo caminho saindo das "Duas Pedras". A praia do José Menino, da alcunha de Joaquim Bueno, proprietário do sítio que a continha, era inacessível ainda, e somente a
freqüentavam pescadores e raros passageiros para S. Vicente, vindos do Jabaquara, pelo Marapé.
{1843}
Em 1843 Santos esteve em festas, recebendo a visita de d. Pedro II que se hospedou no grande sobrado da Rua Direita, residência do Visconde de Embaré, casa hoje desaparecida, surgindo em
seu lugar o palacete Braz Cubas. O imperador visitou vários pontos da cidade, tendo percorrido o hospital da Santa Casa onde existiam 30 doentes. Não podiam ter sido muito faustosos tais festejos, porquanto a renda municipal orçava por 6:680$000,
ou mais 3:180$ do que possuía o município quando a sua sede foi elevada a cidade, com 3.500 habitantes.
Até 1850, nenhuma perturbação grave para a saúde pública surgiu em Santos, que continuava a se desenvolver sensivelmente para os lados dos "quartéis". As edificações na praia
estenderam-se bem para além da Rua da Palha, em demanda do Paquetá, abrindo-se a Rua Nova, depois General Câmara, transpondo o Largo da Coroação, hoje Praça Mauá, o melhor daquele tempo, em que era o rocio (N.E.: rocio
ou rossio era uma área que se determinava em cada cidade para livre uso público, destinando-se à pastagem e estacionamento de bovinos e eqüinos, como os dos tropeiros. É bem conhecido na capital portuguesa, aliás, o bairro do Rossio) da cidade. A Rua das Flores, depois Amador Bueno, que saía do Largo de S. Jerônimo, fronteiro à Santa Casa, atingia o largo chamado depois Mauá e em seguida José Bonifácio, por troca de nome com aquele, e começava a transpô-lo em
direção ao Paquetá, onde mais tarde foi feito o Cemitério.
As ruas saídas da Praça da Matriz buscavam as fontes do Itororó e das Duas Pedras, onde a cidade acabava. A parte mais rica de Santos continuava para os lados do Valongo, onde maior era
o movimento comercial, onde ficavam os melhores armazéns e morava a gente mais abastada. Não possuía entretanto a cidade nenhum melhoramento ainda, vindo-lhe a água, em pequena quantidade, da Cachoeira do José Menino, pela depois Rua do Encanamento
até o Boqueirão, donde chegava ao centro pelo novo Caminho da Barra, em linha reta, o qual veio a ser a Rua Conselheiro Nébias.
Esgotos não havia, sendo ainda primitivo o calçamento e freqüentes as inundações por falta de sarjetas e bueiros de escoamento para as águas pluviais. Cessado o tráfego comercial, a
cidade era triste e silenciosa, não havendo diversões além das tradicionais festas religiosas do Carmo e do Monte Serrate.
Em fins de 1849, a febre amarela desembarcava no Rio de Janeiro e ali se instalava, causando a grande epidemia de 1850, e Santos não podia escapar à visita da doença, dada a sua
proximidade da Corte e a semelhança das suas condições e de clima.
De fato, neste ano, em abril, aparecia o primeiro óbito pela doença em Santos; era um rapaz português, caixeiro, tratado no Hospital da Santa Casa. Mais alguns casos e
óbitos ocorreram até o fim do verão, quando a febre desapareceu, não voltando nos anos seguintes, de 1851 e 1852. (N.E.: o pesquisador Costa e Silva Sobrinho desmente essa afirmação, com
documentos).
Em 1853 aparece a primeira epidemia de febre amarela em Santos, começada em fevereiro, causando 20 óbitos, quase todos em estrangeiros. Tendo sido de 220 casos a mortalidade geral da cidade, a
nova doença chegou a atingir quase dez por cento da cifra, chamando a atenção do público e das autoridades. No ano seguinte de 1854, a febre amarela nenhum óbito causou, parecendo ter abandonado a localidade, onde entretanto depois veio a causar
tantos estragos.
{1854}
Em 1854, por ordem do presidente da Província, dr. José Antonio Saraiva, foi feito um recenseamento em S. Paulo, apurando-se para o Município de Santos a população de 7.855 habitantes, dos
quais 4.199 eram homens e 3.656 mulheres, 3.956 livres e 3.189 escravizados. Nacionais eram 7.145 e 710 estrangeiros, dos quais a maioria era de portugueses, seguindo-se-lhes os africanos, quase todos estes escravizados.
A cidade havia prosperado sensivelmente em relação ao recenseamento anterior, desenvolvendo-se o comércio quer de cabotagem, quer com o estrangeiro, sendo notável já o número de
embarcações que fundeavam nos portos do Bispo e do Consulado. A Santos já se vinham subordinando as povoações marítimas vizinhas, que para aqui enviavam os seus produtos para embarque, para o interior e o exterior, principalmente os da zona
meridional, que não dispunham de estradas fáceis para o centro da Província. Grande era o comércio de açúcar em Santos, produzindo-o ainda alguns engenhos da ilha de S. Amaro; entretanto, a lavoura de cereais havia desaparecido por completo, sendo
a cidade abastecida pelos gêneros de serra acima.
O aviso do ministro do Império, de 16 de março de 1850, mandara fazer cessar os enterramentos nos templos e estabelecer cemitérios públicos para este fim. Em obediência a tal
determinação, foi reservado um terreno vasto no Paquetá, quase à beira-mar, formando quarteirão entre os prolongamentos das ruas do Rosário e das Flores e ali estabelecido o Campo Santo Municipal, existente ainda hoje. Com a abertura do caminho
para o novo cemitério, começou a se povoar a zona circunvizinha, próxima do Caminho Novo da Barra, facilitando-se deste modo o desafogo da cidade velha, apertada até então entre a praia do porto e os morros de S. Bento e de S. Jerônimo, depois
chamado também Monte Serrate. Desde logo esse caminho novo da Barra foi se povoando, criando-se nele boas chácaras, residências de famílias abastadas. A praia de Embaré já era habitada, estando, porém, deserta a do José Menino, que servia apenas de
passagem para S. Vicente.
A estrada para a capital da Província tinha sido melhorada, sendo o seu tráfego intenso, e os santistas já pensavam em ligar-se à cidade serrana por um caminho de ferro, tentados pelo
novo meio de transporte inaugurado dois anos antes no Rio de Janeiro, graças à iniciativa de Irineu Evangelista de Souza, depois Visconde de Mauá.
Só mais de uma dúzia de anos depois viram os santistas a chegada da primeira locomotiva ao Valongo, à estação construída no lugar ocupado anteriormente por uma ala do Convento de S.
Antonio e, cremos bem, não foi estranho a este melhoramento o promotor do primeiro caminho de ferro brasileiro.
As rendas de Santos montavam a 6:505$000, cifra elevada para aquele tempo, e a cidade continuava pobre de melhoramentos e serviços públicos. O calçamento era restrito, como já referimos,
limitado a pequena zona central; as inundações torturavam os moradores dos lugares menos altos da cidade; os esgotos, como a água potável, faltavam; a iluminação, feita com lampiões de azeite, cessava ao toque das 20 horas, ou quando devia haver
luar. Nenhum edifício de valor havia surgido, público ou particular, continuando os antigos casarões da Cadeia, do Arsenal de Marinha, em frente ao Carmo, da Alfândega, da Matriz e dos Quartéis, por trás daquela a atestar a falta de gosto e de
iniciativa dos governos da Província e do Império. Obra nova, só se fizera o Cemitério do Paquetá, com o suplemento para protestantes ao lado.
Depois da febre amarela, a doença que figura com cifra maior no obituário deste ano é o tétano dos recém-nascidos, com 20 casos, seguindo-se-lhe a disenteria com 17, a tuberculose com
16, as hidropisias com 10, as febres perniciosas com 4, a varíola com 2 e a escarlatina com 1. O número total de óbitos foi de 225, tendo sido feitos 250 batizados e 42 casamentos, de sorte que os respectivos coeficientes, por mil habitantes, foram
de 32, 28 e 5.
"O mesmo (Porto do Consulado) em 1908"
Foto publicada com esta legenda no livro A Campanha Sanitária...
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