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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (X)
Porto disputa espaço com a cidade (6-D)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas.

Em todo esse tempo, como nos cem anos anteriores, o porto foi avançando sobre o território urbano. E essa verdadeira guerra entre o porto e a cidade que o abriga ficou bem clara numa série de matérias do jornal santista A Tribuna, que continuou sendo publicada em 8 de outubro de 1980:


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A CIDADE SUBJUGADA - 4
A Cidade (ainda) vive em função do porto

O trabalhador portuário trocou a lagosta do extinto Chave de Ouro pelo sanduíche de ovo enfeitado, conseqüência da perda do poder aquisitivo de seu salário nos últimos 15 anos. Mas há outra conseqüência: o comércio, uma das principais fontes de renda da Cidade, depois do porto, deu preferência ao trabalhador de Cubatão, mais bem pago, embora não tenha abandonado o portuário, que em termos numéricos ainda representa uma grande parcela do movimento comercial de Santos. Afinal, metade da população vive em função do porto, em empregos diretos ou indiretos.

Texto: Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares
Fotos: Rafael Dias Herrera

A crise chega ao cais
(e a economia sofre)

É difícil para muita gente reconhecer que o porto não é mais o mesmo de há 10 anos. Principalmente porque se sabe que pelo menos a metade da população de Santos vive exclusivamente em função dos serviços portuários. Mas o que caiu não foi o movimento de mercadorias, como muitos podem pensar. O que caiu foi o poder aquisitivo desse contingente que sobrevive graças à existência do porto. Por isso, qualquer abalo sofrido no setor de importação ou de exportação é imediatamente refletido no comportamento da Cidade.

Os números foram fornecidos pelo inspetor geral da Companhia Docas, José de Menezes Berenguer, retirados de palestra da I Semana de Engenharia Civil, realizada em setembro no Santa Cecília: há, em Santos, 35 mil trabalhadores diretamente vinculados às atividades portuárias, gerando a dependência familiar de 110 mil pessoas, ou 25% da população total da Cidade. Mas, como afirma Berenguer, há ainda muitas outras pessoas envolvidas em empregos indiretos, dependentes do porto, o que pode elevar esse índice até quase a metade da população total de Santos, com reflexos também em outras cidades da Baixada Santista.

Apenas aos 13.200 empregados da administração do porto, ainda segundo Berenguer, serão pagos este ano cerca de Cr$ 5 bilhões em salários, um total invejável, que supera em duas vezes e meia o orçamento municipal para este ano, de Cr$ 1 bilhão 965 milhões.

Esse dado, somado ao de que a participação do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS -, pago por 20 mil empresas direta ou indiretamente ligadas aos serviços portuários, influi em 25% do orçamento de Santos, comprova que a dependência da Cidade para com o porto é mesmo vital para a sobrevivência econômica do Município. Uma dependência que nasceu com a fundação da vila e que fez o porto e a Cidade sempre caminharem juntos, como o senhorio e a sua sombra.

Enquanto nos últimos 10 anos a movimentação de mercadorias no porto passou de 11 milhões de toneladas em 1970, a 22 milhões de toneladas previstas para 1980, o salário dos trabalhadores não acompanhou a evolução do custo de vida, estando defasado em mais de 50%.

Abalo sentido - Os abalos verificados em decorrência de crises mundiais, e que tiveram reflexos no sistema portuário, sempre trouxeram ônus à estabilidade econômica da Cidade, o que prova mais uma vez a dependência. Um desses abalos aconteceu há exatamente cinco anos, quando o Governo Federal determinou uma série de medidas de recessão à importação, visando a igualar a balança comercial do País.

No final de 1974, portanto antes da medida governamental, o Porto de Santos registrava o seu recorde histórico de movimentação de cargas, chegando a 19 milhões de toneladas. Desse total, 13 milhões de toneladas eram de mercadorias importadas, e apenas seis milhões de toneladas, de carga de exportação. O corte nas importações, portanto, trouxe uma drástica redução no movimento proporcional de mercadorias, refletindo também drasticamente no salário dos trabalhadores, principalmente dos que ganhavam por produção.

O abalo foi sentido pela Cidade. As agências de navegação e as comissárias de despacho registraram uma queda de 20 a 30% no movimento, reduzindo, por isso, o setor pessoal; os bancos sentiram a falta de dinheiro, com a queda dos saldos e com a lenta rotatividade de capital; o comércio anunciou forte retração nas vendas; as transportadoras tiveram redução na quantidade de frete. A Cidade quase entrou num colapso porque o movimento geral do porto caiu, de 1974 (considerado no jargão portuário como um ano atípico) para 1975 em pelo menos dois milhões de toneladas. Nesse ano, a importação apresentou 53% do movimento do porto, índice considerado baixo e que não se verifica desde o início de 60.

De lá para cá, o crescimento na movimentação geral de mercadorias tem aumentado, embora os salários dos portuários tenham sofrido defasagem, o que implica diretamente no desequilíbrio econômico da Cidade.


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O portuário ficou pobre
(e trabalhou mais)

O sanduíche de ovo enfeitado - pão, ovo e uma folha de alface - passou a ser um dos pratos mais populares no Porto de Santos. Geralmente é acompanhado de uma Caracu, ou meia cerveja, ambas sempre "estupidamente" geladas. O trabalhador portuário, seja ele de capatazia ou avulso, não tem mais o poder aquisitivo de 16 anos atrás, quando podia entrar em qualquer restaurante, principalmente aqueles instalados na faixa portuária, e pedir um prato sofisticado. A lagosta - que ficou famosa no extinto Chave de Ouro - considerada uma das melhores da América Latina, passou a ser um prato exclusivo dos sofisticados restaurantes da orla da praia. O trabalhador portuário come arroz com feijão.

Essa diminuição considerável no poder aquisitivo começou em 1965, atingindo principalmente os empregados da Companhia Docas de Santos. Até então, trabalhar na empresa era uma espécie de ideal, uma chance de fazer carreira, garantir bons salários e cargos importantes, bastando paciência e muito trabalho. Os trabalhadores avulsos - conferentes, estivadores, consertadores e vigias - também sofreram o mesmo problema, só que em menor intensidade. Afinal, não são empregados de ninguém, seus sindicatos não estão atrelados a uma só empresa, mas às agências de navegação. Conseqüentemente, suas lideranças têm maior capacidade de penetração política junto aos órgãos federais.

Isso não significa que eles tenham hoje um bom poder aquisitivo. Ganham salários razoáveis, mas para isso são obrigados a trabalhar horas seguidas, enfrentar jornadas diurnas e noturnas consecutivas, única fórmula de aumentar os ganhos, sem uma garantia salarial no fim do mês. Os empregados da Companhia Docas nem mesmo essa possibilidade encontram. Vivem de salários engordados com horas extras, trabalhos noturnos, aos domingos e feriados, e presos aos reajustes semestrais e dissídios coletivos anuais. Seu poder aquisitivo foi diminuindo, perdendo terreno para a inflação. A cada ano que passa eles ganham menos e, conseqüentemente, consomem menos.

Há aproximadamente 20 anos a simples apresentação de uma carteira preta - documento da estiva que virou folclore - era mais do que suficiente para a abertura de crédito, para garantir pagamentos em dia. Os próprios empregados da CDS tinham orgulho de mostrar suas carteiras funcionais a gerentes e lojas e bancos, conscientes de que ela lhes conferia status. Todos tinham orgulho de trabalhar na CDS.

Com a Revolução de 1964, os papéis sofreram uma reviravolta. A partir de 1966, os empregados da concessionária perderam regalias conquistadas em 1934 e 1937, resultado de uma nova política salarial. Assim, os estudos realizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos - DIEESE   -, em 1978, demonstram que os reajustes deixaram de acompanhar a evolução do custo de vida. O poder aquisitivo do funcionário da CDS caiu em 1966, 67, 68, 69, 72, 74 e 77, apresentando pequenas recuperações apenas em 1970, 75 e 76. Antes de sofrer o reajuste de 1977, o salário real de cada trabalhador representava apenas 48% do poder aquisitivo que ele desfrutava em 1965. Portanto, para que cada salário voltasse ao mesmo poder de compra daquele ano (1965), seria necessário um reajuste de 108% sobre os índices de 1977.

Isso sem se levar em consideração a produtividade. Nesse caso, para se evitar que a distribuição de renda fosse feita em prejuízo do operário portuário, existia a necessidade de que os salários, além de manter determinado poder de compra, incorporassem os aumentos de produtividade. Os estudos realizados pelo DIEESE mostram que os dois - salário real e produtividade - comportaram-se, ao longo destes 15 anos, em sentido contrário: enquanto a produtividade aumentava, os salários decresciam. Assim, para que esses salários passassem a incorporar os ganhos de produtividade relativos ao período de 1965 a 1977, os trabalhadores precisariam ter um aumento de 308 por cento.

Esses estudos vão mais longe ainda. Chegam à conclusão de que no período de 1965 a 77, o poder aquisitivo dos portuários empregados da CDS foi reduzido em 45 por cento, ou seja, de 100 para 55. O salário nominal cresceu no mesmo período em apenas 28 vezes - 100 para 2.807 -, considerando-se o reajuste de janeiro de 1978. Paradoxalmente, a produtividade desses mesmos trabalhadores cresceu em 98%, provando que cada um vem produzindo cada vez mais, em troca de salários cada ano menores, deteriorando continuamente a sua condição e a qualidade de vida.

Os reajustes salariais fixados pelo Conselho Nacional da Política Salarial - CNPS - provam que esse fenômeno agravou-se muito nos últimos 15 anos. Em 1965, os aumentos foram de 57%, diminuindo para 27%, cinco anos mais tarde. Os dois menores aumentos registrados nesse período foram em 1973/74, fixados respectivamente em 19,6 e 17,07%. No ano seguinte, 1975, o índice foi de 43 por cento, o mesmo conseguido em 1979.

Portanto, o comportamento da política salarial a partir de 1964 vem refletindo diretamente na vida econômica da Cidade. Mais de 100 mil homens que mantêm uma ligação direta com o porto sofreram as conseqüências das constantes diminuições do poder aquisitivo de seus salários. E consumiram menos, provocando uma queda razoável no comércio local. O trabalhador portuário foi obrigado a deixar de lado o orgulho e a se dedicar mais ao trabalho, aumentando a produção e vendo pratos como a lagosta, cada dia mais inacessíveis. Ela foi substituída pelo sanduíche de ovo enfeitado, e nem poderia ser de outra forma. O trabalhador do porto, nestes últimos 15 anos, ficou cada dia mais pobre. Mas seu patrão, cada dia mais rico

O comércio namora Cubatão
(mas não deixa o portuário)

Há cerca de 15 anos, quando o trabalhador portuário ganhava bem, era considerado o sustentador do comércio santista. Desse período para cá, a perda de regalias e com a defasagem salarial do portuário, o comércio passou a namorar os trabalhadores de Cubatão, mais especificamente os funcionários da Cosipa e da Refinaria. Mas, apesar do namoro mais arraigado com Cubatão, o comércio não abandonou o portuário, mantendo-se fiel a ele, que representa, em termos numéricos, grande parcela do movimento lojista de Santos.

"O trabalhador de Cubatão tem mais dinheiro, mas o comércio não desprezou o trabalhador portuário, que ainda é grande comprador, em termos numéricos, pois representa diretamente mais de 100 mil pessoas", diz Joaquim Faro Aguiar, presidente do Comércio Varejista de Santos.

Aguiar diz que sua vivência no comércio, onde trabalha há mais de 35 anos, permite dizer que há 15 anos o portuário tinha uma força muito grande junto ao comércio. E que naquela época Santos era a maior cidade compradora do País, em termos de transação comercial e excluindo algumas capitais. Quando o trabalhador portuário deixou de ganhar bons salários, o comércio também foi abalado, mas procurou compensar essa perda voltando-se para Cubatão.

"Apesar de tudo, o comércio ajustou-se à transformação e tem superado todas as grandes crises", reflete Aguiar, para completar: "Isso permitiu o crescimento em termos de lojas, com a expansão das empresas existentes e com a vinda de grandes grupos da Capital para Santos. E o comércio não se deixou abalar totalmente com a perda do trabalhador portuário, em quantidade de dinheiro. Evoluiu para os bairros, avançou para o Macuco, em busca do portuário, em busca de compradores, ajustando-se aos novos tempos".

Faro Aguiar acredita na tributação do ISS do porto com a passagem da administração para a Codesp. "Vejo com otimismo a tributação, porque a Cidade terá maior poder aquisitivo para solucionar os seus problemas, e também porque os trabalhadores terão um contato mais próximo com a diretoria, que na minha opinião deve ver com bons olhos os seus funcionários. Acho que os homens que trabalham devem ganhar o suficiente para viver decentemente".

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