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A CIDADE SUBJUGADA - 4
A Cidade (ainda) vive em função do porto
O trabalhador portuário trocou a lagosta do extinto Chave de
Ouro pelo sanduíche de ovo enfeitado, conseqüência da
perda do poder aquisitivo de seu salário nos últimos 15 anos. Mas há outra conseqüência: o comércio, uma das principais fontes de renda da Cidade,
depois do porto, deu preferência ao trabalhador de Cubatão, mais bem pago, embora não tenha abandonado o portuário, que em termos numéricos ainda
representa uma grande parcela do movimento comercial de Santos. Afinal, metade da população vive em função do porto, em empregos diretos ou
indiretos.
Texto: Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares
Fotos: Rafael Dias Herrera
A crise chega ao cais
(e a economia sofre)
É difícil para muita gente reconhecer que o porto não é
mais o mesmo de há 10 anos. Principalmente porque se sabe que pelo menos a metade da população de Santos vive exclusivamente em função dos serviços
portuários. Mas o que caiu não foi o movimento de mercadorias, como muitos podem pensar. O que caiu foi o poder aquisitivo desse contingente que
sobrevive graças à existência do porto. Por isso, qualquer abalo sofrido no setor de importação ou de exportação é imediatamente refletido no
comportamento da Cidade.
Os números foram fornecidos pelo inspetor geral da
Companhia Docas, José de Menezes Berenguer, retirados de palestra da I Semana de Engenharia Civil, realizada em setembro no
Santa Cecília: há, em Santos, 35 mil trabalhadores diretamente vinculados às atividades portuárias, gerando a dependência
familiar de 110 mil pessoas, ou 25% da população total da Cidade. Mas, como afirma Berenguer, há ainda muitas outras pessoas envolvidas em empregos
indiretos, dependentes do porto, o que pode elevar esse índice até quase a metade da população total de Santos, com reflexos também em outras
cidades da Baixada Santista.
Apenas aos 13.200 empregados da administração do porto, ainda segundo Berenguer, serão
pagos este ano cerca de Cr$ 5 bilhões em salários, um total invejável, que supera em duas vezes e meia o orçamento municipal para este ano, de Cr$ 1
bilhão 965 milhões.
Esse dado, somado ao de que a participação do Imposto Sobre Serviços de Qualquer
Natureza - ISS -, pago por 20 mil empresas direta ou indiretamente ligadas aos serviços portuários, influi em 25% do orçamento de Santos, comprova
que a dependência da Cidade para com o porto é mesmo vital para a sobrevivência econômica do Município. Uma dependência que nasceu com a fundação da
vila e que fez o porto e a Cidade sempre caminharem juntos, como o senhorio e a sua sombra.
Enquanto nos últimos 10 anos a movimentação de mercadorias no porto passou de 11
milhões de toneladas em 1970, a 22 milhões de toneladas previstas para 1980, o salário dos trabalhadores não acompanhou a evolução do custo de vida,
estando defasado em mais de 50%.
Abalo sentido - Os abalos verificados em decorrência de crises mundiais, e que
tiveram reflexos no sistema portuário, sempre trouxeram ônus à estabilidade econômica da Cidade, o que prova mais uma vez a dependência. Um desses
abalos aconteceu há exatamente cinco anos, quando o Governo Federal determinou uma série de medidas de recessão à importação, visando a igualar a
balança comercial do País.
No final de 1974, portanto antes da medida governamental, o Porto de Santos registrava
o seu recorde histórico de movimentação de cargas, chegando a 19 milhões de toneladas. Desse total, 13 milhões de toneladas eram de mercadorias
importadas, e apenas seis milhões de toneladas, de carga de exportação. O corte nas importações, portanto, trouxe uma drástica redução no movimento
proporcional de mercadorias, refletindo também drasticamente no salário dos trabalhadores, principalmente dos que ganhavam por produção.
O abalo foi sentido pela Cidade. As agências de navegação e as comissárias de despacho
registraram uma queda de 20 a 30% no movimento, reduzindo, por isso, o setor pessoal; os bancos sentiram a falta de dinheiro, com a queda dos saldos
e com a lenta rotatividade de capital; o comércio anunciou forte retração nas vendas; as transportadoras tiveram redução na quantidade de frete. A
Cidade quase entrou num colapso porque o movimento geral do porto caiu, de 1974 (considerado no jargão portuário como um ano atípico) para
1975 em pelo menos dois milhões de toneladas. Nesse ano, a importação apresentou 53% do movimento do porto, índice considerado baixo e que não se
verifica desde o início de 60.
De lá para cá, o crescimento na movimentação geral de mercadorias tem aumentado,
embora os salários dos portuários tenham sofrido defasagem, o que implica diretamente no desequilíbrio econômico da Cidade.
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O portuário ficou pobre
(e trabalhou mais)
O sanduíche de ovo enfeitado - pão, ovo e uma
folha de alface - passou a ser um dos pratos mais populares no Porto de Santos. Geralmente é acompanhado de uma Caracu, ou meia cerveja, ambas
sempre "estupidamente" geladas. O trabalhador portuário, seja ele de capatazia ou avulso, não tem mais o poder aquisitivo de 16 anos atrás, quando
podia entrar em qualquer restaurante, principalmente aqueles instalados na faixa portuária, e pedir um prato sofisticado. A lagosta - que ficou
famosa no extinto Chave de Ouro - considerada uma das melhores da América Latina, passou a ser um prato exclusivo dos sofisticados restaurantes da
orla da praia. O trabalhador portuário come arroz com feijão.
Essa diminuição considerável no poder aquisitivo começou em 1965, atingindo
principalmente os empregados da Companhia Docas de Santos. Até então, trabalhar na empresa era uma espécie de ideal, uma chance de fazer carreira,
garantir bons salários e cargos importantes, bastando paciência e muito trabalho. Os trabalhadores avulsos - conferentes, estivadores, consertadores
e vigias - também sofreram o mesmo problema, só que em menor intensidade. Afinal, não são empregados de ninguém, seus sindicatos não estão atrelados
a uma só empresa, mas às agências de navegação. Conseqüentemente, suas lideranças têm maior capacidade de penetração política junto aos órgãos
federais.
Isso não significa que eles tenham hoje um bom poder aquisitivo. Ganham salários
razoáveis, mas para isso são obrigados a trabalhar horas seguidas, enfrentar jornadas diurnas e noturnas consecutivas, única fórmula de aumentar os
ganhos, sem uma garantia salarial no fim do mês. Os empregados da Companhia Docas nem mesmo essa possibilidade encontram. Vivem de salários
engordados com horas extras, trabalhos noturnos, aos domingos e feriados, e presos aos reajustes semestrais e dissídios coletivos anuais. Seu poder
aquisitivo foi diminuindo, perdendo terreno para a inflação. A cada ano que passa eles ganham menos e, conseqüentemente, consomem menos.
Há aproximadamente 20 anos a simples apresentação de uma carteira preta - documento da
estiva que virou folclore - era mais do que suficiente para a abertura de crédito, para garantir pagamentos em dia. Os próprios empregados da CDS
tinham orgulho de mostrar suas carteiras funcionais a gerentes e lojas e bancos, conscientes de que ela lhes conferia status. Todos tinham
orgulho de trabalhar na CDS.
Com a Revolução de 1964, os papéis sofreram uma reviravolta. A partir de 1966, os
empregados da concessionária perderam regalias conquistadas em 1934 e 1937, resultado de uma nova política salarial. Assim, os estudos realizados
pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos - DIEESE -, em 1978, demonstram que os reajustes deixaram de
acompanhar a evolução do custo de vida. O poder aquisitivo do funcionário da CDS caiu em 1966, 67, 68, 69, 72, 74 e 77, apresentando pequenas
recuperações apenas em 1970, 75 e 76. Antes de sofrer o reajuste de 1977, o salário real de cada trabalhador representava apenas 48% do poder
aquisitivo que ele desfrutava em 1965. Portanto, para que cada salário voltasse ao mesmo poder de compra daquele ano (1965), seria necessário um
reajuste de 108% sobre os índices de 1977.
Isso sem se levar em consideração a produtividade. Nesse caso, para se evitar que a
distribuição de renda fosse feita em prejuízo do operário portuário, existia a necessidade de que os salários, além de manter determinado poder de
compra, incorporassem os aumentos de produtividade. Os estudos realizados pelo DIEESE mostram que os dois - salário real e produtividade -
comportaram-se, ao longo destes 15 anos, em sentido contrário: enquanto a produtividade aumentava, os salários decresciam. Assim, para que esses
salários passassem a incorporar os ganhos de produtividade relativos ao período de 1965 a 1977, os trabalhadores precisariam ter um aumento de 308
por cento.
Esses estudos vão mais longe ainda. Chegam à conclusão de que no período de 1965 a 77,
o poder aquisitivo dos portuários empregados da CDS foi reduzido em 45 por cento, ou seja, de 100 para 55. O salário nominal cresceu no mesmo
período em apenas 28 vezes - 100 para 2.807 -, considerando-se o reajuste de janeiro de 1978. Paradoxalmente, a produtividade desses mesmos
trabalhadores cresceu em 98%, provando que cada um vem produzindo cada vez mais, em troca de salários cada ano menores, deteriorando continuamente a
sua condição e a qualidade de vida.
Os reajustes salariais fixados pelo Conselho Nacional da Política Salarial - CNPS -
provam que esse fenômeno agravou-se muito nos últimos 15 anos. Em 1965, os aumentos foram de 57%, diminuindo para 27%, cinco anos mais tarde. Os
dois menores aumentos registrados nesse período foram em 1973/74, fixados respectivamente em 19,6 e 17,07%. No ano seguinte, 1975, o índice foi de
43 por cento, o mesmo conseguido em 1979.
Portanto, o comportamento da política salarial a partir de 1964 vem refletindo
diretamente na vida econômica da Cidade. Mais de 100 mil homens que mantêm uma ligação direta com o porto sofreram as conseqüências das constantes
diminuições do poder aquisitivo de seus salários. E consumiram menos, provocando uma queda razoável no comércio local. O trabalhador portuário foi
obrigado a deixar de lado o orgulho e a se dedicar mais ao trabalho, aumentando a produção e vendo pratos como a lagosta, cada dia mais
inacessíveis. Ela foi substituída pelo sanduíche de ovo enfeitado, e nem poderia ser de outra forma. O trabalhador do porto, nestes últimos
15 anos, ficou cada dia mais pobre. Mas seu patrão, cada dia mais rico
O comércio namora Cubatão
(mas não deixa o portuário)
Há cerca de 15 anos, quando o trabalhador portuário
ganhava bem, era considerado o sustentador do comércio santista. Desse período para cá, a perda de regalias e com a defasagem salarial do portuário,
o comércio passou a namorar os trabalhadores de Cubatão, mais especificamente os funcionários da Cosipa e
da Refinaria. Mas, apesar do namoro mais arraigado com Cubatão, o comércio não abandonou o portuário,
mantendo-se fiel a ele, que representa, em termos numéricos, grande parcela do movimento lojista de Santos.
"O trabalhador de Cubatão tem mais dinheiro, mas o comércio não desprezou o
trabalhador portuário, que ainda é grande comprador, em termos numéricos, pois representa diretamente mais de 100 mil pessoas", diz Joaquim Faro
Aguiar, presidente do Comércio Varejista de Santos.
Aguiar diz que sua vivência no comércio, onde trabalha há mais de 35 anos, permite
dizer que há 15 anos o portuário tinha uma força muito grande junto ao comércio. E que naquela época Santos era a maior cidade compradora do País,
em termos de transação comercial e excluindo algumas capitais. Quando o trabalhador portuário deixou de ganhar bons salários, o comércio também foi
abalado, mas procurou compensar essa perda voltando-se para Cubatão.
"Apesar de tudo, o comércio ajustou-se à transformação e tem superado todas as grandes
crises", reflete Aguiar, para completar: "Isso permitiu o crescimento em termos de lojas, com a expansão das empresas existentes e com a vinda de
grandes grupos da Capital para Santos. E o comércio não se deixou abalar totalmente com a perda do trabalhador portuário, em quantidade de dinheiro.
Evoluiu para os bairros, avançou para o Macuco, em busca do portuário, em busca de compradores, ajustando-se aos novos tempos".
Faro Aguiar acredita na tributação do ISS do porto com a
passagem da administração para a Codesp. "Vejo com otimismo a tributação, porque a Cidade terá maior poder aquisitivo para solucionar os seus
problemas, e também porque os trabalhadores terão um contato mais próximo com a diretoria, que na minha opinião deve ver com bons olhos os seus
funcionários. Acho que os homens que trabalham devem ganhar o suficiente para viver decentemente". |