A tranqüilidade diminuiu à medida que a Cidade cresceu
Breve caminhada em busca de uma cidade perdida
Texto de Lane Valiengo
Fotos: Arquivo Prodesan
Aqui termina a aventura.
Durante muitos dias e páginas, percorremos a Baixada Santista tentado entender o
que aconteceu, através dos tempos, com o antigo ponto de parada dos canoeiros. Registramos as transformações, procuramos as causas que determinaram
a ocupação desenfreada e a conseqüente queda na qualidade de vida. Assistimos à ascensão e queda do império do café, o crescimento do fluxo
turístico, a chegada das indústrias, a construção do paredão de prédios da orla santista.
E conhecemos o principal produto da espoliação urbana: uma grande população
carente, marginalizada, que vive em porões, favelas e diques, sem direito de participar dos benefícios econômicos que esta mesma população ajudou a
criar.
Andamos pelos morros, sentindo a velha insegurança de sempre, acompanhada pelo
descaso dos administradores. Examinamos todos os planos destinados a disciplinar e controlar o crescimento, e que continuam esquecidos,
simplesmente, como se viver com dignidade não fosse o mais importante de tudo.
Viajamos pelo passado, conhecendo a História deste povo, e depois nos deparamos com
a dura realidade do presente, com a invasão de Bertioga. Ouvimos previsões sombrias sobre o futuro que se aproxima, mais veloz do que o nosso
pensamento, e ficamos sabendo que Santos será, em breve, uma cidade destinada exclusivamente aos edifícios.
O homem, como sempre, será relegado a um papel secundário, mero coadjuvante dos
tempos mecanizados que já se anunciam.
Apontamos algumas saídas e sugestões, passeamos pelos sonhos e pela utopia, e
mostramos como se manifesta o jogo da dominação nas cidades, a luta pelo poder e o reflexo dos sentimentos do homem impregnando as estruturas de
concreto. Finalmente, discutimos a necessidade de uma atuação a nível político (o espaço é político, é sempre bom lembrar...) como forma de apontar
as reais carências da comunidade. E fazer com que a voz do povo seja respeitada.
A aventura termina aqui. Os ciclos históricos têm o hábito de repetir-se
regularmente, e hoje retomamos exatamente o início desta série de reportagens. começamos mostrando o que havia na alma dos primeiros habitantes da
ilha, e toda a esperança que existia em cada um deles. Hoje, nos perguntamos o que sentem os santistas, o que pensam sobre a sua cidade.
Muita coisa mudou, não é mesmo?
Mas a esperança ainda resiste, mesmo que o futuro pareça tenebroso.
Mesmo que a poluição continue a aumentar e que os prédios continuem a se
reproduzir.
E mesmo que os humildes e os carentes sejam cada vez mais oprimidos.
Pois sonhar é tão importante para o homem quanto o alimento que o revigora. E
sonhar que a cidade em que se vive será um lugar melhor para se viver nada mais é do que sonhar com o dia em que a felicidade deixará de parecer uma
coisa irreal.
As ruas sofrem transformações, assim como os homens
I - O amor e o ódio
As crianças perdem parte da sua sensibilidade natural
quando começam a viver o mundo dos adultos. As cidades perdem sua inocência quando a vida dos seus habitantes passa a ser considerada apenas como
mais um produto a ser comercializado.
E o que perdemos nós, que vivemos em Santos?
"A gente ama a terra em que nasce, a gente ama a terra em que vive, mesmo, o mais das
vezes, com muita raiva", escreveu por estes dias o poeta Narciso de Andrade, relembrando em sua imaginação "um longo poema nunca jamais escrito, sob
o título Canto de Amor e Ódio à Cidade de Santos".
A cidade aprisiona e sufoca, é verdade, e já falamos muito sobre este tema. Mas o ódio
está muito próximo do amor, como observou Narciso. Não estamos falando de teorias, de coisas distantes que parecem não nos afetar: ocupação do solo
não é apenas um tema para discussões técnicas, mas diz respeito ao nosso próprio cotidiano. Representa o chão que pisamos, o ar que respiramos, as
ruas em que passamos, as casas em que moramos, as pessoas com quem nos relacionamos, com quem nos divertimos, sofremos, amamos.
São os nossos próprios sentimentos, e muito mais.
Em "Carta a Um Poeta", Roldão Mendes Rosa fala da necessidade de ir além dos aspectos
superficiais, e penetrar realmente na cidade, naquilo que ela tem de significativo.
"Ouve e aprende a cidade real.
Ela não é apenas a rua em que passas
a caminho de casa, nem a casa em que moras,
nem os telhados vistos do alto.
A cidade é o conhecimento de suas faltas e lutas.
Procura encontrá-la em ti mesmo.
Enquanto a vires com os olhos
não poderás dizer que a conheces.
Quem vê um corpo e sua roupa nada sabe do homem."
O bonde da Linha Um já não circula sobre o mangue, onde hoje vive a Zona Noroeste. Os
tempos trouxeram muitas modificações, nada será como antes.
Já não há espaços livres e os garotos de hoje não conseguem mais caçar rãs e lagartos
no Macuco. E nem mesmo deitar nos trilhos do bonde, obrigando os motorneiros a freadas desesperadas.
Perdemos a inocência, certamente.
E estamos, pouco a pouco, perdendo a tranqüilidade.
"Santos, uma vila considerável, populosa e comerciante, entreposto de grande
quantidade de açúcar, aguardente, tecidos de algodão, café, coraime, toucinho. Os navios carregam por pranchões para o cais. Os invernos são
chuvosos e só as colheitas de arroz e café são abundantes" (Aires do Casal, 1817).
Resta apenas arrancar do presente a Santos do futuro.
Cais do Valongo, no início do século XX
II - Cenas da cidade
Quando Santos começa a adormecer, as luzes surgem no
alto dos morros. Nos morros, por esta época, bebe-se muito vinho quente e respira-se melhor, enquanto alguns contam lendas fantásticas e outros
observam a lua cheia, com vontade de uivar e quebrar o silêncio que nos envolve. Viver nos morros, todos sabem, é como estar em um outro mundo.
Espalhando o cheiro de maresia e de pellets, os homens carregam os volumes no
cais. De longe, os mastros aparecem recortados pela luz das lâmpadas amarelas. O porto é a própria razão de Santos existir. Mas em outras épocas
ganhava-se mais e vivia-se intensamente no cais. Hoje, sobraram apenas as histórias de valentia.
As expressões são mais amargas, basta ver os trabalhadores erguendo suas carteiras
pretas, em busca de um serviço ocasional. Ou, então, o rosto de quem atravessa o estuário, nas catraias que saem da rampa do Mercado. Na estação das
barcas de Vicente de Carvalho, ali atrás da Receita, as brigas são comuns: geralmente, as barcas estão quebradas, e chegar em casa vai demorar um
pouco mais.
Nas noites quentes de verão, nos bairros, ainda conserva-se o hábito de colocar
cadeiras na calçada, e pensar que nenhum míssil atômico será capaz de destruir uma paz desse tamanho. Mas quando sopra o Noroeste, todos sabem que
os sonhos serão pesados e a respiração mais difícil.
Muitos partiram, subindo a Serra em busca de novos horizontes. Mesmo longe, contudo,
dentro de uma indústria do ABC ou de um escritório no centro de São Paulo, os santistas continuam ligados à Cidade.
As almas sofredoras procuram um bálsamo qualquer, e lotam os templos, os centros, as
garagens improvisadas, em busca das palavras mágicas que garantam que ainda há uma esperança para a humanidade. O "ministro" do Boqueirão carrega
sua pobreza e sua mendicância pelas ruas do bairro, dormindo na porta do cinema, enquanto centenas de pessoas despertam com a madrugada para
abastecer a Cidade, na feirinha do Mercado.
Santos é uma cidade sem memória, e os livros do último sebo estão sendo devorados por
cupins, na histórica Casa do Trem. Abandonados, como se abandonam os sonhos do passado.
Aos 439 anos de idade, vivemos praticamente amontoados, o índice de ocupação da
Baixada é de 684 habitantes por quilômetro quadrado, enquanto alguns procuram erguer belas mansões nas encostas dos morros mais valorizados.
O velho Nacional mudou de sede, deixando o salão nos altos do antigo Cine Coliseu, de
tantas glórias, e que hoje exibe filmes de gosto bastante duvidoso.
Ainda fazemos greves, de vez em quando, como que para mostrar que a antiga coragem e a
velha fibra ainda não foram destruídas. E estamos aos poucos ocupando a orla, invadindo os espaços que antes eram reservados preferencialmente aos
turistas paulistas. Na grande praça que cerca o Aquário, ao lado dos automóveis, ainda existe tempo para que as crianças possam brincar. E os carros
estacionados na areia da praia, à noite, demonstram: ama-se muito em Santos.
A velha Boca, de fama mundial, já não garante a satisfação do freguês, e as
mulheres procuram ansiosas por um encontro ocasional. Na Rua Guaibê, uma casa construída como se fosse um antigo castelo medieval continua
resistindo ao tempo. Ali perto, junto aos prédios do conjunto do BNH, a bola corre veloz todos os domingos, ao som de um samba contagiante.
Santos é uma cidade em que ainda podemos reconhecer o rosto de quem passa por nós,
pelas ruas, e pela noite do Gonzaga, o estranho Dinho continua a repetir, interminavelmente: "Pode não, pode não. Só eu..."
Muitos estão pensando em ir embora, antes que as catástrofes anunciadas pelos profetas
realmente aconteçam, e o mar destrua a Cidade para sempre. O Planalto Central do País é o único local seguro, dizem, e tratam logo de arrumar as
malas.
Olhando o mar e os prédios, é possível pensar que aqui poderíamos ter construído uma
bela cidade, agradável de se viver e com muito calor.
Mas não devemos esquecer que uma cidade nunca se completa, nunca está terminada. Está
viva, sempre, resistindo a todas as investidas do homem.
Início da demolição do Trapiche Brazil, em
18/2/1899
Os antigos trapiches deram lugar ao cais
III - A herança e o futuro
Basta abrir um pouco os olhos para reconhecer este povo
da raça santista, feito de várias misturas, sentimentos e mutações. Para saber o que carregamos hoje, é preciso lembrar inicialmente que herdamos
uma tradição de lutas dos nossos antepassados históricos, e que chegou à sua plenitude nos anos 50 e 60. Mas que foi parcialmente anestesiada pela
perda da autonomia, diminuindo particularmente o nosso ânimo.
E a insensibilidade presente nas construções mais recentes de Santos atesta bem os
efeitos da perda da liberdade. Como sempre, o aspecto meramente físico de uma cidade espelha bem a alma de seus habitantes. No abandono das praias,
reside a própria despreocupação com o futuro, com o nosso bem-estar. E, como autênticas prisões coletivas, lá estão os prédios, multiplicando-se,
amontoando-se, mostrando como as emoções podem ser congeladas, como a resistência de um povo pode ser quebrada.
As velhas mansões, cheias de árvores e linhas harmônicas - como a casa rosada da
Conselheiro Nébias com Bias Bueno, demolida para ceder espaço a diversos blocos de apartamentos - já não existem. As lembranças do tempo em que
Santos era uma cidade mais alegre aos poucos estão sendo apagadas.
Crescemos verticalmente, esquecendo de observar o que ocorria ao nosso redor, e nossas
crianças já não podem brincar livremente, confinadas que estão às paredes dos apartamentos. O que será que vão pensar sobre Santos, no futuro? E as
favelas não nos deixam esquecer que criamos toda uma geração de desesperados, fruto principal do nosso exagerado egoísmo.
É preciso esclarecer, porém: nem tudo está perdido.
Quem já saiu de Santos e depois retornou, sabe bem e atesta que aqui ainda é possível
ao menos sentir os pés pisando em chão firme. Pois o pesadelo urbano que assola as grandes cidades está apenas no início para nós, os santistas.
Apesar de parecer muitas vezes uma cidade triste (toda cidade tem várias faces, é bom
que se saiba), Santos ainda representa um lugar ensolarado, que oferece boas condições para aqueles que são jovens. Mas os jovens desconfiam,
natural e merecidamente, do que o futuro lhes reserva.
Santos é um exemplo típico e marcante das transformações que sofreu a classe média
brasileira. Entre os anos 60 e 70, com a industrialização definitiva do País, as ofertas de emprego eram tantas e tão compensadoras que o nível de
consumo atingia altos índices. Exatamente nesta época, muitas famílias conseguiram um patrimônio que permitiu a compra de um segundo carro, de uma
casa de veraneio. Os anos que se seguiram a esta euforia (o mal fadado "milagre brasileiro") mostraram o impasse: como viver em meio à falta
de empregos, aos ganhos reduzidos, à inflação?
O santista deixou de trabalhar no ramo do café e em profissões liberais, preferindo as
indústrias de Cubatão. Ou então, subir a serra para vencer no Planalto.
Mas, sem dúvida, ainda conserva um pouco do "homem cordial" a que se referia
Sérgio Buarque de Hollanda, embora esta imagem tenha sofrido muitos arranhões nos últimos anos. Sob a aparente tranqüilidade do santista, esconde-se
uma certa passividade e a certeza de que todos os problemas se resolvem por si mesmos.
Conservamos muito deste comportamento, não é?
Olhamos os carrinheiros e todos os que pedem esmolas, catando restos pelas ruas, e
nada fazemos. Emprestamos nossa força na estiva, mas a recompensa não vale o suor. Assistimos à degradação do meio-ambiente e não protestamos.
Aceitamos, ainda, passivamente, que os destinos da Cidade sejam decididos por quem não foi eleito pelo povo. E, como trabalhadores, continuamos
conformados com a exploração a que somos submetidos diariamente, por um sistema que exige todo o esforço possível, mas que não permite que um maior
número de pessoas possa ter acesso aos bens necessários.
Mas, principalmente, como autênticos sonhadores, esperamos pelo dia em que todos
reconheçam que uma cidade é muito mais do que telhados, janelas, luzes, asfalto e pessoas circulando pelas ruas. A cidade é a nossa própria vida, e
respira como nós.
"A cidade futura está no tempo
A cidade futura está nos mapas.
Não há caminho secreto
Senha, contra-senha que desvendam seu reino
Noite e manhã nela despontam sem mistério".
"... uma cidade é matéria
para
para milhões de operários".
"Não levantes em ti uma cidade.
Ninguém é uma cidade.
A planície feliz que em sonho edificamos
não é outra senão esta, difícil de habituar
mas necessário".
"Um ano ou um mês,
As cidades caminham sem pressa.
Entre palavras e atos
entre a fome dos casebres e vultos dos edifícios
as cidades caminham.
(As experiências malogradas apenas denunciam o erro,
mas novos caminhos se abrem, na mata, no asfalto,
na pedra).
O mundo realmente amanhece.
Sobre ele pousa - irreparável quase - mão do homem".
(Trechos de Passagem para o amanhã, poema...)
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Matadouro Municipal de Santos, na época de sua inauguração
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