A vida nas cidades, uma forma de dominação
"...a habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do
espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza. Para muitas nações conquistadoras, a construção das cidades foi o mais decisivo
instrumento de dominação que conheceram" (Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil)
Texto de Lane Valiengo
Coisas que o povo fala só por falar: existem tantas
construções em Santos, que um dia a Cidade afundará no mar, transformando-se em uma lenda semelhante à da mitológica Atlântica. Uma lenda que, no
futuro, será contada como um exemplo da insensatez do homem.
Mas, enquanto o fim do mundo não chega - pela conjunção dos planetas ou pela guerra
atômica -, vamos nos preocupar com fatos que estão mais próximos e exigem uma reflexão imediata. Como perguntar qual o significado da vida nas
cidades, ou, sendo um pouco mais objetivo, o que significa viver aqui, nesta cidade praiana às vezes ensolarada, um pouco poluída e geralmente
desordenada.
Poderíamos observar, apenas como início de conversa, que Santos é, antes de mais nada,
um reflexo fiel da velocidade com que a humanidade constrói e destrói os seus próprios valores. E, indo um passo adiante, que o aspecto físico de
Santos está diretamente relacionado à alma do santista, ao seu comportamento.
Como? Que absurdos são estes? Como alguém pode, em sã consciência, pensar que as
estruturas de concreto são a imagem dos atos e das atitudes do homem?
Para os desavisados, vamos logo explicando: a natureza do homem levou-o a estar sempre
disputando alguma coisa, querendo sempre vencer, triunfar de alguma maneira. Subjugar outras pessoas, historicamente, é a maneira mais rápida e
segura de se ter o poder nas mãos (embora nem de longe seja a mais honesta). E o poder, neste planeta, sempre foi mais importante do que a própria
vida.
As cidades surgiram exatamente por esta necessidade: servir como um instrumento de
dominação. O biólogo francês Henry Laborit (aquele mesmo que aparece no filme Meu Tio da América, de Resnais, explicando o funcionamento da
mente) diz que, efetivamente, nosso cérebro está sem evoluir há 15 milhões de anos. "Ou a gente domina ou é dominado. Existem duas reações possíveis
diante dessa situação: a luta ou a fuga", explica ele.
E se ainda existem dúvidas a respeito do caminho que escolhemos, o jornalista e
ensaísta Luiz Carlos Lisboa pode colaborar: "O homem das grandes cidades é antes de tudo um conformista e um submisso".
Pois então: o pecado da alienação da postura passiva diante de tudo o que nos rodeia -
mesmo quando dizem respeito diretamente à nossa vida particular -, gerou as cidades que conhecemos. Enquanto brincávamos de nos aprisionar nos
castelos de concreto, o sonho - ou a utopia - grego do "espaço amigo" foi substituído por uma urbanização feroz e descontrolada, que hoje
atinge níveis que excedem em muito ao que o homem pode suportar.
O mesmo Lisboa volta a depor: "Se a cidade grande é quase sempre um monumento à
improvisação, ao mau gosto, isso se deve ao hábito humano de viver vegetativamente, sem aquele mínimo de auto-conhecimento que redime e traz a
ordem".
Então, diante de tantas e incisivas sentenças, estaremos irremediavelmente condenados?
Vamos todos arrumar nossas coisas, fechar a Cidade, apagar o farol da barra e partir para um outro lugar, para uma terra prometida?
"As vítimas da explosão urbana só conseguem sobreviver porque sonham", adverte uma vez
mais Lisboa.
O homem sempre encontrou tempo e disposição para ser otimista, por mais cataclismas
que se abatam sobre ele. Permitam-nos, pois, também sonhar um pouco. E pensar que, com um pouco de esforço, no futuro esta cidade será bem melhor
para se viver. Que forjaremos o nosso destino com um mínimo de bom senso, sem que seja preciso oprimir quem quer que seja.
E, assim como a Cidade, nós também nos sentiremos melhores.
Afinal, ainda não é proibido sonhar. Aquele que não sabe se poderá ser feliz amanhã,
diz o antropólogo Ralph Linton, começa a ser infeliz hoje.
O ideal grego do "espaço amigo" foi substituído ela urbanização desenfreada,
que confina e oprime o homem
Foto: Rafael Dias Herrera
O que podemos fazer com o nosso espaço?
O espaço é político.
Uma tese cristalina, mas um tanto indigesta, não?
As cidades concentram a propriedade dos meios de produção nas mãos de alguns poucos.
E, ao mesmo tempo, segregam uma população enorme que não tem poder algum.
Olhemos os rostos das pessoas paradas em algum ponto de ônibus, numa manhã qualquer em
que o sol ainda não acabou de nascer. E perceberemos que estes rostos sofridos estão partindo para mais um dia de trabalho que não lhes dará direito
nem mesmo de adquirir o que produzem. A sociedade parece que não sabe mais o que fazer com esta ampla parcela da população. E nem ao menos sente
culpa de coisa alguma.
Além de serem criadas por uma necessidade de dominação, as cidades reproduzem o
confronto entre fortes e fracos, que será elevado aos seu grau máximo no nosso dia-a-dia, fazendo com que a felicidade (ou mesmo momentos felizes)
pareça cada vez mais uma coisa fantástica, impossível. Os interesses e conflitos econômicos, claro, estão na base de tudo isso, e é exatamente neste
sentido que o espaço, uma vez ocupado pelos seres humanos, será sempre político.
Uma outra constatação: é exatamente dentro das cidades que a luta pelo poder se torna
mais intensa. Vejamos o que escreveu Régis Morais, em "O que é Violência Urbana": "Os espaços das metrópoles estão tomados por uma noção
comercial da vida. É ali que se fabricam febrilmente necessidades, é ali que os moradores se têm que render ao feitiço dos objetos, de possuir
objetos". E o urbanista Robert Auzelle completa, certeiro: "O consumo faz as cidades, e o excesso de consumo as desfaz".
O que é preciso para pelo menos tentar mudar esta situação? Vamos recorrer ao pensador
americano Theodore Rozack: "...o que os pobres e desafortunados da terra precisam para melhorar sua vida material é o nada tecnológico, mas de uma
solução política. Eles precisam ter o poder de controle sobre suas próprias comunidades. Somente este poder permitirá determinar as prioridades para
um desenvolvimento real que seja mais que a implantação de economias monoprodutivas, linhas de montagem estrangeiras ou o conjunto cintilante das
fachadas da cadeia Hilton".
A conclusão, por ora: não existem respostas técnicas para questões éticas.
Qualidade de Vida (Vida?)
Não há tanto o que discutir, estamos diante de um fato consumado e comprovado: a
urbanização acelerada implicou em uma série de dificuldades, desde as financeiras, passando pela especulação imobiliária e pela poluição, e chegando
à insegurança e ao congelamento das relações pessoais, marcadas cada vez mais por um crescente isolamento e pela insensibilidade.
Vamos reduzir o plano de vôo e aterrissar por aqui mesmo. E em Santos, na Baixada,
onde temos as praias como um grande canal de relaxamento, o grande depósito das nossas neuroses?
Olhe esta gente que se espreguiça na areia, que mergulha no oceano, que corre
livremente. O que se pode dizer contra ela?
Bem, é claro que existe a Serra pela frente, isolando-nos um pouco: não passamos
exatamente o mesmo que os moradores de São Paulo, vivemos de forma mais simples e menos conturbada. Mas, nada indica que tudo continuará desta
forma.
Primeiro, a ocupação dos espaços cada vez mais configura-se como uma forma de
opressão.
Segundo, existe uma grande parcela da população que vive em condições degradantes.
Terceiro, o crescimento da população não é acompanhado pelo total de recursos
disponíveis. Em conseqüência, os serviços públicos não conseguem atender todas as necessidades.
Quarto, cada vez mais Santos caracteriza-se como uma cidade esteticamente feia.
Quinto, o clima vem sofrendo mutações constantes e o ar já não circula tão livremente
como em outros tempos.
Por último, mas não finalmente: Santos hoje é uma cidade bem mais agitada, mais
nervosa, as pessoas andam pelas ruas com mais medo, com mais pressa.
Em cimento e concreto, estamos perpetuando a imagem das nossas angústias. E a
aparência feia é um retrato fiel do mundo interior do homem. Acostumados a viver entre nuvens de fumaça e frias armações, ficamos como que
anestesiados face às nossas reais necessidades. E acabamos nos entregando ao consumismo fácil, como se não houvesse nenhuma saída honesta. As
construções acabam refletindo todos os nossos conflitos e a nossa teimosia.
E a nossa vida fica parecendo um inferno diário.
Como escapar deste labirinto?
As respostas devem sair da própria comunidade, da manifestação das suas necessidades,
coletiva e individualmente. Mas existem, também, dois caminhos que podem ser aproveitados.
Primeiro, um planejamento honesto e que vá ao encontro destas necessidades. A
respeito, a arquiteta Regina Maria Prosperi Meyer escreveu: "Quando o planejamento vai até onde o sistema econômico permite, é designado como sendo
'realista'. O projeto urbano cujo programa nasce das reais necessidades do usuário e da percepção dos sintomas de mal-estar, é no contexto da
'conveniência perfeita e com os desejos dos promotores', designado como utópico" (A Segregação Espacial).
A outra estrada nos leva direto à nossa própria percepção. Se vivermos de forma mais
simples, teremos uma cidade também mais simples e mais aprazível. Se for possível aceitar a idéia de que o poder existente nas cidades deve ser
repartido entre todos os seus habitantes, daremos um grande passo para que, amanhã, nossos filhos possam livrar-se da culpa de viver em uma cidade
triste.
Voltamos ao princípio: o espaço é mesmo político.
Resta saber como utilizar este espaço, tanto física como politicamente, para que o
futuro seja um pouco mais agradável. E não deixar que os insensíveis decidam o que deve ser feito com o nosso espaço.
E com as nossas vidas. |