Nesta série de reportagens que iniciamos hoje,
pretendemos questionar a qualidade de vida e a expansão urbana de Santos, alertando a todos - população e autoridades, indiscriminadamente - dos
sérios riscos que um crescimento desordenado poderá provocar no futuro. A série terminará com o depoimento, em mesa-redonda, de quatro pessoas de
alguma forma ligadas a questões ambientais.
A muralha de edifícios, antes levantada apenas na orla da praia, caminha para dentro
da cidade, num processo desordenado e num avanço inevitável, se não for controlado
Foto: Rafael Dias Herrera
Prédios avançam sem controle
Santos não tem mais opções de crescimento. Seu espaço urbano está totalmente
ocupado e como solução foi adotado o crescimento vertical, com a construção desordenada de prédios. O atual Código de Edificações, ainda de 1968 (e
que por sua vez substituiu o de 1945) permite que qualquer região da Cidade seja invadida pelos edifícios, com apenas uma exceção: a Zona Noroeste.
Esse crescimento incontrolado provocará, fatalmente, uma queda na qualidade de vida do santista, já nos próximos anos. Chegou o momento de
questionar tal processo de desenvolvimento urbano, antes que qualquer solução seja inviável.
Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares
O processo de verticalização da Cidade é irreversível. A
muralha de edifícios, que hoje se concentra na parte litorânea, avançará cidade adentro, atingirá bairros onde ainda sobrevivem as residências
baixas e, finalmente, chegará ao Centro, não respeitando sequer as antigas edificações, algumas delas já tombadas pelo Patrimônio Histórico. Isso,
entretanto, não significa que a qualidade de vida em Santos seja má, ou que, com o decorrer do tempo, essa mesma qualidade se deteriore de tal forma
que a Cidade fique inviável.
Apesar de enfrentar alguns problemas ambientais - a poluição do mar e a proximidade
com Cubatão - Santos apresenta, de maneira geral, uma boa qualidade de vida. Não existem grandes distâncias, não existem ladeiras, e a malha viária
é considerada fácil por boa parte dos técnicos. Mas o desenvolvimento dos edifícios será fatal, caso as autoridades se esqueçam de que o
planejamento é a única saída. É preciso delimitar espaços e criar áreas específicas para os grandes edifícios, obedecendo sempre a tendência de cada
região.
Assim, o Gonzaga, ponto mais conhecido e mais valorizado, deverá se transformar num
centro residencial de serviços, transformação que já pode ser notada com a implantação do comércio em grande escala. O mesmo acontecerá com o
Boqueirão e, em particular, com a Avenida Conselheiro Nébias, que deverá transformar-se numa via comercial, desde o Centro até a praia, aumentando
consideravelmente o número de estabelecimentos comerciais da região.
Pouco adiantará questionar a validade desse desenvolvimento e seus problemas, caso as
administrações que se sucedem na Prefeitura não decidam estudar o assunto com cuidado. E o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI),
desenvolvido pelos técnicos da Prodesan em 1976, mostra que o crescimento dos prédios chega a surpreender: as projeções previstas para 1990 já foram
atingidas. Isso pova que a aplicação dos projetos existentes na Prodesan apresenta 10 anos de atraso, conseqüência típica da timidez das
administrações municipais.
Na realidade, existe um pouco caso para com esse problema, dentro da própria
Secretaria de Obras e Serviços Púbicos do Município. Surpreendentemente, a Seops não mantém um cadastro físico da Cidade, mas apenas o fiscal;
portanto, não sabe o número exato de prédios e de apartamentos existentes na orla da praia, ou em qualquer outro ponto. Os arquivos dessa secretaria
simplesmente não contêm informações suficientes para que se possa estabelecer a média de crescimento dos edifícios, ficando assim, muito difícil o
seu controle.
Em conseqüência dessa falta de organização e planejamento na Seops, os primeiros
problemas já começam a aparecer. Não existem, por exemplo, áreas definidas para a criação de estabelecimentos de ensino, permitindo-se que grandes
edifícios e até mesmo postos de gasolina sejam construídos ao lado de escolas, como se vê na Avenida Bernardino de Campos. Nesse local, o posto de
gasolina já existia, portanto a Prefeitura não deveria permitir que a escola fosse instalada. Pelo Código de Edificação do Município, a existência
do estabelecimento escolar seria proibida, mas seu funcionamento acaba sendo permitido "a título precário", como admitem os técnicos da Seops.
A aprovação dessas escolas - ou outros tipos de estabelecimentos - é sempre feita "a
título precário", pois elas não obedecem às especificações técnicas mínimas, como área de recreação, tamanho das salas de aula, número adequado de
banheiros; enfim, toda uma infra-estrutura necessária para oferecer conforto às crianças. Essa falha, inclusive, é admitida pelos técnicos da Seops,
mas não devidamente explicada. "Trata-se do famoso jeitinho brasileiro", justificou um deles.
Sem planejamento ou previsão, os problemas aparecem. O de trânsito talvez seja o mais
sério, à medida em que as escolas proliferam por todos os bairros e regiões, sem obedecer a uma estratégia devidamente planejada. Assim, formam-se
congestionamentos em vias consideradas importantes (ruas Mato Grosso e Floriano Peixoto, avenidas Pinheiro Machado, Presidente Wilson e Bartolomeu
de Gusmão etc.), e os técnicos do Demutran não sabem como resolvê-los. "Talvez seja preciso um pouco mais de civilidade dos próprios motoristas,
pois não encontramos ainda qualquer saída", afirmou Marco Aurélio Silva Rasquin.
Portanto, a falta de planejamento urbano fatalmente levará a Cidade a entrar numa fase
negra. É claro que isso ainda levará algum tempo - inferior às previsões municipais, mas irreversível. As soluções propostas no PDDI, desenvolvido
pela Prodesan em 1976, simplesmente foram esquecidas, e o Código de Edificações do Município ainda permanece o mesmo desde 1968. Exatamente aquele
que abriu espaço para a construção de prédios com mais de 10 andares em praticamente todos os bairros de Santos.
Resta saber até que ponto a qualidade de vida será atingida pelo desenvolvimento; até
que ponto as autoridades constituídas estão preocupadas com o problema, e até que ponto estão sendo tomadas providências; se é que elas estão sendo
tomadas.
A orla, mais humana, em foto dos anos 1930
Tudo começou em 1910
A definição de Santos como cidade de prestação de serviços data do início do século
(N.E.: século XX), por volta de 1910. Segundo a geógrafa Odette Carvalho de Lima Seabra,
em seu trabalho "A Muralha que Cerca o Mar", nessa época houve um rápido processo de parcelamento dos terrenos litorâneos do Município,
ocorrendo pelo menos uma grande mudança no padrão geral de uso do solo, motivada e explicada pelo desenvolvimento da função balneária: a
substituição das chácaras de veraneio, mantidas pela alta burguesia do café, pelos palacetes.
O desenvolvimento das atividades portuárias - que provocou o crescimento e a ampliação
das ligações ferroviárias com o resto do Estado - gerou a ocupação dessas áreas pelas classes mais abastadas, definindo-se assim a chamada "segunda
residência", graças às condições econômicas favoráveis. Não apenas a alta burguesia paulista invadiu o litoral, mas também a população da própria
Cidade, que mantinha sua primeira residência no Centro (Paquetá e Vila Nova), e a segunda à beira-mar.
Mais tarde, as obras de saneamento básico, desenvolvidas pelo poder público, acabaram
tornando possível a ocupação das áreas insalubres que se estendiam do sopé dos morros até a praia, e foram criadas as primeiras vias de acesso ao
litoral. Apareceram então os grandes loteamentos do Gonzaga, Boqueirão e José Menino, onde se instalavam as antigas chácaras de veraneio, que
começaram a entrar em decadência.
Este talvez tenha sido o início do "boom" imobiliário, que acabou por descaracterizar
totalmente a paisagem. Das ruas paralelas à avenida da praia, não é mais possível ver o mar, espetáculo reservado àqueles que moram na orla.
Por volta de 1940/45, começaram a crescer os prédios de apartamentos. Já na década de
30, quase no final, foram levantados os dois primeiros: o Palacete São Paulo (na esquina da Washington Luís) e o Palacete Olímpia (no José Menino).
A partir daí, o crescimento foi incontrolável. Surgiu o Gironda, um dos primeiros e já demolido (construíram outro em seu lugar), e o Marajoara, com
17 andares que, somados aos quatro da cobertura, chega a 21 (ainda é o edifício mais alto de Santos).
As justificativas para o aparecimento de tantos edifícios são as mais variadas, mas é
certo que a crise de espaço e a alta valorização do imóvel foram causas fundamentais. Não existem mais áreas para serem ocupadas, o que força a
construção de edifícios cidade adentro. E a caracterização de Santos como cidade prestadora de serviços fica cada dia mais definida: 55 por cento
dos apartamentos existentes na orla permanecem pelo menos a metade do ano desocupados - pertencem a pessoas de fora.
No final desse processo, é o santista que acaba pagando caro. Noventa e sete por cento
da área urbana de Santos está ocupada, o que exige dos poderes públicos a implantação de sistemas básicos de atendimento para uma população
flutuante maior do que a fixa. Assim, se hoje existem 95 por cento de saneamento básico; 100 por cento de abastecimento de água; 100 por cento de
atendimento de luz; e considerável crescimento na instalação de telefones, isso se deve à população fixa, calculada aproximadamente em 430 mil
pessoas, segundo o último censo.
Esses 430 mil moradores é que arcam com o ônus da implantação de uma infra-estrutura
capaz de atender uma população de 900 mil pessoas. E o santista se vê obrigado a diminuir sua qualidade de vida para sustentar esse sistema. "É uma
situação irreversível", afirma o arquiteto Célio Calestini, que durante 10 anos estudou os problemas da Cidade, trabalhando na Prodesan.
Uma situação que tende a piorar. À medida em que aumenta a população fixa e a
flutuante, e os espaços urbanos vão sendo ocupados, também vão aumentando os custos de manutenção da Cidade, isto é, o atendimento de água, esgoto,
luz etc. Santos é uma cidade cara.
Apesar de apresentar um baixo índice de crescimento - 1,7 por cento ao ano -, Santos
em breve enfrentará sérios problemas de infra-estrutura (segundo alguns técnicos, ainda antes do ano 2000), caso não haja um planejamento adequado
ao seu tipo de desenvolvimento urbano. Soluções existem. Faltam as providências.
Conjunto Dale Coutinho, como os demais, sem verde e árido
Foto: Carlos Marques
Nos conjuntos, 45 mil pessoas e muita aridez
Dez por cento da população de Santos constituídos de pessoas com baixos recursos
financeiros, residem ou vão residir em conjuntos habitacionais. Sem exceção, esse contingente de quase 45 mil pessoas enfrenta problemas de
construção - vazamentos, rachaduras etc. - e não recebe, pelo que paga pelos apartamentos ou casas, nenhum benefício em termos de melhora na
qualidade de vida, isso porque, à exceção de um único conjunto, nenhum outro oferece um mínimo de área verde ou de locais para recreação.
Ao contrário, os conjuntos estão localizados em regiões áridas, onde a terra foi
invadida pelo concreto e onde praticamente não existem árvores ou jardins. Assim, a população de poucos recursos, que já enfrenta problemas
econômicos e sociais, também carece de infra-estrutura que lhe permita o lazer, pelo menos próximo de onde mora.
O caso mais grave talvez seja o do maior conjunto habitacional de Santos, o Castelo
Branco, com 3.288 apartamentos e onde moram cerca de 17 mil pessoas, uma verdadeira cidade. Nesse conjunto não existe nenhuma área verde, nem
jardins ou locais para recreação. É verdade que, ao ser inaugurado, o conjunto ganhou um playground, todo de concreto armado e com o chão
cimentado, num ambiente agressivo e que foi simplesmente destruído pelas crianças e jovens do local.
Assim está também o Dale Coutinho, na Zona Noroeste. Este conjunto, com 1.200
apartamentos e população de mais de quatro mil pessoas, e o Jardim Castelo, com 636 casas e mais de três mil moradores. São conjuntos sem áreas de
lazer, sem praças municipais, sem arborização, e situados em região árida.
Outros dois conjuntos de prédios, em construção, podem seguir o mesmo caminho dos que
já estão construídos, carecendo de áreas verdes e de locais de lazer para seus habitantes, que não serão poucos: o dos Estivadores, na Zona
Noroeste, terá quase mil apartamentos, com mais de cinco mil moradores; e o Martins Fontes, na Aparecida, quase 1.200 apartamentos e população que
chegará a seis mil pessoas.
Que fazer? - Se o BNH, na sua política de dar casa a quem não tem, falha no que
se refere a áreas de lazer - embora falhe também, e muito, no que se refere à qualidade das construções -, que fazer nos conjuntos habitacionais que
carecem de locais de lazer? A princípio, há três caminhos a seguir:
1 - Os moradores plantariam suas próprias árvores e cuidariam delas, como fazem alguns
no conjunto Castelo Branco. 2- O Governo Federal, por meio do BNH ou do Inocoop, implantaria as áreas, que seriam mantidas pelos moradores
(dando-lhes uma despesa extra nos custos condominiais, o que sairia caro para tal população). E 3 - A Administração Municipal se encarregaria de
construir praças dentro ou junto aos conjuntos, custeando também a manutenção, como faz em bairros da praia.
Mas, de modo geral, praticamente toda a Cidade está na mesma situação dos conjuntos
habitacionais: as raras praças têm pouco verde, estão sem bancos e não são funcionais, para dar à população um local de lazer.
Palacete São Paulo, no final da Avenida Washington Luiz, cerca de 1998
Foto: Prefeitura Municipal de Santos
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