[33] Capela de Santo António de São Vicente
Sempre que participei da procissão do padroeiro da cidade vizinha de Santos, ouvia das pessoas daqueles
longevos anos 1970 histórias sobre as imagens ali existentes, alguma ainda conservada e outras já desaparecidas [01].
Entre as remanescentes está a de Santo António de Pádua que, segundo o povo, teria vindo de uma igreja demolida nas proximidades da matriz.
Ficava, segundo os mapas antigos, onde hoje é o Parque Temático Vila de São Vicente. Pelas poucas referências que existem, decerto possuía
imagens barrocas, possivelmente três, contando com o orago no altar mor, ladeado por outras duas devoções segundo o costume da arte em voga, e que foram levadas para a Matriz, tendo hoje seu paradeiro e identidade desconhecidos, ficando apenas a
imagem do orago feita em barro, de bom porte, que é a cópia de uma que existe em Portugal feita em pedra - segundo as pesquisas de Eduardo Etzel que mostrou as fotos comprovando isso [02], mas suas mãos foram restauradas de forma errada, pois ele tinha os dedos de sua mão direita levemente encurvados, e a pessoa que reformou a imagem teria alterado a posição
dos mesmos.
Diziam os antigos que a sua imagem, como na maioria, tinha o Menino Jesus em pé e que fora levada para o Museu do Ipiranga [03], pois no ano de 1977 o nosso Museu de Arte Sacra ainda não havia sido organizado; já outras pessoas afirmavam que o menino teria ido mesmo para o nosso museu santista
[04].
Sempre se colocou na cabeça dos Santos e Santas um halo que no tempo colonial deu origem a um semissolar [05], assim teve Santo António um resplendor sobre sua cabeça. o qual é mesmo que se usava na imagem processional do padroeiro São Vicente Mártir no dia 22 de janeiro, sendo isso comprovado por antigas fotos de jornais que mostram a
quatro vezes secular imagem com o mesmo em sua cabeça. Já a imagem do padroeiro é de gesso e do início do século XX, quando não se usavam mais esses resplendores barrocos e sim um halo ou auréola.
Sabemos que o Santo português sempre foi e é muito venerado [06] pelos cristãos; assim, foi a
imagem fundida pelo mesmo cristão João Gonçalo Fernandez em 1560 que fez a da Virgem da Conceição e a da padroeira de Itanhaém, havendo inclusive semelhança no rosto, olhos e tamanho entre todas.
Capela de Santo António de São Vicente, em desenho "baseado no registro feito por Jules Martins em 1878 - desenho próximo da realidade" (desenhado em 22/2/2015)
Imagem cedida a Novo Milênio pelo autor, o professor Francisco Carballa
Erguida posteriormente à matriz do início da povoação - que segundo documentos já existiria em 1527 -, essa capela ou ermida não teria grande tamanho, podendo até ser
uma capela de fazenda, como estava em voga, por isso sem grandes proporções construtivas: seria uma capela semelhante à Capela da Graça em proporção (não em formato), sua imagem que sem mantém na Matriz vicentina é própria
do estilo do século XVI [07], sendo possível que seja essa a época mais próxima de sua construção.
Se foi curada por franciscanos, como seria próprio em igrejas com nomes dos santos dessa ordem, não o sabemos, embora isso não fosse uma regra no Brasil
[08], onde igrejas dedicadas a Santo António eram comuns como paróquias seculares.
Podemos ter ideia de ser uma igreja posterior a 1542 quando o maremoto [09] fez a antiga vila submergir cerca de 5 metros ou mais. Assim, por não haver nenhuma referência sua anterior a isso, sua edificação é uma incógnita quanto à data exata ou
materiais usados na sua construção.
No mapa que está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro [10] aparece o desenho de uma única igreja de grande porte, como sendo a Matriz, e à sua frente uma capela voltada para o mar que (pela posição quase de frente à matriz), tendo do outro lado de um aberto
semelhante a uma praça e que, pelo tamanho, pode se tratar da capela de Santo António.
Percebemos em um mapa - "Costa Sudeste do Brasil" do século XVIII - a presença da matriz e possivelmente o prédio mais a frente tratando-se da capela.
Já no mapa "Topografia da Vila de Vicente em 1852" se identifica o templo como "local da antiga igreja de Santo António" em um morrinho [11], visto que o local foi todo aterrado para evitar as enchentes ou as marés, devido ao seu projeto, semelhante ao que ocorreu em Paraty, sendo que ao escavar as ruas se
depara com a pavimentação antiga da mesma à altura das marés, o que nos leva a supor que o "morrinho" teria sido desbastado e sua terra usada no aterramento daquela localidade. Podemos notar ainda hoje uma elevação do terreno diante da matriz,
inclusive com a proximidade de morros maiores como o dos Barbosas.
Não existem relatos sobre a remoção dos restos mortais que existiriam dentro da mesma capela como era o costume até a proibição no Rio de Janeiro de 1851, que se estenderia por todo o Brasil. Se houver tais registros, serão
encontrados mais tarde por algum pesquisador vicentino ou interessado no assunto, pois está relacionado o cemitério público vicentino do final do século XIX [12], onde era fácil ver seu portal com a inscrição e data feita por letras de ferro em forma de arco. Sabemos que os cemitérios públicos eram rejeitados pela população brasileira, tanto pelo status de ser
inumado dentro da igreja quanto pelo desejo de estar dentro dela mesmo, depois de morto.
Para os mais letrados e racionais, essa forma de sepultamento era aceita como modernidade e medida sanitária do lugar, embora existam relatos de vários cemitérios de
pequeno tamanho por toda Baixada Santista. Durante a construção do Parque Temático da Vila Vicentina, na Praça João Pessoa com a Rua Marquês de São Vicente, foram
achados restos mortais humanos, o que identifica um cemitério ou o local da igreja [13], não se verificando se as
disposições das sepulturas demarcavam o piso da igreja ou o seu redor - nada foi registrado sobre isso e nem estudado.
Na planta hidrográfica do Barão de Teffé em 1876, a capela não aparece assinalada ou identificada na região da matriz (assinalada pelo seu formato e terreno em forma de retângulo), e podemos perceber a casa de câmara em
sua esquina hoje ocupada pelo Mercado Municipal e o vazio do campo que mais tarde, no período republicano, deu origem a Praça João Pessoa - o que nos faz supor que a capela já havia sido demolida durante o Segundo Reinado, ou estando em ruínas
deixou de ser registrada, sendo este um período em que as obras do tempo colonial estavam sendo destruídas, por serem consideradas um atraso à sociedade e ao progresso.
Planta de São Vicente, por Jules Martin, de 1878 tendo à esquerda a igreja de Santo Antônio
Imagem: arquivos Condephaat, in São Vicente, a Primeira Vila do Brasil
Esteve pela Baixada Santista o senhor Jules Martin [14], que fez os mapas das cidades de Santos e São Vicente, existindo erros na localização de algumas ruas. Suas representações dos prédios antigos são fiéis ao que realmente eram, mas com poucos detalhes referentes à
construção, talvez pelo tamanho pequeno dos desenhos. Assim podemos ter uma ideia de como eram algumas edificações hoje desaparecidas, como a igreja de Santo António. Agora fica a questão: em que ano ele trabalhou na produção de tal mapa, e por
quanto tempo e até quando depois de passar pela tipografia esse mapa foi publicado para ser vendido aos interessados, isso a partir de 30 de abril do ano 1878 (data que consta no próprio mapa), mesmo sendo em uma propaganda de jornal, é uma
referencia confiável de que o mapa fora produzido entre 1876 a 1877 ou quem sabe até antes.
Assim, contradiz o mapa Topografia da Vila de Vicente em 1852, que apenas faz referência como "local da antiga igreja de Santo António" o que pode ser
uma referência de que ali estava tal igreja, pois podemos perceber o seu prédio com o formato retangular, mas com a localização em cima de um morrinho na sua posição contrária ao prédio da Matriz. Isso pode ter ocorrido se quem trabalhou na
confecção do mesmo mapa apenas usou referências de outras pessoas sem estar no local ou não percebeu a existência do templo pelo mesmo parecer com uma construção de moradia devido à sua porta ladeada por duas janelas.
Observando bem o desenho de Jules Martin, temos então uma ideia de como era esse templo, que foi demolido talvez devido a estar em estado ruinoso.
Na igreja de Santo António percebemos que seria mesmo de pequenas proporções, com a nave e o presbitério formando um retângulo, onde se vê a divisão entre uma parte e outra do prédio de forma bem clara; existia no fundo um pequeno quintal murado e
se percebe ainda o chão de pedras entre o lado direito e a frente da construção, na frente uma porta e duas janelas do tipo barbacã (muito comuns no Brasil); suas telhas eram dispostas em duas águas e sem calha, havendo apenas na frente um beiral,
possivelmente de madeira, e sua fachada terminaria em um triangulo com divisões simples sem o óculo, recordando mais uma igreja de taipa jesuítica do que uma igreja popular.
Fica ainda a questão, se não fora uma residência aproveitada para se tornar igreja já no século XVI. Outro detalhe que chama a atenção é a presença da sineira com o
local para um único sino e parede larga - possivelmente cinco palmos, como se usava na época. Devido às telhas que a recobrem, conclui-se que dentro da estrutura não caberia pessoa alguma, sendo que essa solução simples imita as que existem por
toda Europa nesse mesmo período: quando as igrejas medievais foram reestruturadas ou recuperadas, ganharam sineiras se não tivessem campanário, com as de São João de Leiro, Santo Estevão de Tremoedo, além de Santa Maria Maior e São Roque de
Pontevedra [15], ambas igrejas medievais que ainda existem na capital Pontevedra na região da Galícia, na Espanha.
É de se imaginar que, sendo comum nas construções da época, deve ter havido um altar dividindo o presbitério em dois, com passagens em cada lado, ladeando o altar para dar acesso ao
interior do mesmo, onde haveria uma sacristia ou o acesso a ela. É possível que a sineira fosse justamente o alto da parede de um cômodo construído na lateral esquerda, pois ali haveria a sacristia, como é comum encontrar em várias igrejas dessa
época, inclusive o Santuário do Monte Serrat de Santos.
É o pequeno desenho do senhor Jules Martin a única representação conhecida da igreja de Santo António de São Vicente que chegou aos nossos dias.
No Atlas de Saneamento de 1895 podemos ver novamente o rocio em frente à matriz e nada que identifique a antiga capela de Santo António a não ser algo
assinalado como ocupado no local sem referências de ser religioso ou ruína, sendo possível que já suas imagens estivessem guardadas na Matriz e o santo exposto.
Imagem de Santo Antonio antes do incêndio. Note-se a placa
Foto cedida a Novo Milênio pelo professor e pesquisador
Francisco Carballa
Notas:
[01] - Falava o padre Paulo Hourneaux da imagem de Santa Luzia que
teve suas mãos copiadas por uma artista que a achou de porte majestoso e delicado, sendo essa imagem furtada lá pelos idos dos anos 1940 ou 50; igualmente, a imagem de São Brás o Bispo e Mártir teria sido retirada da frente onde ocupava o lugar da
carranca de uma embarcação com o mesmo nome que chegou ao porto no mesmo dia do Santo - motivo pelo qual trataram os padres de entrar em acordo com o responsável pelo navio e assim conseguiram a imagem para a vila. Podemos notar inclusive o
desbaste que existe atrás da imagem, sem o acabamento onde apareceriam os paramentos da mitra, e o detalhe pendurado da capa de asperges tão comum aos Santos bispos. Essa imagem recebeu camadas de tinta com a repintura que passou recentemente neste
ano de 2014, quando foi retirada junto com São Sebastião do Museu de Arte Sacra de Santos, onde ambas permaneciam guardadas desde os tempos do incêndio da Matriz.
[02] – Eduardo Etzel publicou inúmeros livros sobre arte sacra. Num deles mostrou a imagem de Santo
António da Matriz e a outra imagem de Portugal na qual o artista se inspirou, pelo fato de conhecer as mesmas há muito tempo.
[03] – Possui o Museu Paulista da Ipiranga o pelourinho, o batente de pedra da porta da velha
matriz vicentina e segundo alguns até o sino.
[04] – No Museu de Arte Sacra de Santos existe realmente uma imagem do
menino Jesus em barro cozido muito antigo, mas de pequeno porte, meio desproporcional à imagem que se conserva na matriz; o mesmo está de pé ocupando uma peanha portuguesa madeirense de gesso, pedra que fora por mim doada, havendo sinais de que foi
repintado em outra época. Resta então fazer uma análise do barro usado em sua confecção e assim determinar quem é quem.
[05] – Quando o Espírito Santo desceu sobre os discípulos e apóstolos - segundo o que se lê nos
Atos dos Apóstolos capítulo 2 versículos 02/04 -, tomou a forma de línguas de fogo, o que em um ambiente fechado daria a visão nos dias de hoje de algo semelhante a uma lâmpada sobre a cabeça, assim na arte passou a se fazer uso de uma simples
auréola ou arco para recordar essa presença do Espírito Santo na pessoa, assim desde a Idade Média quando havia resplendores muito simples que se vem em imagens como a de São Tiago de Compostela sedente no altar mor, sendo o mesmo do século XII. No
período barroco apareceram modelos muito enfeitados e trabalhados, conhecidos na Arte como resplendores, cujo objetivo é identificar a presença do Espírito Santo sobre a pessoa.
[06] - Existe a diferença entre "venerar" - que se aplica ao reconhecimento de respeito ou
autoridade por alguém ou alguma coisa - e "adorar" - que é a submissão total a uma divindade onde a pessoa se prostra com o rosto por terra, com o nariz tocando o chão, em entrega total.
Placa existente na imagem de Santo Antonio antes do incêndio
Foto cedida a Novo Milênio pelo professor e pesquisador
Francisco Carballa
[07] - Existia uma placa de bronze
retangular, de pequeno porte, com a data da feitura da imagem:
SANTO ANTÔNIO
A mais antiga imagem do Brasil
Execução do ceramista JOÃO GONÇALO FERNANDES
Anterior a 1560
Placa oferecida pela Câmara Municipal de São Vicente
Presidência: Jaime Hourneaux de Moura
20 - 10 – 1978
onde se lia o nome de João Gonçalo Fernandez e a data de 1560; a mesma se conservou na Matriz de São Vicente até sua estranha reforma, depois do sinistro de 6 de setembro de 2000, quando
- segundo relatos das pessoas na época - ouviu-se uma vidraça sendo quebrada, não sendo identificada qual seria, e logo começaram as labaredas, ficando isso como uma narração remota e sem a atenção de pessoas mais interessadas no assunto.
[08] – Por haver frades da Ordem de São Francisco em Santos com casa fixada no Valongo em 1640, é
possível que os mesmos curassem a capela, mas tal informação teria que ser pesquisada nos registros no Santuário do Valongo; se assim fosse, ao término da capela os frades teriam recolhido o Santo para seu convento com as
demais imagens.
[09] – Existem os que afirmem ser apenas uma ressaca, mas se fosse assim, o terreno permaneceria
após a mesma, no caso da vila ela submergiu a cerca de 5 metros de profundidade, sendo necessário que Pedro Colaço contratasse o mergulhador Jorge Mendes para retirar coisas caras e importantes do leito marinho, como foi o caso do pelourinho que
hoje está no Museu do Ipiranga em SP (conforme referido por Frei Gaspar da Madre de Deus in Memórias para a História da Capitania de São Vicente).
[10] – Esse mapa é datado do século XVIII; sendo assim, é o que temos mais próximo da Vila antiga,
pelo menos até o momento.
[11] - Existe ainda em São Vicente, na Avenida Capitão Mor
Aguiar, próximo da corporação de bombeiros e o mar, uma elevação semelhante ao que pode ter sido esse morrinho, pois onde havia o balão (volta para retorno) dos bondes 01 e 02; podemos ver uma elevação de terra com poucas dimensões, mas
que destaca bem o local, inclusive com casas feitas em seu cimo.
[12] – Tão logo fizeram o cemitério do Paquetá em Santos no ano de 1852,
outras cidades da região passaram a imitar essa novidade e construir seu próprio cemitério público, símbolo de modernidade e saneamento do lugar. Os poucos cemitérios que existiram eram pequenos e de forma desorganizada, ao redor de igrejas ou
dentro delas, e fadados ao desaparecimento.
[13] - Cemitérios eram comuns ao redor das igrejas, em sua frente ou nos fundos, ficando a parte
interna para benfeitores, pessoas de poder ou importantes do local, ou qualquer um ligado a uma determinada irmandade. Existem relatos que durante a construção do conjunto Dale Coutinho foram encontradas inúmeras ossadas
humanas que, pela quantidade, logo se cogitou em ser um cemitério antigo, mas devido o alarde e aos problemas que isso causaria na obra o caso foi mantido em segredo e as ossadas retiradas sem muita cerimônia do local, mas alguns moradores antigos
do bairro, ainda falam sobre o assunto.
[14] Jules Martin era natural da
França e se estabeleceu no Brasil na cidade de São Paulo, onde fazia mapas e projetos diversos como o famoso Viaduto do Chá, motivo pelo qual ele dava uma atenção para as construções quando as representava, conhecendo bem os detalhes que viu.
Faleceu aos 74 anos em 18 de setembro de 1908.
[15] Devido à estrutura dessas
igrejas se achou melhor adicionar uma sineira instalada na fachada ou na lateral do prédio, de onde os sinos são bimbalhados ou tangidos por cordas que ficam visíveis, ao contrário das torres sineiras que mantêm os sinos protegidos das intempéries
e precisam de escadas por dentro, inseridas nas quatro paredes. Do ponto de vista de construção, a sineira é uma solução mais barata.
Bibliografia
Site Novo Milênio/O Bonde.
Hemeroteca Municipal de Santos.
Hemeroteca do Jornal A Tribuna de Santos.
Mapas antigos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Livros de Eduardo Etzel.
Relatos atuais e de antigos moradores.
Pesquisa de campo.
Lança, Marco Antonio. São Vicente, a Primeira Vila do Brasil
(artigo, sem data; Universidade de São Paulo: São Paulo/SP). Disponível em http://www.revistas.usp.br/posfau/article/viewFile/43403/47025 . Acesso: 27/2/2015.
Freguesia de Covões - Nosso Padroeiro. Site:
http://covoes.com/?page_id=18 . Acesso: 27/2/2015. |