Relíquias, imagens e utensílios cerimoniais sacros estão sendo mantidos a sete chaves
no Mosteiro do São Bento, prontos para serem expostos no Museu de Arte Sacra de Santos, que tem inauguração prevista para 21 de novembro. O acervo,
de valor incalculável, é comparado em importância ao do Museu de Arte Sacra de São Paulo, e está sendo catalogado e restaurado pela Cúria Diocesana
e pela Secretaria de Cultura do Estado. A falta de verbas oficiais, porém, impede que haja rapidez na restauração, e, por esse motivo, apenas 102
das 280 peças coletadas serão expostas inicialmente. Algumas datam de antes de 1660
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Os tesouros do São Bento
Texto de Virgínio Sanches
Fotos de Rafael Dias Herrera
O imponente Mosteiro de São Bento está sitiado. Vigias particulares circulam
pelo prédio e em torno dele, atentos a pessoas em atitudes estranhas. As três freiras italianas que o habitam são zelosas, evitam contato com
curiosos e percorrem silenciosas seus seculares corredores. Nele só se entra com autorização expressa do bispo diocesano, d. David Picão, ou de
pessoas a ele ligadas. O acesso do povo só é permitido aos sábados, durante a missa que é celebrada na capela.
O Mosteiro guarda preciosos tesouros e segredos. Tesouros mesmo, alguns com
valor monetário inestimado. E são esses tesouros, 260 ao todo, que deverão ser mostrados ao público, gradativamente, a partir de 21 de novembro.
Nesse dia, as pesadas portas do Mosteiro serão abertas para a inauguração do Museu de Arte Sacra de Santos. Alguns especialistas acreditam que,
mantidas as proporções, o acervo é, pela sua preciosidade, equiparado ao do Museu de Arte Sacra de São Paulo.
Os corredores do mosteiro escondem tesouros da fé e da arte
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Na quinta-feira, a comissão de instalação do museu
terminou o processo inicial de reconhecimento e identificação das 230 peças que deverão ser expostas. Outras 50, embora catalogadas, continuam
praticamente desconhecidas dos especialistas. Mas, além destas, outras 128 imagens, quadros, paramentos e utensílios de uso sacro identificados não
serão conhecidas do público tão breve: elas precisam ser restauradas, o processo utilizado é demorado, a especialidade carente de bons
profissionais.
Assim, apenas 102 obras deverão estar preparadas para a admiração popular, em
novembro. Estas estão todas restauradas, pelas mãos hábeis de Maria Helena Chartuni, do Museu de Arte Sacra de São Paulo; da artista plástica e
futura diretora do museu, Nazareth Mota Leite, e por especialistas da Divisão de Museus da Secretaria de Cultura do Estado, que são responsáveis
pela restauração dos objetos metálicos e pratarias.
Devido ao valor cultural - e monetário - que representam as obras, a comissão decidiu
que elas não mais poderão ser retiradas do mosteiro, nem mesmo para as necessárias restaurações. Para isso, uma das salas do prédio será
transformada em oficina. A preocupação da comissão, de não permitir a saída de peças, fundamenta-se no mistério que sempre cercou o acervo.
Desde 68, quando a criação do Museu de Arte Sacra começou a ser encarada com
seriedade, o acervo permaneceu distante das igrejas e do povo. Parte dele estava em poder dos monges beneditinos, no Mosteiro de Valinhos, e outra
parte - a proveniente das paróquias da diocese - sob os cuidados imediatos de d. David. E nunca, segundo Nazareth Mota Leite, estiveram em casas
particulares, como se chegou a divulgar. O desencontro de informações, aparentemente, tinha como função desestimular e confundir as pessoas que
poderiam tentar roubá-las.
São Bento, criador da Ordem dos Beneditinos
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Amaro é Bento - Há alguns anos, com a chegada a Santos da parte do acervo
conservada pelos beneditinos, foi iniciado o processo de pesquisa, reconhecimento e identificação das peças. A historiadora Wilma Therezinha de
Andrade, a irmã Terezinha Cintra, Fábio Zonis, Valentina Leonel Vieira, o bispo e Nazareth, paulatinamente, foram dando forma ao acervo, historiando
as peças, buscando sua procedência e fotografando-as para a confecção de um catálogo.
Aparentemente concluído o trabalho, foi convidado a revisá-lo o diretor executivo do
Museu de Arte de São Paulo - MASP -, João Marino. O trabalho de reconhecimento, diz Nazareth, não foi fácil, e coube a Marino, profundo conhecedor
da arte sacra brasileira, retificar algumas conclusões da comissão. Foi assim que ele descobriu que uma imagem venerada desde o século XVIII, como
sendo de Santo Amaro, é na verdade uma imagem de São Bento.
O levantamento comprovou que grande parte das peças são paulistas, principalmente as
imagens de barro e madeira. As mais antigas delas são a imagem da Imaculada Conceição, produzida antes de 1660 e de autor desconhecido, e uma imagem
de barro cozido representando Santa Luzia, feita também antes de 1661 pelo Frei Agostinho de Jesus.
A relação de peças preciosas do acervo é grande, mas algumas merecem destaque, como
dois óleos representando a Anunciação e a Visitação, realizados no século XVIII pelo pintor paulista Silva Manso; a imagem em madeira de Nossa
Senhora da Boa Morte, confeccionada no século XVII; o Jesus Morto, também em madeira e em tamanho natural, realizado no século XIX, além de cálices,
relógios de sol, ostensórios, candelabros, estandartes e báculos, do século passado (N.E.: século XIX).
O museu mostrará, também, o primeiro sacrário da Catedral, construído no início deste século (N.E.: século XX).
O acervo será distribuído em algumas salas e salões do terceiro andar do Mosteiro, em
vitrinas e mesas que estão sendo confeccionadas para a exposição. Uma cela será reservada para sediar exposições temporárias - "sempre que possível
relacionadas à arte sacra", diz Nazareth -, uma será destinada a receber objetos de uso pessoal e de culto dos bispos que passaram pela Diocese, e
outra, reservada desde 1903, será dedicada a Frei Gaspar da Madre de Deus.
Em barro, a Santa Luzia do século XVII
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Cupins no altar - A capela do Mosteiro, provavelmente mais antiga do que o
próprio prédio que a cerca, é, por si só, um impressionante legado histórico. A falta de conservação, porém, quase decretou o fim de um de seus
altares, confeccionado em cedro pelo Frei Jesuíno do Monte Carmelo, em 1817. Todo entalhado, colocado entre os mais belos representantes do entalhe
barroco brasileiro, o altar quase caiu, há alguns anos, atacado pelos cupins.
A invasão dos insetos foi constatada em tempo, e hoje ele está livre daqueles
indesejáveis hóspedes. Mas a ação do tempo não pode ser evitada, e ele está atacando, além do altar principal, os patamares do coro e dos balcões de
madeira esculpida. A falta de verbas oficiais determinou que as obras de restauração da capela só tenham início após a inauguração do museu. "A
restauração deverá ser executada pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN -, e exigirá a presença de uma ótima equipe de
restauradores, arquitetos, especialistas em entalhes e ouro e pedreiros", conta Nazareth. Ela não sabe dizer, porém, quando ou com que verba essa
restauração será realizada.
A capela, como era costume antigamente, serve de túmulo para duas figuras importantes
da história santista: Frei Gaspar da Madre de Deus e Frei Manoel de Santa Gertrudes Lustosa, este sepultado em 1754, quando faleceu, atacado de
febre amarela. Os dois túmulos estão marcados com placas de pedra gravadas pelos beneditinos.
Sem verbas - Tombado pelo SPHAN e o Condephaat, o Mosteiro de São Bento está
sem verbas. Para a instalação do museu, seriam necessários Cr$ 6 milhões, dos quais a Secretaria da Cultura do Estado liberou apenas Cr$ 2,8
milhões. Mas esse dinheiro ainda não chegou à Cúria: está retido na Prefeitura, até que a Câmara Municipal aprove sua tramitação oficial. O
dinheiro, portanto, é um dos principais motivos de preocupação da comissão.
Por causa dele, a única forma encontrada para manter o museu aberto foi instituir a
cobrança de ingresso, procedimento normal no exterior, mas pouco aceito no Brasil. "Se há despesa, e o museu é para o povo, nada mais justo que ele
pague para mantê-lo aberto. Esse é um dever cívico", salienta Nazareth.
Talvez como forma de minimizar o impacto dos ingressos, a comissão quer transformar o
museu em um instrumento didático de formação cultural, de auxílio à educação. O povo, segundo Nazareth, não tem culpa por não estar consciente do
que significa para uma comunidade um museu, e precisa ser educado nesse sentido. Por isso, ele vai às escolas e ao povo, para forçar a retribuição à
visita aos tesouros de São Bento.
Somente após alguns meses de funcionamento é que será criado um regimento definitivo
para mantê-lo. Nazareth Mota Leite, já se sabe, será sua diretora. E em seu conselho deliberativo figurarão nomes como os de Pietro Maria Bardi,
diretor do MASP; Padre Godinho, diretor do Museu de Arte Sacra de São Paulo e João Marino, em homenagem àqueles que tornaram sua instalação viável,
apesar de tudo.
Jesus morto, imagem em tamanho natural do século XIX
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Touros, vacas e gentios faziam parte da doação
"E assim mais lhe largarão doze vacas com seu touro nos ditos pastos, com seu pastor
por nome Inácio do gentio da terra e que lhe emprestarão uma negra lavadeira do gentio da terra até lhe dar outra para seu serviço e que hum negro
que possue, pedreiro por nome Domingos, lhe dariam para fazer as obras necessárias do convento e Igreja".
O texto acima reproduz parte da escritura de doação feita por D. Isabel Barbosa e seu
filho Antônio Fernandes Mourão aos beneditinos, de suas propriedades existentes nos Pelames, onde hoje se situa grande parte do Morro do São Bento.
O documento foi compilado por Afonso de E. Taunay, em História Antiga da Abadia de São Paulo (1598-1722), editada em 1927.
Quando a escritura foi passada, em janeiro de 1650, a doadora exigia apenas, dos
beneditinos que se instalavam na Villa de Santos, que lhe fossem rezadas missas na capela que existia no local. A posse ocorreu, de fato, a 4 de
fevereiro daquele ano, quando os religiosos Plácido da Cruz e Basílio da Ascensão realizaram, na pequena capela, a festa de Nossa Senhora do
Desterro, a quem o templo era dedicado.
O Mosteiro do São Bento só teve sua construção iniciada em 1725, sofrendo, a partir de
então, inúmeras reformas, que acabaram por modificar a antiga estrutura. O autor do projeto e da construção do mosteiro foi o abade Frei Gregório de
Magalhães, e sua função não era exatamente a de mosteiro, mas de hospício, ou seja, hospedaria para os monges em trânsito entre o litoral e o
planalto.
N. S. do Pilar e o Menino, século XVIII
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Aspiração antiga - Dos portões do Mosteiro de São Bento partiram os caminhos
que, em direção ao alto do morro, permitiram que ali se instalassem os primeiros moradores do que hoje se convencionou chamar de Cidade Alta. O
morro, no início de sua ocupação, era preferido por pescadores, doqueiros, estivadores e malandros. Por essa época, só subiam o velho Caminho do
Wright ou do Ferramenta os que fossem conhecidos. A própria polícia não se atrevia a ir além do portão do Mosteiro.
Em 332 anos de vida, o conhecido mosteiro viu passar, por suas celas e claustros,
figuras importantes para a cultura nacional. Em uma de suas celas, Frei Gaspar da Madre de Deus viveu vários anos, meditando e escrevendo algumas de
suas mais importantes obras. Seus ossos estão sepultados defronte do altar principal da capela, e em sua antiga cela, uma placa colocada pela Câmara
Municipal, em 1903, evoca sua presença. Nela pretende-se recolocar o mobiliário utilizado por Frei Gaspar, e alguns manuscritos e documentos que lhe
pertenciam.
A importância histórica do mosteiro foi reconhecida em 1968, quando o Departamento de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - hoje Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) - assinou, com a Cúria Diocesana, o
convênio para o tombamento e abriu a possibilidade de restauração e criação do Museu de Arte Sacra de Santos.
A infeliz rotina das promessas não cumpridas, entretanto, prorrogou a esperada criação
do museu por 13 anos. Em 1969, o professor Luiz Saya, diretor do 4º Distrito do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, afirmava que o museu
estaria instalado até o fim daquele ano, contendo imagens, móveis, livros, alfaias e objetos de culto. As verbas destinadas para a restauração
acabaram sendo insuficientes, e em 1974 o mesmo professor Luiz Saya concedia entrevista a A Tribuna, dizendo que "até 26 de janeiro do
próximo ano o Museu de Arte Sacra será entregue, como presente para Santos".
A promessa, obviamente, foi outra vez esquecida, e as obras de restauração do prédio
foram sendo feitas lentamente. Apenas este ano a Cúria Diocesana, a quem o mosteiro efetivamente pertence, declarou que o Museu de Arte Sacra será
definitivamente inaugurado. A data já está marcada para 21 de novembro e, desta vez, o próprio secretário Cunha Bueno, da pasta estadual da Cultura,
avalizou a promessa.
Santa Mônica em madeira, do século XIX
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