Imagem: reprodução parcial da matéria original
As desavenças de Franca e Horta com os Andradas
Costa e Silva Sobrinho
Com quase cinqüenta anos de idade,
desembarcava em Santos, em 1802, um militar português, fidalgo da casa real, que se chamava Antonio José da Franca e Horta. Era natural de
Faro, no litoral algarvio, e seguira primeiro a carreira eclesiástica, para depois abandoná-la, assentando
praça no regimento de infantaria de Tavira. Tinha, ademais, o curso de Filosofia e Matemática pela Universidade de Coimbra.
Aqui chegava ele nomeado governador e capitão-general de S. Paulo, cargo do qual tomou posse a 10
de dezembro do mencionado ano.
Todos os moradores da cidade e dos subúrbios de São Paulo, segundo determinação expressa da Câmara
Municipal dali, arrumaram as ruas e as estradas à frente das suas propriedades, caiaram as casas e no dia da entrada do delegado régio, bem como nos
dois dias imediatos, acenderam luminárias, em demonstração de regozijo popular.
E ai daquele que não cumprisse tais ordens municipais! Incorria na multa de seis mil réis para o
Conselho e na pena de trinta dias de cadeia.
Houve, destarte, grandes festejos para celebrar o advento desse governador na cidade principal da
Capitania.
Um dos seus primeiros atos foi proibir que os "aduladores", revivescentes como a tiririca em todos
os tempos, lhe fizessem presentes...
A sua administração durou cerca de nove anos. Nos Documentos Interessantes para a História e
Costumes de São Paulo, publicação do Arquivo do Estado, há farta documentação referente a esse período da história de São Paulo.
Na Biblioteca Nacional existe também, a esse respeito, um manuscrito interessante. É a
Exposição que faz o capitão-general da Capitania de São Paulo, Antonio José da Franca e Horta, ao seu sucessor, o marquês de Alegrete, em outubro de
1811, sobre o estado dos negócios concernentes à administração e governo da mesma capitania.
Trata esse documento de vários assuntos. A saber: finanças, estado militar, tropa de linha,
milicianos, fortalezas, comércio, agricultura, estradas e caminhos, obras públicas, casas de misericórdia e lazaretos, fábrica de ferro.
Ministra-nos ele muitos subsídios valiosos para a história de Santos. Não nos é dado, neste momento, examinar as matérias ali versadas. Isso nos
faria interromper o nosso assunto.
Com a sua nomeação para o cargo de juiz de fora, em 1805, Antônio Carlos fixava residência
definitiva em Santos. Datam daí as suas terríveis pegas com o capitão-general Franca e Horta.
Relatando este ao visconde de Anadia, então ministro e secretário de Estado dos Negócios da
Marinha e Domínios Ultramarinos, um dos aludidos incidentes, assim se expressava em ofício de 4 de novembro de 1806: "Não
me sendo possível nesta ocasião fazer ver o petulante comportamento e insubordinação com que o atual juiz de fora da vila de Santos, Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada, se tem atrevido a iludir a execução das ordens que lhe tenho expedido... me vi obrigado a mandá-lo chamar à minha presença etc.".
E mais adiante ainda afirmava:
"Tanto o dito bacharel como seu irmão Martim
Francisco, químico aqui empregado na Inspetoria das Minas de Ferro, são dotados de um espírito orgulhoso, nimiamente enfatuados, e com a cabeça
cheia de princípios de liberdade, pelo que, no meu modo de pensar, julgo pouco conveniente a sua existência nestes Estados, onde só a vaidosa
confiança que lhes inspira o valimento de José Bonifácio, seu irmão mais velho, é capaz de os fazer abalançar aos maiores absurdos".
Refere-se o citado ofício à desobediência do juiz de fora às decisões da Junta da Fazenda, que lhe
eram comunicadas pelo governador, como presidente desse tribunal. O fato vem narrado mui por menor no volume I, pág. 460
da obra de Alberto Sousa, sobre Os Andradas.
Mas o "petulante bacharel" não se assustava com gritos e ameaças. Não temia a cólera do
governador. Tinha ânimo capaz das empresas mais arriscadas.
Enfim, para debelar a altivez e a resistência do Andrada, recorreu Franca e Horta ao emprego de
meios nimiamente opressivos.
Havia, na família Andrada, dois membros que viviam constantemente a atacar, a ofender, a crivar de
setas o governador. Eram Francisco Eugênio de Andrada, irmão mais moço de Antonio Carlos, pois contava então 28 anos; e João Feliciano, primo deles,
que Alberto Sousa não conseguiu de modo algum identificar. Tratava-se, porém, de João Feliciano de Aguiar e Silva, de 33 anos, filho do sargento-mor
Manuel Angelo Figueira de Aguiar e de sua mulher d. Rosa Jacinta da Silva, irmã da progenitora
(N.E.: a palavra progenitora, de novo usada erroneamente no lugar da forma correta genitora,
mãe) de Antonio Carlos.
Em ambos vingaria Franca e Horta os agravos pessoais recebidos de todos. Num excesso de
arbitrariedade ordenou, pois, ao comandante da Praça de Santos que os prendesse e em seguida os obrigou a assentar praça como soldados rasos na
tropa de linha destacada em Santos - "para mostra que eles não eram melhores do que os outros
e ao mesmo tempo para desafrontar-se das suas injúrias", conforme informou com todo
descaramento ao secretário de Estado.
Diz-se que Antonio Carlos promovera, então, a deserção daqueles recrutas. Te-lo-ia feito,
entretanto, como medida extrema, só depois que eles, procurando defender-se, não conseguiram arrostar com os obstáculos.
Assim, Francisco Eugênio de Andrada constituía seus procuradores, em 15 de outubro de 1806, ao
padre Patrício Manuel de Andrada e Silva, e a João Otavio Nébias, Joaquim Bento e Raimundo de Sousa, para o fim de lhe requererem em juízo uma
justificação. E de fato, dez dias depois era ela requerida nestes termos:
"Elmo. sr. juiz de fora:
"Diz Francisco Eugênio de Andrada que, para bem de sua Justiça, lhe é preciso justificar os itens
seguintes:
"1º - Que ele é das principais famílias desta vila.
"2º - Que é negociante estabelecido nela, que deve, e a quem se devem somas consideráveis.
"3º - Que tem servido os cargos da República nesta dita vila.
"4º - Que nunca constou que tivesse crime neste Juízo, ou em outro qualquer.
"5º - Que nunca deu mostras de insubordinação a seus legítimos superiores.
"E como o não pode fazer sem despacho, pede a V. M. seja servido admiti-lo a justificar o
mencionado, e, justificado quanto baste, lhe mande o seu instrumento pelas vias que pedir. Como a algumas das testemunhas é preciso tomar-lhes o
depoimento em suas casas, pede seja igualmente servido dar comissão ao escrivão companheiro para as inquirir. E. R. M."
Antonio Carlos, que era então o juiz de fora, exarou este despacho: "Remetida
ao vereador mais velho, por ser eu irmão do justificante. (a) Andrada Machado".
O vereador mais velho era o capitão José Carvalho da Silva, que, recebendo a petição, despachou: "Remetida
ao segundo vereador por ser o justificante meu cunhado. Santos, 27 de outubro de 1806. (a) Carvalho."
Foi a petição ao segundo vereador, que deu o seguinte despacho: "Remetida
ao terceiro vereador, por na presente ocasião estar eu doente. Ferreira". Esse Antonio Vicente
Ferreira era licenciado, isto é, exercia a Medicina, por isso se lembrou talvez de alegar moléstia.
Ao terceiro vereador vai agora a justificação. Trata-se do capitão-mor Antonio do Rego Baldáia,
que recebe os autos e põe logo: "Não posso presidir à presente justificação porque, além da
particular amizade que tenho com o suplicante, com o mesmo tenho contas, e, portanto, me dou de suspeito, acrescendo mais o achar-me presentemente
doente. - Santos, 3 de novembro de 1806. (a) Baldáia".
Esgotado o número de juízes vereadores, foram os autos ao juiz da Alfândega, dr. João de Sousa
Pereira Bueno. Como era romanista sumarento e condimentoso, esquivou-se pondo este ornamento latino: "Jure
jurando, dou-me por suspeito, e dou esta por publicada na mão do escrivão. - Santos, 29 de novembro de 1806. (a) Bueno".
Depois, cada um que recebia o processo, repetia essa derradeira fórmula. Foram eles: o dr. Joaquim
José Freire da Silva, médico do presídio, e Francisco Solano Ferreira, em 3 de dezembro de 1806; João Xavier da Costa Aguiar, em 18 do mesmo mês;
João Batista da Silva Passos, em 24 de janeiro de 1807; Antonio Joaquim de Figueiredo, em 28 de janeiro; e, finalmente, Luís Pereira Machado, em 12
de fevereiro, ambos deste último ano.
Desanimado Francisco Eugênio de Andrada de conseguir juiz que procedesse a sua justificação, fez
uma última tentativa. Apresentou ao juiz de fora esta petição:
"Diz Francisco Eugênio de Andrada que, para
bem de sua Justiça, se lhe faz preciso que o escrivão Antonio José de Lima a quem foi distribuída uma justificação que o suplicante pretende fazer
neste Juízo, lhe passe por certidão o estado em que achou ao segundo vereador, o licenciado Antonio Vicente Ferreira, e ao terceiro vereador, o
capitão-mor Antonio do Rego Baldáia... e outrossim se se acham doentes ou impossibilitados de tirar a sobredita justificação".
Certificou o escrivão haver encontrado o segundo vereador sentado em uma cadeira, com uma ferida
na canela, não lhe tendo visto outra moléstia. E acrescentou: "Procurando eu escrivão à noite
ao sobredito vereador, não o achei na sua casa".
Quanto ao terceiro vereador, a informação figura-se-nos mais curiosa. Disse o escrivão: "Item
certifico e dou fé que indo à casa do terceiro vereador o capitão-mor Antonio do Rego Baldáia, para o mesmo auto que fui à casa do segundo vereador,
achei-o em uma loja vestido e calçado e lhe não vi moléstia alguma, e apresentando-lhe o requerimento da parte mo não quis aceitar".
Em face de tais informações, recorreu o justificante ao ouvidor geral da Comarca, apresentando-lhe
o seguinte requerimento:
"Diz Francisco Eugênio de Andrada que,
fugindo à injusta violência do atual governador e capitão-general desta Capitania para os pés do trono, aonde vai apresentar as suas justas queixas
e procurar remédio aos inauditos gravames que tem sofrido, e sendo-lhe preciso justificar certos itens, requereu ao sr. juiz de fora de Santos que
lhe admitisse a dita justificação, o qual, por ser irmão do suplicante, o remeteu ao primeiro vereador, que, por iguais motivos de pejo, o remeteu
ao segundo, que este sob pretexto de moléstia ao terceiro, que igualmente recusou tirar a sobredita justificação, alegando motivos inteiramente
falsos.
"Mas pela certidão junta se mostra que o segundo vereador, bem que molesto, não se acha contudo
totalmente impossibilitado, mormente podendo dar comissão para inquirir. E quanto ao terceiro vereador, tudo que alegou é falso, pois nem está
doente, como se prova com a citada certidão, nem nunca teve particular amizade com o suplicante. O ter com ele contas não é, nem pode ser, motivo de
suspeição. Está, pois, evidente que só o temor de poderosos é que os estorva de cumprir as suas obrigações, tolhendo ao suplicante os seus legítimos
recursos.
"E como V. S. é especialmente preposto para prover que os poderosos não oprimam os fracos, nem se
impeça a ninguém a sua legítima defesa, pede a V. S. seja servido ordenar ao sobredito segundo vereador, e na sua legítima falta ao terceiro
vereador admitam o suplicante a fazer a sobredita justificação, sob pena de não o fazendo, contra eles proceder na forma da lei etc.".
Após andar quatro meses de porta em porta, viu Francisco Eugênio de Andrada que nada podia
conseguir. Abandonou em cartório a justificação.
Antonio Carlos apôs àqueles rigores a sua astúcia de causídico e iludiu os golpes do tremendo
adversário. Fez de fato que o irmão e o primo desertassem. O primeiro foi para Lisboa e o segundo para o Rio de Janeiro.
As perseguições de Franca e Horta inflamaram sempre cada vez mais contra ele os ódios dos
Andradas, em quem a altivez, o denodo, a habilidade, o ardil se aliavam em consonância indiscutível à mais fraterna união.
A pusilanimidade dos juízes vereadores mostra-nos, no caso vertente, a que degradação baixavam os
jurisdicionados perante o sobrecenho daqueles capitães-generais que entendiam que isto aqui no Brasil era o mesmo que Fafe, onde a justiça dizia - "nós
e el-rei e ninguém mais".
(N.E.: refere-se o autor a um
conjunto de lendas portuguesas do século XIX, sobre episódios de justiçamento popular que teriam ocorrido na cidade portuguesa de Fafe, situada
no distrito de Braga, e que a esse respeito tem inclusive um monumento situado atrás do tribunal local, insinuando que quando a Justiça não
funciona, ela é tomada pelo povo em suas próprias mãos. A versão mais corrente dessas lendas é que no final do século XVIII o visconde de Moreira de
Rei, insultado por certo marquês, compareceu ao duelo de honra munido não de espadas ou pistolas, como de praxe, mas com dois resistentes varapaus,
com os quais deu uma sova no marquês. Os assistentes aplaudiram o feito, gritando "Viva a Justiça de Fafe". O fato é narrado no poema Barão de
Espalha Brasas, de Inocêncio Carneiro de Sá). |