Lutas do juiz de fora com Franca e Horta
Do exercício simultâneo de seus dois trabalhosos cargos na
judicatura militar e na civil datam, ao que pudemos averiguar, os seus primeiros atritos com o governador Franca e Horta. António Carlos preferia,
sem dúvida, a vida calma na sua terra, ao lado de sua família e de seus amigos, no trabalho constante em defesa dos direitos de seus conterrâneos,
que para seus poderes apelavam, e das prerrogativas locais, que lhe cumpria zelar, na qualidade de presidente nato da Câmara Municipal - função
inseparável dos seus deveres de juiz.
De maneira que só subia a S. Paulo quando havia conselhos de guerra em que devia
funcionar; e isso mesmo fazia com grande desprazer porque o incômodo, o desconforto e a demora da viagem pelos caminhos ásperos da Serra não o
tentavam a repeti-la com a relativa freqüência que as atribuições do seu cargo de auditor estavam a exigir.
Daí as incompatibilidades que foram nascendo, e tomando graves proporções, entre ele e
as principais autoridades militares da Capitania. Dentro em pouco, António Carlos se declarava em franca e ostentosa desobediência às ordens que de
seus superiores recebia a fim de tomar parte, na capital, nos conselhos formados para julgamento de réus militares presos, atitude que, além de
nocivamente atentatória da disciplina, que é indispensável em corporações de tal natureza, diminuía, aos olhos da população, o prestígio oficial dos
delegados de El-Rei.
Isso veremos dos casos que serão expostos daqui a pouco. Dos documentos que
encontramos nos arquivos públicos, concluímos que o seu primeiro embate mais sério com o capitão-general foi logo no início de seu juizado em
Santos, no penúltimo trimestre do ano de 1806, pelos motivos que iremos dando em seguida.
Em fevereiro de 1805, a Câmara Municipal de Paranaguá, julgando lesados
os respectivos munícipes em seus vitais interesses, com uma providência de ordem econômica tomada pelo governador, deu conta contra ele ao
Governo Real [136].
É o caso que Franca e Horta tinha proibido terminantemente que os gêneros daquela
vila, próprios para carregar os navios que largavam diretamente com destino a Portugal, fossem, de então por diante, exportados da Capitania sem
primeiramente aportarem a Santos.
Ora, semelhante ordem, que parecia visar uma proteção direta ao comércio santista,
prejudicava sobremaneira os agricultores, industriais e negociantes de Paranaguá, porque embarcação alguma, em tais condições, demandaria jamais o
seu porto, dantes relativamente movimentado e procurado pelos capitães de navios.
Viram-se, pois, os paranaguaenses, forçados de um momento para outro a exportar os
seus produtos para Santos, de cujo comércio se tornavam tributários, e vendê-los aí aos preços que lhes eram oferecidos pelos traficantes locais,
sem poderem sequer aguardar que uns fizessem ofertas mais vantajosas que outros, pois que todos, como que previamente entendidos entre si, mantinham
invariavelmente a mesma tabela uniforme.
Como os navios que carregavam para o Reino os produtos da Capitania não mais
procuravam Paranaguá, em vista da ordem que vigorava - que remédio tinham os seus produtores e intermediários, senão sujeitar-se discricionariamente
aos ditames da Praça de Santos, até que o governo da Metrópole, tomando em consideração a queixa da Municipalidade, repusesse as coisas em seu
estado anterior?
A referida queixa foi enviada, em 16 de dezembro do mesmo ano, ao capitão-general,
para que desse informação a respeito de seus fundamentos. Franca e Horta, pretendendo destruí-la com elementos de convicção fornecidos pelos
próprios signatários dela, mandou chamá-los a Santos, onde logo se encontraram; transportou-se para lá ato contínuo e, por ofício datado de 22 de
setembro de 1806 - pois que somente nessa época lhe chegara às mãos a queixa, acompanhada da Provisão Real, mandando-lhe que a informasse -
determinou ao juiz de fora que os intimasse a comparecer em sua presença e os inquirisse quanto aos seguintes pontos:
1º) Que cargos ocupavam na Câmara quando foi da sobredita queixa?
2º) Se efetivamente tinham sido eles que a fizeram e assinaram?
3º) Se a tinham feito de livre e espontânea vontade ou solicitados por outrem?
4º) Se eram lavradores dos gêneros compreendidos na proibição, que quantidade colhiam
e se se julgavam prejudicados com a referida proibição?
5º) Por que preços foram vendidos em Santos os gêneros em questão, desde o princípio
de seu governo, e quais os preços que obtiveram durante os seis anos do governo precedente?
6º) Se o imposto do cruzado do sal em Paranaguá era ou não anterior ao seu governo?
7º) Se durante o atual governo tinha diminuído ou aumentado a cultura de todos os
gêneros?
8º) Se os gêneros importados da Europa tinham aumentado ou diminuído de preços no seu
governo?
9º) Qual o negociante ou negociantes que faziam monopólio na Vila de Santos, ou
vexavam os lavradores e negociantes, estabelecidos em Paranaguá e vilas circunvizinhas, com a produção e comércio dos citados gêneros?
10º) Se, havendo algum que o tivesse feito, a Câmara representara a respeito ao seu
governo para que fossem dadas as necessárias providências?
Determinou ainda mais ao juiz que, conclusa a inquirição ordenada, chamasse também à
sua presença alguns dos mais importantes membros do alto comércio santista e lhes propusesse as questões contidas nos itens 5º e 6º do Auto de
perguntas que formulara. E especificava que, além de interrogar os negociantes que bem lhe parecesse, devia principalmente ouvir a respeito o
capitão-mor de S. Vicente, Bento Thomás Vianna, José António Vieira de Carvalho e Caetano José da Silva.
Era, como se vê, um plano de defesa arquitetado com habilidade magistral, pois
objetivava triplicemente provar, com o depoimento dos próprios vereadores queixosos e dos negociantes mais acreditados na Praça de Santos, que:
1º) com as providências de ordem econômica tomadas pelo seu governo, a cultura geral
das produções aumentara e, apesar disso, os preços por que eram reputadas e vendidas aumentaram também, remunerando melhor o trabalho do lavrador;
2º) o imposto do cruzado do sal, em Paranaguá, que constituía uma das mais fortes
razões da queixa, fora instituído, não por ele, e sim por seu antecessor, sem que a Câmara local tivesse erguido protesto algum contra esse tributo;
3º) se se fazia monopólio, em Santos, dos produtos compreendidos na proibição que
motivara principalmente a queixa, os vereadores nunca lhe dirigiram representação alguma sobre essa matéria, para que ele tomasse a propósito
providências úteis e adequadas.
E tudo isso ficou plena, exuberantemente provado com as respostas que ao
interrogatório deram não só os negociantes santistas a ele submetidos, como também os membros da Câmara de Paranaguá, Francisco Leite de Moraes,
juiz ordinário [137]; e Manoel José dos Anjos, Manuel da Cunha Vieira,
Manuel Amaro de Miranda e José Xavier de Oliveira, vereadores.
António Carlos, entendendo que a ordem do capitão-general era prepotente e arbitrária,
recusou-se terminantemente a cumpri-la, o que lhe comunicou por ofício de 25 do mesmo mês. Alegava ele, em abono de sua recusa, que a queixa da
Câmara fora apresentada a S. A. Real o Príncipe Regente e somente este, portanto, a quem estava diretamente afeta a decisão do caso, é que lhe
poderia determinar que tomasse conhecimento dele.
"Só por comissão, pois, é que posso fazer o que V. Ex. me
ordena; e mais é preciso que quem m'a deu, tenha poder para isto. Ora, parece-me que V. Ex. o não tem neste caso, porquanto o Poder Judiciário
dimana inteiramente do Soberano e se espalha pelos diversos ramos da Magistratura, ficando a V. Ex. o imputar, e ordenar a execução, tudo, porém,
nos limites do Regimento de cada um".
E terminava, exigindo que lhe fosse comunicada a provisão real que mandava acaso
proceder a tal interrogatório, ou, na falta dela, uma portaria em ordem, determinando-lhe que procedesse à diligência, para então resolver a
respeito.
É evidente que António Carlos não tinha razão; e isso mesmo ressalta dos próprios
argumentos de que se utiliza no seu ofício. No regime político que vigorava então, todos os poderes promanavam da Majestade Real, mas, por isso
mesmo, não era possível conceber-se que o Poder Judiciário gozasse de um grau de independência tão lato que o Soberano ficasse embaraçado para
conter-lhe os excessos ou corrigir-lhe os erros e os abusos.
O rei, por seus conselhos, por seus ministros e por seus magistrados, legislava,
executava e julgava. Era ele a última e irrevogável instância que decidia de todos os feitos políticos, administrativos e judiciais. É certo que o
governo português procurava cercar das indispensáveis garantias os magistrados coloniais no exercício de suas funções, obstando o mais possível a
intromissão das autoridades administrativas na alçada que àqueles competia. Mas também é exato que, tratando-se de uma colônia tão afastada de sua
metrópole, como era o Brasil, não podia o rei agir diretamente, e com a prontidão possível, quando tivesse de chamar a contas os juízes relapsos,
prevaricadores ou parciais.
Daí o poder que delegava aos seus representantes para, embora com a discrição e
moderação precisas, tomarem contas aos magistrados que se não desempenhassem bem desses deveres, censurando-os e até destituindo-os de seus postos,
e ordenando-lhes a execução de diligências que as necessidades públicas reclamassem.
Os capitães-generais eram delegados do soberano, em nome dele procediam no governo das
capitanias e perante ele respondiam pelos erros de ofício, excessos de mandato ou irregularidades que praticassem.
As cartas patentes que os nomeavam não deixam dúvidas a respeito da extensão de seus
poderes, que só estacavam diante do poder real. Nelas ordenava o soberano "a todos os oficiais de guerra, Justiça
e Fazenda, que em tudo lhe obedeçam, cumpram suas ordens e mandados inteiramente como a seu governador e capitão-general".
A sua jurisdição estendia-se a todos os poderes existentes nas capitanias, os quais em
tudo deviam obedecer-lhes inteiramente. António Carlos, porém, colocando-se num ponto de vista muito acima das idéias correntes no seu tempo, quis
dar ao Poder Judiciário, de que era membro, atributos de independência que se não coadunavam com os princípios então geralmente aceitos e com a
índole retrógrada do regime político, de que era serventuário por mercê do rei e não porque tivesse conquistado o seu posto em virtude de provas
públicas que o tivessem indicado imperiosamente para tal função.
E ainda mesmo que o ato de Franca e Horta exorbitasse de suas atribuições, o que um
juiz provido dos predicados essenciais ao cargo - a serenidade das atitudes e o respeito aos poderes constituídos - deveria fazer, era simplesmente
representar à autoridade violadora da lei, expondo-lhe as dúvidas que o assaltavam e declarando-lhe que cumpriria, sob protesto, as suas
determinações, com recurso para o poder superior, a fim de isentar-se de quaisquer indevidas responsabilidades futuras.
Mas o caráter impulsivo do segundo Andrada não podia conter-se dentro de certas regras
de justa moderação; e apelava logo para os gestos desabridos e as manifestações delirantes ou descompassadas.
Replicou-lhe Franca e Horta três dias depois, a 28 do mês citado, tentando
dissipar-lhe as dúvidas que lhe turbavam a nitidez do raciocínio e fazendo-lhe ver que se não tratava de um procedimento judicial contra os oficiais
da Câmara de Paranaguá, pois António Carlos, entre outras alegações, declarara "faltar-lhe competência para fazer
perguntas a um corpo constituído e muito menos a um juiz ordinário que não pode ser chamado a juízo durante o tempo em que é juiz",
porque as suas atribuições a respeito estavam taxativamente determinadas no § 1º, Tit. 32, Livro 3º das Ordenações, que dispunha sobre os casos em
que o juiz pode constranger as partes a responderem às perguntas que lhe fizer em juízo.
A inquirição - retorquia Horta - não tinha por fim responsabilizar ninguém e tão
somente apurar a veracidade das razões da queixa. Terminava o governador por mandar-lhe, em termos categóricos, que cumprisse inteiramente e sem
demora a determinação que no momento lhe reiterava. Obstinou-se, porém, o juiz de fora em sua recusa e, em novo ofício, datado de 30, manteve-se na
exigência de uma portaria ou ordem especial sobre a matéria, para ressalva de sua responsabilidade perante o príncipe regente, como se os dois
ofícios de Franca e Horta, redigidos em termos peremptórios, não equivalessem ao documento que reclamava como indispensável para sua defesa, caso
fosse chamado a contas por ter procedido com postergação da lei e incompetência de atribuições.
Diante dessa atitude de franco desrespeito à sua autoridade, que
era exercida em nome do soberano, o capitão-general mandou chamá-lo à sua presença, no quartel de sua residência, que era na ala esquerda do antigo
Colégio dos Jesuítas, como quem vai da terra para o mar; e aí, no dia 1º de outubro, diante do seu ajudante de ordens,
capitão Joaquim de Oliveira; do brigadeiro Manuel Mexia Leite, comandante da praça, e do secretário do governo, Luís António Nunes de Carvalho,
depois de sujeitá-lo a um curioso interrogatório, mandou lavrar contra ele um "Auto por desobediência formal à
determinação que lhe dera em nome de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente Nosso Senhor"
[138].
Compareceu António Carlos perante o déspota, em obediência ao seu chamamento, e
respondeu a todas as perguntas que lhe o mesmo fez; o que nos parece uma flagrante contradição com a sua anterior conduta. Se ele entendia que o
capitão-general não tinha competência legal para determinar-lhe ordens, como é que obedeceu à intimação para ir à sua presença ver-se autuar por
crime de desobediência a um superior hierárquico, cuja ascendência ele não reconhecia, sujeitando-se, aliás, a um interrogatório vexativo?
Para ser coerente com seus propósitos da véspera, devia resistir impavidamente à
intimação, desobedecer-lhe formalmente, só cedendo diante do emprego da força. Mas é que, quando compareceu perante o governador, já tinha António
Carlos refletido mais profundamente sobre o caso, reconhecendo que lhe assistia pouca razão para rebelar-se contra as ordens que lhe baixara o
delegado d'El-Rei em nome deste. Tanto assim é que, no interrogatório a que foi submetido, reconheceu que o capitão-general era o regedor da Justiça
e como tal era obrigado a obedecer às suas ordens, não sendo contra a lei, e ainda mesmo contra ela o faria, se depois de suas representações
lho ordenasse.
Aquele temperamento exagerado caiu aqui no excesso oposto: já acha que é obrigado a
obedecer às determinações ainda que contra a lei, se lho for ordenado depois que tivesse formulado suas dúvidas - o que não é uma resolução
judiciosa. As ordens ilegais emanadas de poder superior só devem ser cumpridas, mediante respeitoso protesto e recurso para autoridade mais alta.
Dois dias depois, a 3 de outubro, iniciou António Carlos as diligências recomendadas
por Franca e Horta, as quais, como já dissemos, importaram na plena justificação das medidas que adotara para incrementar o desenvolvimento das
forças produtoras da Capitania.
A humilhação, porém, por que passara diante de toda a população de sua terra, havia de
produzir mais tarde novos frutos de insubordinação, novos atritos e desinteligências, incompatibilizando cada vez mais radicalmente as duas
autoridades em acirrada luta de competições. Os Andradas eram naturalmente orgulhosos e António Carlos o mais orgulhoso deles. Ao orgulho da nobreza
e da abastança, juntava-se o orgulho do talento e do saber.
Estendeu-se por isso a toda a família o ódio que lavrava intenso entre o juiz de fora
e o governador, resultante da ofensa que este fizera àquele, mandando-o ir à sua presença, sujeitando-o caprichosamente a uma desnecessária e
arrogante inquirição, rebaixando-o com suas aviltadoras reprimendas e desprestigiando-o com o famoso auto de desobediência formal que fizera lavrar
acintosamente.
Dando conta de seu procedimento ao visconde de Anadia
[139], ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios
Ulramarinos, assim se exprimia Franca e Horta no seu ofício de 4 de novembro de 1806: "Não me
sendo possível nesta ocasião fazer ver o petulante comportamento e insubordinação com que o atual Juiz de Fora da Vila de Santos, António Carlos
Ribeiro de Andrada, se tem atrevido a iludir a execução das ordens que lhe tenho expedido, já como presidente da Junta da Real Fazenda desta
Capitania, já como governador e capitão-general dela, pelo que ultimamente me vi obrigado a mandá-lo chamar à minha presença, etc."
E mais adiante acrescentava: "...devo
afirmar a V. Exa. que tanto o dito bacharel como seu irmão Martim Francisco, químico, aqui empregado na Inspetoria das Minas de Ferro, são dotados
de um espírito orgulhoso, nimiamente enfatuados, e com a cabeça cheia de princípios de liberdade, pelo que, no meu modo de pensar, julgo pouco
conveniente a sua existência nestes Estados, onde só a vaidosa confiança que lhes inspira o valimento de José Bonifácio, seu irmão mais velho, é
capaz de os fazer abalançar aos maiores absurdos"[140].
Os acontecimentos posteriormente ocorridos em Pernambuco provam que não se enganava
Franca e Horta nas suas previsões a respeito de António Carlos, cujo "petulante comportamento e insubordinação"
o indignavam profundamente.
O ofício em questão alude à desobediência do juiz de fora às decisões da Junta da
Fazenda, que lhe eram comunicadas pelo governador na qualidade de presidente desse tribunal. Trata-se de um conflito suscitado entre o mesmo
governador e a Câmara de Santos, mais ou menos pela mesma época em que se deu o caso com a Câmara de Paranaguá.
Era imposta por lei aos juízes de fora a obrigação de presidir às sessões das
Municipalidades, naturalmente para suprirem com suas letras e conhecimentos jurídicos a inópia mental dos vereadores, em geral incultos. António
Carlos era, pois, o presidente nato da Câmara de Santos, e competia-lhe, como juiz togado e membro graduado do poder público, orientá-la no
cumprimento exato de suas obrigações e no respeito às leis e determinações reais.
A carta régia de 23 de agosto de 1805 dispusera que, a partir de 1º de janeiro do ano
seguinte, se cobrasse a coleta do subsídio literário estabelecido por carta de lei de 3 de novembro de 1772, "pelo que
pertence às aguardentes da terra, à razão de 10 réis por cada medida, que se fabricar, do padrão de Lisboa, calculado com a dessa Vila (S. Paulo),
seja qual for a diminuição que haja de uma a outra medida; e que, da mesma forma, a respeito do real da carne se deve regular cada cabeça de gado
vacum que se matar para venda, ou seja, nos açougues ou em outra qualquer oficina de salgar, pelo ordinário de 10 arrobas, tenha ela mais ou menos,
de maneira que venha a pagar cada rês trezentos e vinte réis de imposto pelo real estabelecido na referida lei".
Era uma iniqüidade e uma clamorosa extorsão: não se elevava a taxa do imposto
anterior, mas diminuía-se a capacidade de cada medida de aguardente e aumentava-se discricionariamente o peso normal médio de cada cabeça de gado
vacum, de modo a que as rendas do Real Erário crescessem em proveito da Corte perdulária e com sacrifício da população colonial, já tão onerada de
tributações excessivas.
A Câmara de Santos, presidida, como dissemos, por António Carlos, e composta dos
vereadores João Xavier da Costa Aguiar, José Carvalho da Silva, António do Rêgo Baldaya e Francisco Solano Ferreira, tomando a peito a defesa dos
interesses locais, insurgiu-se contra a nova espoliação do Fisco português; mas, em vez de dar imediata execução às ordens reais, que a Junta da
Real Fazenda lhe comunicara oficialmente, representando ao mesmo tempo ao Regente contra a odiosa providência e pedindo-lhe que a suspendesse, tomou
logo a resolução revolucionária de lhe não dar cumprimento enquanto o governo de Lisboa não tomasse conhecimento da representação que a respeito lhe
enviara a 5 de abril de 1806, no uso das atribuições que lhe competiam e em bem do povo que ao Senado cumpria velar.
Debalde insistiu perante ela o Tribunal da Junta da Fazenda, por ofícios
de 6 e 25 de junho do mesmo ano, para que obedecesse à provisão real: foi preciso que o príncipe lhe chamasse a atenção para as penas em que
incorreria se não desse pronta execução às ordens que aquela repartição lhe transmitira. A Câmara, em ofício de 4 de julho, apresentou longamente
sua defesa ao rei e mandou finalmente que os povos cumprissem inteiramente a provisão [141].
Em 1808, novo conflito se declara entre o governador e a mesma Câmara. Por motivos
que, diante da escassez e obscuridade dos documentos, não logramos esclarecer, mandara-lhe Franca e Horta, em ofício de 18 de novembro, que fizesse
entrega, a determinado indivíduo, de alguns livros do seu arquivo. A Câmara, em resposta datada de 30 e assinada por seu presidente António Carlos e
pelos vereadores José António Vieira de Carvalho, António Joaquim de Figueiredo, Caetano António Pereira de Barros e Francisco Solano Ferreira,
negou-se terminantemente a obedecer-lhe, fundada nos dispositivos do § 23, Título 66, Livro 1º das Ordenações, que proibia "deixar
sair dos Arquivos do Conselho papel ou escritura que a ele pertençam, salvo para ver ou trasladar, e isto na mesma Casa do Conselho".
E com este período, que traía a redação de António Carlos, assim rematava o seu
enérgico ofício: "E quando Sua Alteza Real mande expressamente que se entreguem os livros, desejaríamos que V. Ex. nos
comunique a ordem que revogue uma lei que devemos obedecer".
A atitude da Câmara perante o governador era a reprodução da que anos antes assumira
António Carlos no caso dos vereadores de Paranaguá. Via-se nela o seu dedo, a sua inspiração, a sua vontade impulsionando o Senado santista contra a
suprema autoridade do capitão-general. Não sabemos qual o desfecho que teve essa nova questão; é natural, porém, que, como todas as outras, se
resolvesse ao grado dos caprichos governamentais; pois se é verdade que a Câmara tinha inteiramente a razão a seu favor, não é menos certo que o seu
modo de exigir do governador o respeito à lei escrita e às prerrogativas asseguradas às Municipalidades não foi o mais avisado e prudente. Não se
pede o cumprimento da lei, em termos que a violam. Cumpria-lhe expor à autoridade as suas dúvidas baseadas na legislação vigente, recorrendo para o
rei, caso as suas alegações não fossem recebidas, mas cumprindo as ordens, embora sob protesto, baixadas do poder superior.
Por esse tempo, a animosidade da família Andrada contra o governador, que ousava
espezinhar seus nobres títulos e tradicional orgulho, assumira vastas proporções. Franca e Horta, que descia freqüentemente a Santos, a serviço ou
por mero passatempo, estava a par de tudo quanto contra sua pessoa e autoridade os Andradas diziam sem rebuços pelos mais públicos lugares da
acanhada vila, pois não faltariam certamente bajuladores e mexeriqueiros que, por mera cortesanice, lhe apresentassem um relatório verbal minucioso
a tal respeito.
Resolveu, portanto, despicar-se deles, ostentosamente. Julgavam-se os Andradas, pelos
seus foros e pelo prestígio moral de José Bonifácio junto ao governo do Regente, inatingíveis em sua liberdade, e superiores à lei e aos
representantes coloniais da Coroa? Pois iria mostrar-lhes que laboravam numa funesta, numa perigosa ilusão prestes a se desfazer; e que os seus
brasões de nobreza, os seus diplomas de sabedoria, e o seu crédito perante a Corte, nada valiam diante da autoridade que eles, em ditos mordazes,
enxovalhavam e desprestigiavam por toda a parte.
Na família Andrada havia dois membros que se distinguiam pela virulência
de seus constantes ataques ao governador, e eram: Francisco Eugénio de Andrada, irmão mais novo de António Carlos, e então contando 29 anos pouco
mais ou menos; e João Feliciano, primo deles [142].
Em ambos vingaria os ultrajes que de todos recebera. E um belo dia, sem que ninguém
pudera suspeitar de seus intentos, mandou prendê-los e obrigou-os violentamente a assentar praça de soldado na tropa de linha destacada em Santos, "para
mostrar que eles não eram melhores do que os outros e ao mesmo tempo para desafrontar-se das suas injúrias", segundo o
confessou, com a mais despejada franqueza, ao secretário de Estado, na carta em que lhe dava conta da ocorrência.
Foi enorme o escândalo que esse ato prepotente causou no seio da população, onde os
Andradas eram geralmente estimados, embora as asperezas, um tanto ou quanto agressivas, de seu insopitável orgulho, não poucos desafeiçoados lhe
tivessem criado em sua própria terra.
António Carlos ficou possesso, pois a vingança de Franca e Horta, além do desprezo
patente pelas imunidades de que pretendia gozar a ilustre família, privava despoticamente da liberdade pessoal dois de seus membros, assim
arrancados de surpresa aos carinhos domésticos do lar. Os dois mancebos eram oficiais da Ordenança e não podiam, por esse motivo, ser coagidos a
servir como praças de pré nas tropas regulares, o que tornava ainda mais odiosa a arbitrariedade praticada contra eles.
Era caso, pois, de recorrer, com certeza certa de deferimento, ao poder superior; mas
as delongas do processo, as idas e vindas dos papéis de cá para a Corte e vice-versa, exigindo grande dispêndio de tempo, não se compadeciam com a
urgência reclamada pela gravidade das circunstâncias, nem com o ânimo insofrido de António Carlos.
Este promoveu, então, energicamente, a deserção dos jovens recrutados e, usando das
faculdades próprias de seu cargo, forneceu-lhes cartas de seguro (passaportes), e folha corrida, para que pudessem viver desafogados e livres fora
da Capitania. Ao mesmo tempo que tomava tais providências, ia para a Câmara Municipal desabafar contra o governador, chegando, na qualidade de
presidente, a ordenar ao procurador da mesma corporação que desse queixa contra Franca e Horta ao príncipe regente.
Mas o procurador, ou porque não apreciasse muito a atitude de permanente rebeldia do
juiz de fora à primeira autoridade da Capitania, ou porque temesse incorrer no desagrado do régulo, declarou, em termos algo acrimoniosos, que não
apresentaria queixa alguma.
A ilegalidade do ato do governador não admite escusas, mas o juiz de fora, letrado que
tinha por ofício aplicar a lei, quis corrigi-la com outra ilegalidade igualmente insustentável diante do Direito, fazendo desertarem de seus
batalhões soldados que já tinham jurado bandeira e estavam presos ao seu juramento.
O remédio, não obstante todas as demoras previstas,
era recorrer da violência do governador para a justiça do regente. Outros, sem investidora oficial em função nenhuma, poderiam, movidos pelo
coração, ter semelhante procedimento. Era, em todo o caso, uma solução pronta para que cessasse tão escandalosa coação. Mas quem não podia agir como
se fora um simples cidadão, sem qualquer grau de responsabilidade na organização política da Capitania, era António Carlos, que colocou os impulsos
do sangue, e os brados do orgulho ferido, acima de sua consciência de magistrado. Dos documentos achados e compulsados não pudemos saber que
desfecho teve afinal esta questão.
***
NOTAS:
[136] Dar conta é
o mesmo que apresentar queixa.
[137] Os juízes
ordinários, espécie de juízes de paz do Império, processavam feitos sobre bens de raiz de qualquer quantia que fosse, e sobre bens móveis que
passassem de 1$000 réis; e, nos lugares que contassem mais de 200 habitantes, julgavam, sem apelação nem agravo, as causas até 600 réis também nos
bens móveis. Quanto aos bens de raiz a sua alçada ia somente até 400 réis. Eram obrigados, sob pena de multa de 500 réis, a trazer a vara vermelha,
distintivo de sua jurisdição. (ROCHA POMBO), História do Brasil, V. 5º, cap. 6º, pág. 395, nota 1).
[138] Damos na íntegra o
aludido Auto, que se acha copiado no Livro de Registro da Correspondência do Governador Franca e Horta, existente no Arquivo deste Estado:
"Auto que mandou fazer o Ilustríssimo e Excelentíssimo
Governador e Capitão-General da Capitania de S. Paulo, pela desobediência formal do Doutor Juiz de Fora da Vila de Santos, de não cumprir uma ordem
que lhe havia determinado no Real nome de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente Nosso Senhor.
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e seis. Ao primeiro
dia do mês de Outubro do dito ano, nesta Vila e Praça de Santos, em o Quartel da Residência do Exmo. General desta Capitania, António José da Franca
e Horta, compareceu na sua presença, e por ordem sua, o Bacharel António Carlos Ribeiro de Andrada, Juiz de Fora desta mesma Vila, a quem o mesmo
Exmo. Senhor fez as seguintes perguntas:
1º) Se o reconhecia por Governador e Capitão-General desta Capitania? Respondeu que
por tal o reconhecia.
2º) Se, reconhecido como tal, o reconhecia igualmente como Regedor da Justiça?
Respondeu que também como tal o reconhece.
3º) Se, sendo ele General e Regedor da Justiça, era ele Ministro obrigado a obedecer
às suas ordens? Respondeu que sim, não sendo contra a Lei, e ainda sendo contra ela o faria, se, depois de suas representações, lh'o ordenasse.
4º) Se não sabia que, tanto no Regimento dos Governos de armas, como nas demais Leis e
Regulamentos expressamente se ordena que o súdito, mesmo que tenha representado ao superior a sua dúvida, lhe deve obedecer, quando, apesar dessa
dúvida, ele lhe determina qualquer coisa? Respondeu que sim, não tendo alguma outra dúvida de que pedisse ao superior decisão, cuja dúvida lhe não
tivesse lembrado na primeira representação.
5º) Se o ofício que lhe apresentava, datado de vinte e oito de setembro do presente
ano, era o mesmo que ele Exmo. General lhe havia remetido e no qual lhe ordenava, no Real Nome de Sua Alteza, cumprisse sem a menor hesitação a
ordem que anteriormente lhe havia ordenado? Respondeu ser o mesmo que havia recebido e a que havia respondido em ofício de 30 do mesmo mês.
Então pelo Exmo. Governador foi dito que, como ao apresentar dúvidas suscitadas no
referido ofício nenhum peso tinham a todo o senso comum para obstar a que ele Ministro cumpra uma ordem que em Nome e por bem do Serviço de Sua
Alteza Real lhe havia determinado executasse, se deduzia terem as ditas dúvidas só o fim de faltar à subordinação de seus superiores, como
antecedentemente havia mostrado ele Ministro como Presidente da Câmara desta Vila, nos ofícios dirigidos à Real Junta da Fazenda, onde se comportou
com a falta de obediência e respeito que devia.
E depois do mesmo Exmo. Snr. lhe estranhar, em nome do Príncipe Regente Nosso Senhor,
o não tributar-lhe, como a Representante do Soberano, a atenção e obediência devida, mandou lavrar o presente Auto de desobediência formal, para ser
remetido a Sua Alteza Real pela Secretaria d'Estado competente, com os documentos respectivos, a fim de ser punido pelo modo que o mesmo Senhor
julgar conveniente, ordenando-lhe finalmente, no Real nome de Sua Alteza, que não obstante qualquer dúvida, passasse a executar as mencionadas
ordens que lhe havia determinado, sem a menor hesitação, aliás, o reputará como cabeça de sedição, e como tal procederá contra ele na forma das
Reais Ordens."
[139] Depois conde do
mesmo nome. Chamava-se João Rodrigues de Sá de Menezes e foi quem introduziu no Brasil a vacinação contra a varíola, mandando para cá uma remessa da
respectiva linfa, acompanhada do Aviso de 1º de outubro de 1802, no qual recomendava aos governadores o seu emprego, em larga escala, como
preservativo eficaz daquela enfermidade que flagelava endemicamente o nosso povo, desde o começo da colonização. O conde de Anadia, que veio de
Portugal com o seu governo, morava no Rio à Rua dos Barbonos, hoje Evaristo da Veiga, numa casa fronteira ao já não existente chafariz das Marrecas;
e aí morreu a 30 de dezembro de 1809, sendo sepultado, com todas as honras, na Igreja do Convento de Santo António (MELLO MORAES - História das
Constituições, vol. 1º, pág. 132, cols. 1ª e 2ª).
[140] Livro de Registro
da Correspondência de Franca e Horta, página 125 verso.
[141] Livro de Registro
da Correspondência de Franca e Horta, folhas 130 verso e 134 verso.
[142] Foi-nos
completamente impossível identificar este personagem, que Franca e Horta, no documento a que se refere o texto, dá como sendo primo de António
Carlos. O único João Feliciano que encontramos por essa época era filho de d. Bárbara Joaquina de Aguiar, e, portanto, sobrinho, e não primo dos
Andradas. Esse mesmo não podia ter sido recrutado por ordem do capitão-general, pois contava então apenas 6 anos de idade. |